As lendas existiam, ele sabia. Ele as conhecia bem. Não só
aquela que falava do negrinho sem uma perna que não fazia mais do que perturbar
fazendeiros desavisados trançando crinas de cavalos e bagunçando as casas. Ele
sabia daquelas que quase ninguém sabia. Daquelas que falavam sobre um ser
odioso e nojento que se arrastava pela mata, reabrindo feridas que nunca se
saravam em sua barriga, fumando um cachimbo fétido que expelia uma fumaça que
se tornava sinal de agouro para todos que a vissem. Era essa a história que ele
sabia, e era nessa que acreditava. E foi nisso que pensou quando saltou do seu
Gol 95 em frente à singela fazenda que seu avô tinha lhe deixado de herança.
Algo pouco maior que um casebre, que muito tempo atrás tinha sido amarelo, mas
que hoje só tinha uma cor pálida e quase ridícula comparada ao verde exuberante
que a envolvia quase agressivamente. João sentiu um arrepio assim que colocou
os olhos nas árvores atrás da casa que fora de seu avô e agora era sua. Ele
tentou se convencer que não, mas naquele momento, já sabia que ia morrer
naquela noite.
João percebeu alguma coisa errada quando o cavalo começou a relinchar insistentemente. Pela janela embaçada com a sujeira acumulada de anos e anos, ele pôde ver o bicho sacudindo o pescoço, levando a cabeça de um lado para o outro como se visse muitas coisas em muitos lugares ao mesmo tempo. Já era noite. Tarde da noite. Ele já tinha falado com sua filha, ajudado a niná-la pelo celular, e depois se despedira carinhosamente da mulher, após mais uma tentativa frustrada de fazer sexo por telefone. Como é que se fazia isso mesmo? Era só falar um monte de sacanagem ou tinha alguma técnica que...
Relinche. Droga. Em outra ocasião, com outras pessoas na
casa, ou até com a luz do sol como lanterna gigante, João teria ido lá fora.
Teria vistoriado o cavalo, confirmado que tudo estava bem. Mas não fez nada
disso. E nem podia. A noite fria, os sons da mata, a voz rouca de seu avô
ecoando em sua mente, contando sobre o filho do carpinteiro que sumira depois
de uma caçada ao saci, ou a mulher de José
de Assis que apareceu com os seios arrancados, ou o Coronel Aguiar
achado morto dentro de sua caminhonete sem as duas pernas e sem um pedaço do
rosto. Tudo era ele, tudo era ele...
João podia rir de tudo isso tempos atrás. Evocar a imagem do
Saci dos contos infantis, do Sítio do Pica Pau Amarelo. Era tudo história de
seu avô, que queria assustá-lo. Esse povo do interior é assim, quando não tem
história para contar, inventa uma. Era isso que João fazia, era assim que se
defendi. Mas ali, à noite, sozinho, ele não tinha do que rir. Não mesmo. Era
melhor mesmo não pensar. Pegou seu Ipod e colocou Jefferson Airplane para tocar
no último volume. É, isso o protegeria.
Depois de repetir sua playlist cinco vezes, João foi
obrigado a colocar o Ipad de lado e buscar outra coisa para fazer. Não por ter
enjoado do som alucinógeno do Jefferson Airplane – e nem por não ter uma bala
para usar enquanto viajava na música -, mas porque a bateria tinha chegado ao
seu limite. E ele, claro, não levara seu carregador, como nunca levava.
Ao tirar os fones dos ouvidos, um silêncio a princípio
bem-vindo quase o fez pensar que estava surdo. Seus ouvidos doíam; um zumbido
estranho o incomodava, como se viesse de dentro da cabeça e reverberasse por
todo seu crânio. Mas embaixo disso tudo, o silêncio. Passados poucos segundos,
ficou incômodo. Um presságio ruim, ele quase pensou, pois antes de completar
esse pensamento, o expulsou com um muxoxo de deboche como sempre fazemos quando
a parte paranormal de nosso cérebro tenta tomar as rédeas.
João caminhou até a
janela encardida pelo tempo e olhou para fora. Parado. Silencioso. Nem o
cavalo, que ele conseguia ver antes em sua agitação fora de hora, estava à
vista. Mas ele tinha que estar, tinha que estar ali, amarrado perto das
árvores. Desde que ganhara aquele pedaço de terra, João nunca pensara em quanto
era ridículo tê-lo. Não sabia nada de roça, animais, natureza, mas nada disso
lhe passara pela cabeça já que não pretendia ficar com a propriedade. Foi só
ali, enxergando o nada pela janela que João pensou na loucura que era tudo
aquilo. O cavalo podia estar dormindo, ele nunca ia saber. Não sabia se os
cavalos dormiam deitados ou descansavam em pé. Puxou pela memória, mas não se
lembrava de ver um cavalo deitado, só quando era abatido e se espalhava pelo
chão.
- Droga.
Tentou mais uma olhada. Tentou ver o vulto do cavalo deitado
na relva, próximo às árvores, mas era impossível. O lado paranormal de seu
cérebro ligou o sinal de alerta de novo. “É melhor ficar aqui e ver isso
amanhã”, ele quase pensou. Mas antes de também completar esse pensamento,
mangou-se silenciosamente por ter medo, por não ter coragem de sair da casa,
por ser um veadinho que tinha medo do escuro e da floresta assustadora.
E aí ele saiu. E aí ele morreu.
João morreu pensando no Saci de Monteiro Lobato. Tão
bonitinho, com seu gorro vermelho, seu cachimbo e sua desenvoltura numa perna
só. Não acreditava nesse Saci, mas antes de tudo escurecer para sempre, ele se
pegou desejando poder acompanhar Pedrinho e Narizinho em suas caçadas, poder
prender o danado do Saci numa garrafa vazia.
Ele pode ter morrido pensando nisso, mas quando colocou o pé
para fora de casa, não era isso que lhe passava pela cabeça. Na verdade, ele
estava se cagando de medo. Tem alguma coisa em estar sozinho numa casa no meio
do nada, cheio de medos do passado, que faz um homem adulto voltar para a
infância, voltar a ter nove anos e nenhum senso de realidade. Era nesse estágio
que ele estava ao dar os primeiros passos na relva ressecada que rodeada sua
nova propriedade.
Mas no terceiro passo, as coisas melhoraram. Estava ali
fora, no escuro, sozinho, e estava bem. Ainda estava bem. Ganhou confiança.
Mais um passo. Ainda tudo bem. Pôde respirar melhor. Mais dois passos, mais
três passos. O ar da noite já não lhe parecia tão gelado, as estrelas pareciam
holofotes ao invés de lanternas de celular. Ele até conseguiu sorrir. E no que
talvez tenha sido o momento mais triste da noite, ele realmente achou que tudo
ia ficar bem.
E foi aí que ele viu o cavalo. Sim, ele estava deitado. Por
um segundo, João tentou se convencer de que, sim, os cavalos dormiam deitados.
Mas o objeto enfiado no pescoço do animal o fez engasgar. Era uma pá daquelas
usadas para cuidar da terra, e que estava jogada pelo chão do sítio – João o
tinha visto assim que tinha chegado. A pá estava enterrada no pobre do bicho
como se estivesse enterrada na areia, firme, apontando para o alto.
João podia ter vomitado naquela hora, mas teria sido um
desperdício. O pior veio depois. Por detrás do animal caído, uma mão escura
agarrou o cabo da pá e o usou como base para se erguer. Lentamente, uma coisa
vermelha saiu detrás do cavalo, depois um rosto que parecia feito de couro duro
e gasto. Era alguém, alguma coisa com um rosto bestial, olhos de um vermelho
mais intenso que o estranho chapéu que usava. João não conseguia se mexer.
O ser agarrou o ventre do cavalo com a outra mão e arrastou
por cima do bicho. Os braços eram musculosos, com os de um garoto que resolveu
usar anabolizantes, mas todo o resto era raquítico, subdesenvolvido. A coisa
passou por cima do cavalo e caiu com um baque no chão. Se arrastou para João
lentamente.
João, naquele momento, já estava morto. Seu corpo tinha
desligado por completo e o quer que o recheasse só estava esperando a hora de
ir embora. A criatura parecia saber disso e não se apressou. Levava uma mão à
frente e se impulsionava. Levava a outra, e fazia a mesma coisa. Era uma
tortura vê-lo chegar cada vez mais perto com sua cara demoníaca. Ouvir seu
estômago roçando no chão, que reabria as chagas existentes em sua barriga, que
deixavam um rastro de sangue gosmento pelo chão.
Ele sabia que João
não ia a lugar nenhum. E João não foi. Apenas sua mente viajou, foi para o Sítio
do Pica-Pau amarelo e do Saci que podia ser preso na garrafa. Quando o monstro
quebrou-lhe as pernas com um golpe violento, João já sorria, em pouco estaria
em outro lugar, e não sentiria dor nenhuma. Mas ele sentiu. Sentiu quando
desabou no chão, quando teve a barriga rasgada e as entranhas devoradas com
ferocidade.
Só depois de muita
dor conseguiu morrer em paz.
Que tenso esse monstro!!
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