terça-feira, 7 de agosto de 2012

Conto: Saci


As lendas existiam, ele sabia. Ele as conhecia bem. Não só aquela que falava do negrinho sem uma perna que não fazia mais do que perturbar fazendeiros desavisados trançando crinas de cavalos e bagunçando as casas. Ele sabia daquelas que quase ninguém sabia. Daquelas que falavam sobre um ser odioso e nojento que se arrastava pela mata, reabrindo feridas que nunca se saravam em sua barriga, fumando um cachimbo fétido que expelia uma fumaça que se tornava sinal de agouro para todos que a vissem. Era essa a história que ele sabia, e era nessa que acreditava. E foi nisso que pensou quando saltou do seu Gol 95 em frente à singela fazenda que seu avô tinha lhe deixado de herança. Algo pouco maior que um casebre, que muito tempo atrás tinha sido amarelo, mas que hoje só tinha uma cor pálida e quase ridícula comparada ao verde exuberante que a envolvia quase agressivamente. João sentiu um arrepio assim que colocou os olhos nas árvores atrás da casa que fora de seu avô e agora era sua. Ele tentou se convencer que não, mas naquele momento, já sabia que ia morrer naquela noite.

João percebeu alguma coisa errada quando o cavalo começou a relinchar insistentemente. Pela janela embaçada com a sujeira acumulada de anos e anos, ele pôde ver o bicho sacudindo o pescoço, levando a cabeça de um lado para o outro como se visse muitas coisas em muitos lugares ao mesmo tempo. Já era noite. Tarde da noite. Ele já tinha falado com sua filha, ajudado a niná-la pelo celular, e depois se despedira carinhosamente da mulher, após mais uma tentativa frustrada de fazer sexo por telefone. Como é que se fazia isso mesmo? Era só falar um monte de sacanagem ou tinha alguma técnica que...

Relinche. Droga. Em outra ocasião, com outras pessoas na casa, ou até com a luz do sol como lanterna gigante, João teria ido lá fora. Teria vistoriado o cavalo, confirmado que tudo estava bem. Mas não fez nada disso. E nem podia. A noite fria, os sons da mata, a voz rouca de seu avô ecoando em sua mente, contando sobre o filho do carpinteiro que sumira depois de uma caçada ao saci, ou a mulher de José  de Assis que apareceu com os seios arrancados, ou o Coronel Aguiar achado morto dentro de sua caminhonete sem as duas pernas e sem um pedaço do rosto. Tudo era ele, tudo era ele...

João podia rir de tudo isso tempos atrás. Evocar a imagem do Saci dos contos infantis, do Sítio do Pica Pau Amarelo. Era tudo história de seu avô, que queria assustá-lo. Esse povo do interior é assim, quando não tem história para contar, inventa uma. Era isso que João fazia, era assim que se defendi. Mas ali, à noite, sozinho, ele não tinha do que rir. Não mesmo. Era melhor mesmo não pensar. Pegou seu Ipod e colocou Jefferson Airplane para tocar no último volume. É, isso o protegeria.

Depois de repetir sua playlist cinco vezes, João foi obrigado a colocar o Ipad de lado e buscar outra coisa para fazer. Não por ter enjoado do som alucinógeno do Jefferson Airplane – e nem por não ter uma bala para usar enquanto viajava na música -, mas porque a bateria tinha chegado ao seu limite. E ele, claro, não levara seu carregador, como nunca levava.

Ao tirar os fones dos ouvidos, um silêncio a princípio bem-vindo quase o fez pensar que estava surdo. Seus ouvidos doíam; um zumbido estranho o incomodava, como se viesse de dentro da cabeça e reverberasse por todo seu crânio. Mas embaixo disso tudo, o silêncio. Passados poucos segundos, ficou incômodo. Um presságio ruim, ele quase pensou, pois antes de completar esse pensamento, o expulsou com um muxoxo de deboche como sempre fazemos quando a parte paranormal de nosso cérebro tenta tomar as rédeas.

João caminhou até a janela encardida pelo tempo e olhou para fora. Parado. Silencioso. Nem o cavalo, que ele conseguia ver antes em sua agitação fora de hora, estava à vista. Mas ele tinha que estar, tinha que estar ali, amarrado perto das árvores. Desde que ganhara aquele pedaço de terra, João nunca pensara em quanto era ridículo tê-lo. Não sabia nada de roça, animais, natureza, mas nada disso lhe passara pela cabeça já que não pretendia ficar com a propriedade. Foi só ali, enxergando o nada pela janela que João pensou na loucura que era tudo aquilo. O cavalo podia estar dormindo, ele nunca ia saber. Não sabia se os cavalos dormiam deitados ou descansavam em pé. Puxou pela memória, mas não se lembrava de ver um cavalo deitado, só quando era abatido e se espalhava pelo chão.
- Droga.

Tentou mais uma olhada. Tentou ver o vulto do cavalo deitado na relva, próximo às árvores, mas era impossível. O lado paranormal de seu cérebro ligou o sinal de alerta de novo. “É melhor ficar aqui e ver isso amanhã”, ele quase pensou. Mas antes de também completar esse pensamento, mangou-se silenciosamente por ter medo, por não ter coragem de sair da casa, por ser um veadinho que tinha medo do escuro e da floresta assustadora.

E aí ele saiu. E aí ele morreu.

João morreu pensando no Saci de Monteiro Lobato. Tão bonitinho, com seu gorro vermelho, seu cachimbo e sua desenvoltura numa perna só. Não acreditava nesse Saci, mas antes de tudo escurecer para sempre, ele se pegou desejando poder acompanhar Pedrinho e Narizinho em suas caçadas, poder prender o danado do Saci numa garrafa vazia.

Ele pode ter morrido pensando nisso, mas quando colocou o pé para fora de casa, não era isso que lhe passava pela cabeça. Na verdade, ele estava se cagando de medo. Tem alguma coisa em estar sozinho numa casa no meio do nada, cheio de medos do passado, que faz um homem adulto voltar para a infância, voltar a ter nove anos e nenhum senso de realidade. Era nesse estágio que ele estava ao dar os primeiros passos na relva ressecada que rodeada sua nova propriedade.
Mas no terceiro passo, as coisas melhoraram. Estava ali fora, no escuro, sozinho, e estava bem. Ainda estava bem. Ganhou confiança. Mais um passo. Ainda tudo bem. Pôde respirar melhor. Mais dois passos, mais três passos. O ar da noite já não lhe parecia tão gelado, as estrelas pareciam holofotes ao invés de lanternas de celular. Ele até conseguiu sorrir. E no que talvez tenha sido o momento mais triste da noite, ele realmente achou que tudo ia ficar bem.

E foi aí que ele viu o cavalo. Sim, ele estava deitado. Por um segundo, João tentou se convencer de que, sim, os cavalos dormiam deitados. Mas o objeto enfiado no pescoço do animal o fez engasgar. Era uma pá daquelas usadas para cuidar da terra, e que estava jogada pelo chão do sítio – João o tinha visto assim que tinha chegado. A pá estava enterrada no pobre do bicho como se estivesse enterrada na areia, firme, apontando para o alto.

João podia ter vomitado naquela hora, mas teria sido um desperdício. O pior veio depois. Por detrás do animal caído, uma mão escura agarrou o cabo da pá e o usou como base para se erguer. Lentamente, uma coisa vermelha saiu detrás do cavalo, depois um rosto que parecia feito de couro duro e gasto. Era alguém, alguma coisa com um rosto bestial, olhos de um vermelho mais intenso que o estranho chapéu que usava. João não conseguia se mexer.

O ser agarrou o ventre do cavalo com a outra mão e arrastou por cima do bicho. Os braços eram musculosos, com os de um garoto que resolveu usar anabolizantes, mas todo o resto era raquítico, subdesenvolvido. A coisa passou por cima do cavalo e caiu com um baque no chão. Se arrastou para João lentamente.

João, naquele momento, já estava morto. Seu corpo tinha desligado por completo e o quer que o recheasse só estava esperando a hora de ir embora. A criatura parecia saber disso e não se apressou. Levava uma mão à frente e se impulsionava. Levava a outra, e fazia a mesma coisa. Era uma tortura vê-lo chegar cada vez mais perto com sua cara demoníaca. Ouvir seu estômago roçando no chão, que reabria as chagas existentes em sua barriga, que deixavam um rastro de sangue gosmento pelo chão.
Ele sabia que João não ia a lugar nenhum. E João não foi. Apenas sua mente viajou, foi para o Sítio do Pica-Pau amarelo e do Saci que podia ser preso na garrafa. Quando o monstro quebrou-lhe as pernas com um golpe violento, João já sorria, em pouco estaria em outro lugar, e não sentiria dor nenhuma. Mas ele sentiu. Sentiu quando desabou no chão, quando teve a barriga rasgada e as entranhas devoradas com ferocidade.

Só depois de muita dor conseguiu morrer em paz.

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