quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Coluna Sexo a 5: Ruim de Jogo


Eu não estava fazendo nada numa sexta-feira à noite quando Charles me chamou para sair. Eu não queria ir, estava na época em que aproveitava o “nadismo”. Não fazia nada, e não importava. Mas ele continuou dizendo que ia ser legal, era um novo bar gay e ele queria conhecer e não queria ir sozinho, e foi falando e falando...

- Tá bom, eu vou. Saco.

Nos encontramos em frente ao bar, só que não era um bar. Era uma balada.

- Você falou que era um bar – eu disse.
- Mas é um bar.
- Não é uma boate.
- Ninguém mais fala "boate".

Nós entramos.

Eu não gosto muito boate ou seja  lá o nome que tem hoje. Sempre tem muita gente, muitos "u-huus", e pouco espaço. Não era bem o caso aqui. Não porque o lugar era grande, mas porque estava meio vazio.

- Isso aqui não devia estar cheio? – eu perguntei.
- Vai encher. Relaxa.

Então nós pegamos uma mesa. Conversamos. Charles tinha acabado de contar para a gente que era gay. Ele tinha passado por poucas e boas antes disso, até a aceitação. Era como se ele tentasse transformar o fato de ser gay na coisa mais degradante que podia, para assim poder tentar deixar de ser. Deu para entender? Mas foi isso, tivemos que falar com ele, dar força e tudo mais. Agora ele estava bem. Meio confuso, mas bem.

- Tá pegando alguém? – eu perguntei.
- Algumas possibilidades. Eu não tô me sentindo cem por cento confiante.
- Por que não?
- Eu acho que eu sou ruim de jogo.
- O quê?
- Ruim de jogo, você sabe, não sei bem chegar nos caras, sou meio envergonhado.

Estranho, eu pensei. Ele tinha feito um monte de coisas que não tinham a vergonha como pré-requisito, mas ainda assim, era uma época que ele estava meio louco. E ele continuou dizendo como era um fracasso nisso de chegar junto e tal e tal, e eu pensei: Será que eu sou ruim de jogo?

Enquanto eu me debatia filosoficamente, Jennyfher estava indo encontrar com uma amiga num bar. Jennyfher e eu éramos amigo há algum tempo já, mas ela continuava me surpreendendo. Ela tinha um namorado, e os dois não iam muito bem. Desde que eu a conhecia eles não iam muito bem. Ela me contou depois, muito rapidamente, que eles tiveram uma briga boba naquela noite (que ela provocou, eu tenho certeza), e ela precisou sair para se distrair.

Ela foi para um desses bares country e lá encontrou a amiga numa mesa cheia. Ela bebeu, e bebeu. E como mel atrai formiga, Jennyfher atrai homem. É simples assim. E na conversa vai, conversa vem, ela já tinha alguém com quem passar a noite. Rápido assim.

Charles me arrastou para a pista quando a balada encheu um pouco mais. A gente estava dançando quando eu percebi um cara olhando para ele. Ele via, e fingia que não via.

- O cara está olhando pra você – eu disse. Ele nem se virou.
- Claro que não.
- Tá sim, tá dançando aí atrás de você.
- Para.

Mas que droga... Ele era mesmo ruim de jogo. O cara estava lá, dançando, olhando e ele nada. Qual era o problema? Será que ele estava esperando que o cara chegasse junto, apesar de ele demonstrar a todo momento que estava interessado. Era isso que a gente tinha virado, um monte de gente em exposição esperando que alguém se aproximasse e escolhesse? E o nosso poder de escolha, desaparecia? Ser bom no jogo talvez significasse ainda ter um poder de escolha. Não só para escolher com quem você quer ficar, mas também com quem não quer ficar.

Não fui muito além nisso porque meu celular tocou. Era Jennyfher. Deixei Charles dançando sozinho e fui atender.

- Oi.
- Eu vou transar com um cara aqui, mas eu tô menstruada. Você acha que eu devo?
- Cadê você?
- No carro dele.
- E cadê ele?
- Tá dirigindo.
- Ele tá ouvindo tudo?
- Ele não é surdo. Que que você acha?
- Você tem camisinha?
- Tenho.
- Vai fazer alguma diferença se eu disser que você não deve ir?
- Não.
- Então vai.

Ela desligou. Eles transaram. No dia seguinte ela chegou em casa e encontrou o namorado esperando por ela. Ele estava muito arrependido da briga e se desculpou. Chorou. Ela perdoou e tudo voltou ao normal. Jennyfher era mestra no jogo.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Coluna: Sexo a 5 - Brinquedos

Eu estava encarando o maior pau de borracha que eu já tinha visto na vida, chocado com a gula e a elasticidade de algumas pessoas e das partes de seus corpos.

- UM cara já quis comprar esse, sabia? – minha amiga me falou. Ela, ironicamente para todo o resto do grupo, tinha conseguido um emprego em um Sex Shop. Íamos lá direto e nos sentíamos em um parque de diversões com todas aquelas possibilidades.

- Não acredito – eu disse ainda chocando com a monstruosidade do pênis de borracha. Não estou falando de trinta ou quarenta centímetros. Aquela coisa devia ter pelo menos um metro de comprimento e era largo também. – Quem tem um cu que se encaixe nisso?

Tentei imaginar por um segundo alguém enfiando um metro de rola rabo acima, mas era grosseiro demais. Nunca fui muito fã de sexo rough, era mais tradicional nesse sentido. Felizmente, minha amiga já tinha um bom tópico para desviar meu pensamento daquelas imagens.

- Tô de namorado novo – ela disse.
- Eu sei. Você já falou.

Meu grupo de amigos sempre foi muito precoce, embora não parecesse. Essa minha amiga era um exemplo. Aos 17 anos deixou a casa dos pais e foi morar junto com um cara. A casa deles virou nosso quartel general, e íamos lá sempre que queríamos fazer besteira. Por lá, acompanhei os altos e baixos da história dos dois, e mesmo nos momentos difíceis aprendi a vê-los como um casal ideal. Então, foi uma grande surpresa quando descobri que eles tinham se separado.

- Queríamos coisas diferentes – ela me disse na época. – Ele não estava me ajudando a crescer, a evoluir. 

Apesar de ter ficado triste com o rompimento, não deixei de considerar esse motivo válido, e talvez o mais correto, para se terminar uma relação. A atitude da minha amiga de tomar essa decisão, por outro lado, me surpreendeu. Eu sempre a vi como uma daquelas que segue a filosofia “deixa a vida me levar”, vivendo um dia de cada vez, sem grandes preocupações ou problemas.

Enfim, desde o fim do casamento, ela começou a aproveitar tudo o que tinha direito. E não raro, emendava um namorado atrás do outro, com muita facilidade, mas não empolgação. Eram relacionamentos curtos e não sei se muito produtivos. Eu tinha conhecido, de ver pessoalmente, um deles. Tinha um outro, que eu sabia só de ouvir falar, e eu achava que era desse que ela estava falando.

- Não esse. Outro namorado – ela explicou.

Para alguém que terminou um casamento por falta de perspectivas, ela estava arranjando namorados bem sem futuro. Enquanto falava do novo namorado, minha amiga em nenhum momento demonstrou empolgação ou mesmo paixão. Era quase como se fosse conveniente estar com ele, ou como se ele fosse um dos brinquedos sexuais que ele vendia.

Ainda pensando nisso, comprei com ela um par de dados – que eu sempre quis -, em um dos dados tinha instruções sobre o que fazer, no outro as partes do corpo. Daí, era só você jogar com o parceiro. É muito divertido, posso perder domingos inteiros com esse joguinho.

Peguei o metrô de volta para casa e não pude deixar de divagar sobre esse troca-troca de parceiros. Pensei que, talvez, as pessoas se relacionam com os outros hoje da mesma forma que se relacionam com os brinquedos eróticos que minha amiga vende no Sex Shop. Era uma relação primordialmente baseada no prazer, não na emoção. Por isso a troca de parceiros, sem ressentimentos ou tristezas. É só terminar e procurar outro brinquedo, dos muitos que estão por aí.

Ao chegar a essa conclusão, não sei se fiquei triste e desanimado, ou excitado diante de tantas possibilidades. 

domingo, 21 de outubro de 2012

Coluna: Sexo a 5 - Compromisso

Hora de brincar um pouco com Sex and The City. Eu sempre gostei muito da ideia de fazer uma coluna contando as peripécias sexuais de meus amigos, que não são poucas, por sinal. Quando se fala sobre sexo, forçosamente se fala sobre relacionamentos e pessoas e tendências. Então, vamos ver como seria. Criei essa coluna fictícia, mas baseada em fatos reais. A maioria dos rolos, relações e personalidade dos personagens são reais (aconteceram com meus amigos, e algumas comigo), mas omiti os nomes para não dar dor de cabeça para ninguém. 


Foi uma típica cena de filme, pelo que ele me contou. O encontro casual na biblioteca, o bate-papo descontraído, as tiradas inteligentes, a saída apoteótica e a promessa de novos encontros.  Estava tudo ali. A receita cinematográfica do início de um bom relacionamento. Muito impressionante para um cara de vinte anos que ainda achava que podia controlar sua vida como um roteiro de cinema.

- Conheci meu cara da biblioteca – meu amigo me disse, em uma das nossas reuniões para beber e falar besteira.
- Que cara da biblioteca?
- O Cara da Biblioteca. Aquele que eu encontro, bato um papo, mostro como sou inteligente e nos apaixonamos loucamente. Igual nos filmes.
- E vai dar certo? – eu perguntei, desconfiado.
- Com certeza.

E com isso decretado, ele começou o tortuoso caminho que os levaria a cama.  As conversas, os sorrisos bonitos, as mãos que tocavam, o agarramento nos banheiros, os “pode ser” e os “não pode ser”. Até que enfim, veio o convite para o “almoço”.

- Ele me convidou para almoçar na casa dele amanhã – ele disse. –O que é que eu faço?
- Ué, vai. – eu disse.
- Você não tá entendendo. Não sei como funciona com os héteros, mas para os gays, um convite para almoçar em casa significa que só a sobremesa será servida.  Ele estava me chamando para transar, e eu fiquei nervoso. Ainda acha que devo ir?

Primeiro, eu não sabia desde quando ele se tornara tão pudico; segundo, como é que podia dar uma opinião àquele respeito. Parece que estava falando com um carinha do arco da velha que achava que um contanto físico mais intimo era, obrigatoriamente, um sinal de compromisso sério.

Prometi que daria a reposta no outro dia e corri para receber uma amiga que havia acabado de chegar de viagem. Ela estava naquelas de não acreditar no amor, vendo filmes europeus e lendo literatura séria.

- Transei com Meu Japonês? – ela me disse.
- Que japonês?
- O das minhas fantasias.

Ela era tarada por orientais em geral, tarada mesmo. Era vidrada nos olhinhos, nos cabelinhos, em como eles eram bonitinhos e tudo mais. Não me surpreendi muito ao vê-la voltar feita da viagem, afinal ela foi para se divertir. Mas os detalhes me deixaram orgulho.

Ela conhecera o cara num passeio pela cidade. Ele tinha parado para pedir uma orientação, uma forma de chegar junto descarada, e depois partiu lançando os olhares e sorrisos bonitos. Eles se encontraram em uma festa mais a noite e não demoraram nada para se encontrarem num apartamento.

- A gente fez sexo em todos os cômodos da casa – ela me disse com um sorriso.
- E quando é que vocês vão se ver de novo?
- Não vamos. Não quero compromisso sério.

Enquanto ela me contava mais sobre a viagem fiquei pensando na repulsa pelos “compromissos sérios”. Nunca vi nenhum problema em escolher alguém e ficar junto, dividir as coisas, comer brigadeiro e assistir ao Chaves. Não parecia um suplício ou uma prisão, mas exigia coragem. Para alguns era quase como enfrentar um monstro. O terrível monstro da Falta de Personalidade. Pode até parecer incompreensível, mas é só dedicar um tempo ao assunto para ver que tudo faz sentido. É um medo irracional, mas extremamente pungente. O momento onde, a literatura romântica, fala que dois se tornam um. E isso, só isso, já parece algo saído de um filme de terror. Dois se tornam um, o que é isso? Um tipo de mutação estranha. O tipo de compromisso que se vê hoje em dia chega perto da psicose. É um que fiscaliza o e-mail do outro, outra que não deixa que fulana seja amiga do namorado no Facebook, outro que fiscaliza as mensagens de celular. Medo. Tipo, Glenn Close total. 

Num mundo onde as relações parecem cada vez mais distantes, quando você assume um compromisso com alguém, faz de tudo para mantê-lo. E isso coloca o casal numa redoma de vidro, faz com que um queria se igualar ao outro, afastar os amigos. É triste como uma relação que devia ser de cumplicidade e harmonia se transforma numa relação de dependência total. É preciso saber lidar e contornar todas essas coisas, e isso exige tempo e paciência. E quem tem tempo e paciência hoje em dia?

- Nós “almoçamos” – meu amigo disse no outro dia.
- Legal. E aí?
- Não vai rolar.
- Por quê?

Ele parou para pensar. Demorou demais. Estava inventando uma mentira, qualquer coisa para não ter que dizer que tinha ficado com medo de, enfim, enfrentar o Monstro do Relacionamento Sério.

- Ele não usa cueca boxer.

Eu fingi que acreditei.

sábado, 20 de outubro de 2012

Conto: Os Mortos


Os homens vieram na minha casa na hora marcada. Vestiam ternos escuros e gravatas brancas, os dois. Achei estranho ver dois funcionários públicos usando aquela espécie de uniforme, as cores escuras, os rostos pesados, como se o trabalho que faziam estivesse impregnado neles. Eles já não trabalhavam com a morte, eles incorporaram o espírito dela.

Minha mãe estava no quarto. Tinha morrido há menos de duas horas. Cinco minutos depois eu tinha enviado um e-mail para o Órgão. Podia não fazê-lo, mas já tinha ouvido muitas histórias, histórias daqueles que tinham tentado velar seus mortos e foram pegos. Histórias pesada. Parecia que todas as histórias eram pesadas naquela cidade, naquele mundo, naquele “lá” onde as pessoas sempre queriam chegar.

Tentei me convencer de que avisei o Órgão porque era coisa certa a fazer, a lei. Fiz isso para ser correto, não por estar querendo desesperadamente acabar com tudo aquilo, o sofrimento, os anos vendo minha mãe definhar, enlouquecer de dor, me xingar, dizer que me amava, chorar, morrer. Desde que minha mãe caiu doente eu esperava por esse momento, o momento em que eles apareceriam e tomariam conta da situação. Eu estava cansado de tomar conta e tudo.

Mas ela tinha morrido agora. Era assim que era ser livre?

- Do que ela morreu? – um deles perguntou com os olhos no papel preso a uma prancheta.
- Câncer – eu falei, rouco.
- Por que ela não estava no hospital?  - quis saber o outro, também sem olhar para mim.
- Não tinha mais nada que podia ser feito. Ela quis morrer em casa.

O primeiro que falou comigo soltou um grunhido de entendimento e caminhou em direção ao quarto. Parou no meio do caminho e apontou para o cômodo como se perguntasse se era ali que ela estava. Falei que sim com a cabeça. Ele entrou.

O outro continuou escrevendo. Em silêncio. Olhei para o teto, para o chão, para a janela. Estava escurecendo. Olhei para o relógio. 18 horas. O homem continuava escrevendo. Tive a impressão de que ele não escrevia nada, queria apenas uma desculpa para manter a cabeça baixa e não me encarar.

O que estava no quarto voltou. Fez um aceno de cabeça afirmativo para o companheiro, que finalmente parou de escrever.

- Vamos queimá-lo amanhã. Fique em casa o dia todo.

E foram embora.


- Não podemos mais enterrar nossos mortos – ela começou a dizer. Tinha os olhos cansados e olheiras roxas, largas e pesadas. Já não se vestia para ninguém. Chegou em casa com chinelo de dedo sob meias amarelas ou apenas encardidas. O rosto estava manchado. Era bonito antes, lembro do meu tempo de criança. Agora estava marcado, pela vida, pela dor. “Era como se tivesse brigado com a vida e perdido”.Onde foi mesmo que eu escutei essa descrição? Já não importava, mas era assim que ela parecia. Ela se chamava Gertrudes. Sempre foi minha vizinha. Agora era só um corpo que andava, um monte de carne que vivia porque não conseguia morrer.Que andava com um suéter três vezes maior que ela escondendo a camisola velha, que já começa a se desmanchar.

- Urubus, é isso que eles são – ela continuou e eu deixei. – Farejam a morte, parece que gostam dela, do gosto. Acho que essa é a maior crueldade de todas, sabe? E não comecei a pensar isso só agora, depois que tudo aconteceu. Sempre pensei assim. Mesmo antes de eles fizerem o que fizeram com meu filho. Os tempos eram outros, eram sim. A gente velava os que tinham partido assim: dentro de casa. O caixão ficava assim, no centro da sala. Não acho que você saiba o que é um caixão. Talvez tenha visto algum pela televisão, num filme antigo, ou na internet, naqueles vídeos horrorosos de... você sabe, sexo. Você não tem cara de quem gosta disso, mas nunca se sabe, não é? Enfim, antes, bem antes, a gente podia ver nossos mortos uma última vez. A gente podia vê-los até o fim. Até eles serem enterrados e ficarem lá. Ainda perto. Sempre que sentíamos saudades íamos nos cemitérios. Levávamos flores, ajoelhávamos em frente aos túmulos e rezávamos. Assim, como se eles estivessem ouvindo. A gente sabia, claro, que depois de alguns meses o que sobrava ali eram ossos, era resto, era verme. Mas para cada um de nós era solo sagrado. Era ali que estavam nossos mortos. Eu lembro da primeira vez que eles disseram “Vamos queimar todo mundo”. “Não temos mais espaço”, eles diziam. “Tem muita gente, tem pouco espaço; tem muito carro, tem pouco estacionamento; Não precisamos de mortos, precisamos de espaço”. Eu fui lá, no cemitério onde meus pais estavam enterrados, quando eles começaram a destruir tudo. Eles tiraram os caixões, abriram os túmulos. E o cheiro... Nossa Senhora, o fedor de tantos corpos em vida. Ele nuca foi embora. Daí, eles pegaram os corpos. Alguns ainda quase intactos, outros apenas ossos. Jogaram tudo num caminhão, queimaram todos. Todos. Hoje, no lugar onde estava o cemitério dos meus pais tem um shopping. Enorme. Quatro andares, praça de alimentação ampla, lojas caríssimas, caríssimas. Estacionamento para mais de mil carros. Eu nunca fui lá. Dizem que é assombrado. O mundo todo é assombrado. Assombrado pelos mortos que não conseguem descansar.

sábado, 1 de setembro de 2012

Livro: A Floresta (Cont.)


28.
Já estávamos caminhando antes que pudéssemos assimilar tudo o que tinha acontecido.
Minhas pernas doíam, meus braços doíam, meu corpo todo doía de uma forma que eu nunca achei que fosse possível. Pensei em todas as aulas de Educação Física que eu tinha faltado, todo e qualquer exercício evitado e recusado. E agora estava ali, no meio de uma interminável trilha pela floresta, sem saber aonde ir e como chegar. E como se não bastassem as correrias, subidas e escaladas, ainda tinha que enfrentar vendedores alucinados, estupradores embriagados e bruxas canibais. Pela progressão dos acontecimentos não demoraria para encontrarmos pela frente monstros, gigantes, o diabo em pessoa.
O dia tinha começado quente e abafado. O sol ainda nem se libertara da linha do horizonte e já estávamos suados e pegajosos. Ninguém falava nada, éramos uma comitiva silenciosa, em luto. As mortes de Marino e Liana, as bizarras mortes de Marino e Liana, tinham feito por nós o que o terremoto, o surgimento da floresta e dois dias se embrenhando no desconhecido não tinham conseguido. Nos fez perder as esperanças de que, em algum momento, de alguma forma, as coisas podiam voltar a ser como antes. A presença de Rhea, a possibilidade de uma coisa tão grotesca e mortal poder existir na floresta, e segundo ela, sempre ter existido na floresta, foi a constatação de que aquele mundo não era mais nosso.
Mas não era só a estupefação e o luto que nos deixavam silenciosos. Uma grande porção daquele grande nada entre nós era uma mórbida curiosidade, uma pungente interrogação. Jon, Gaspar, Perla, Amanda, Herick e Dimas, todos eles me viram fazendo coisas que eu, sinceramente, não sabia como tinha feito. Meu embate com Rhea fora de uma inconcebível rudeza, uma violência que não tinha razão ou possibilidade de existir.
Para mim, pensando em tudo depois, era um beco sem saída cheio de interrogações e temores. Era como se outra pessoa tivesse feito tudo aquilo, os socos, os pulos, a agilidade. Aquilo era tudo, menos eu. Lembrar os fatos era como ver um filme de milhões de dólares, com efeitos especiais caros e lutas coreografadas por Cheung-Yan Yuen. Mas no momento, parecera a coisa mais natural do mundo, como se fosse para aquilo, e só para aquilo, que eu servia.
Minha mochila ficou mais leve por um momento e eu me virei assustado para trás, só para encontrar Dimas tentando tirá-la de meus ombros. Era a primeira vez que olhava bem para meu amigo desde que a trupe de Jon se reunira a nós. Ele estava pálido e com olheiras até o queixo. Um feio corte vermelho repartia sua bochecha esquerda, já não sangrava, mas exibia uma brilhante coloração vermelha. Deus, eu nem queria saber como eu estava.
- Desculpe, achei que você tinha me ouvido. 
- Você me chamou? – eu perguntei meio abobalhado.
Dimas fez que sim com a cabeça, mas antes de conseguir falar um bocejo escancarou sua boca. Ele não dormia há quase vinte e quatro horas, todos nós, aliás, embora meu desmaio no encontro com Rhea me desse alguma vantagem.
- Cara, eu matava por um Red Bull agora – ele disse, esfregando os olhos cansados.
Eu sorri em concordância. Havíamos parado por poucos segundos para esse arremedo de conversa e os outros seguiram em frente. Quase todos, Perla e Herick estavam parados a poucos metros de nós, esperando.
- Vamos indo senão a gente fica para trás – eu chamei e voltamos a andar. – Que é que você queria na minha mochila?
Dimas me olhou um momento, uma expressão de dúvida no rosto, como se tivesse perdido o fio da meada. Seu estômago, então, roncou e a luz se fez em seu rosto.
- Eu ia pegar uma fruta – ele disse. – Morrendo de fome.
Tirei a mochila das costas no momento em que alcançamos Perla e Herick.
- Algum problema? – Perla perguntou, e tropeçou em uma pedra espetada para fora do solo molhado de orvalho. – Porra!
- Machucou? – Herick se abaixou para examinar-lhe o pé, no que eu achei uma atitude exagerada.
- Não, tudo bem.
Abri a mochila e um cheiro adocicado, mas não de todo agradável, me atingiu. Guardar as frutas em um local sem ventilação não era mesmo uma boa ideia, elas estavam apodrecendo com rapidez. Mas não era hora de desperdiçar, não depois do banquete de Rhea. Não faláramos sobre isso, mas sabíamos muito bem o que tínhamos comido.
- Sirva-se – eu disse, passando a mochila para Dimas.
Ele torceu o nariz ao sentir o cheiro de podre, mas não demorou a pescar da mochila uma banana, com a casca quase completamente negra, e uma maçã, em aparente bom estado.
- Você devia comer também, Perla. – Lembrei de tudo o que ela vomitara há algumas horas, não entendia como ela continuava de pé.
- Minha garganta está doendo - ela falou com um sorriso apático. – Não consigo comer nada. Não agora.
- Herick? – Eu ofereci a mochila.
Ele tirou de lá uma maçã e uma goiaba. Fechei o zíper sem pegar nada para mim, estava sem fome nenhuma.
Uma profusão de pássaros começou a fazer uma algazarra quase artificial de tão alta. O sol já se mostrara completamente, e os animais que dormiam, acordaram. A floresta exalava aquele ar de vida e movimento, e os sons distantes de pisadas, galhos quebrando, folhas arfando eram a trilha sonora perfeita para aquele despertar.
- Ô, corram aqui – Amanda gritou. Ela e os outros já não estavam à vista. – Rápido!
Corremos apreensivos, mesmo que o tom de voz dela não fosse de urgência ou medo. O solo se inclinava levemente e ao chegarmos ao topo vimos um rio reluzente e límpido. O reflexo do sol na água incomodava os olhos, mas ao mesmo tempo era maravilhoso. Jon e Gaspar já estavam dentro da água, se lavando, mergulhado. Amanda tirara o coldre da cintura e o pousara em um pedregulho às margens do rio.
Não demoramos um segundo para jogarmos as mochilas no chão e corrermos para dentro da água. Estava gelada e deliciosa. Amanda tirou a camiseta, ficando apenas de sutiã, e se juntou a nós.
Pela primeira vez desde que tudo começou nos sentimos limpos. Como se tivéssemos sido batizados de novo.

29.
Sentei-me com Perla às margens do rio. Jon vira um cardume de peixes passando perto de nós, uns tipos grandes e robustos. Não conhecia nada de peixes, mas achei aqueles grandes demais para viveram em águas doces. Falei isso para Dimas.
- Muitos peixes de água doce são enormes – ele respondeu, bom escoteiro que era. – Eu não sei bem quais são esses, mas tem a barracuda, igual aquela música do Heart – esse não tem no Brasil -, o peixe-boi num caso mais extremo. Todos de água doce.
- Como eu disse, não sei nada de peixe.
Dimas e Jon se embrenharam na floresta atrás de um galho resistente o suficiente para ser usado como arpão. Não demoraram a voltar, Dimas com um galho quase do seu tamanho. Herick lhe entregou a faca que Amanda lhe confiara no dia anterior e Dimas talhou uma das pontas do galho, transformando em uma estaca gigante.
Vamos aprender a fazer isso, vai que tem vampiros por aqui também, eu pensei enquanto Dimas e Herick se posicionavam no meio do rio, imóveis e atentos, esperando o próximo cardume.
Era isso que Perla e eu assistíamos.
- Um peixe no almoço ia ser o sonho – ela me disse, enrolando os cabelos molhados no alto da cabeça. Procurou algo no chão e pegou um graveto. Colocou-o nos cabelos, mas eles eram pesados demais para o pequeno pedaço de pau. Os cabelos lhe caíram novamente sobre os ombros.
Perla me olhou forçando uma expressão de aborrecimento e eu sorri. Cheguei perto dela e comecei a tirar os pedaços de graveto de seus cabelos longos.
- Um peixe – retomei a conversa do ponto onde tínhamos parado. – Nunca fui muito fã de peixe, sabe? E eu nem sei por quê.
Ela me olhou curiosa. Estávamos separados por poucos centímetros, a ponto de sentirmos a respiração um do outro.
- Eu comia peixe quando era criança. - Continuei mexendo nos cabelos dela mesmo já tendo catado todos os pedaços de graveto. – Mas chegou um momento em que eu parei. Sabe quando a gente deixa de comer uma coisa, fazer uma coisa, e cria uma lembrança ruim para associar a isso, só para justificar a interrupção?
Ela sorriu compreensiva, mas eu sabia por seus olhos que ela estava boiando. Eu estava divagando e quando fazia isso, corria o risco de eu mesmo me perder em minhas próprias palavras.
- Então, eu criei a história de que peixe tem gosto ruim. Em algum nível da minha consciência eu sei que não tem, mas eu finjo que tem, só para eu continuar comendo só carne. Eu prefiro. Só carne.
 Larguei os cabelos de Perla, mas continuamos perigosamente perto um do outro.
- Mas, sim. Um peixe no almoço ia ser um sonho.
Perla riu e novamente enrolou os cabelos, dessa vez colocou-os sobre um dos ombros. Eles liberaram um perfume gostoso de cabelos há muito viciados em xampu. Aquele cheiro e nossa proximidade me fizeram ter uma ligeira ereção, mesmo não sendo hora nem lugar para aquilo. Vantagens e desvantagens de ser um adolescente de dezessete anos.
- Peguei!
Era Dimas gritando. Ele e Herick pulavam na água, a estaca gigante erguida, o peixe tamanho família se contorcendo inutilmente, afogando-se no ar. Amanda, deitada na grama periférica ao rio, se sentou para aplaudir.
O almoço ia ser um sonho.

30.
 A programação e destino provisório não tinham mudado nada, segundo rápida conversa com Jon.
- Seguimos até o condomínio do seu pai – Jon me disse, enquanto nos preparávamos para seguir viagem. – Pelo que vimos lá de cima, um prédio ainda está em bom estado.
- Podemos achar muita coisa por lá – Amanda continuou. – Armas, roupas, comida. Isso, se tudo já não tiver sido saqueado.
A ideia fez meu estômago se contorcer, mas não de fome. Desde a separação de meus pais, aquele condomínio era meu destino certo nos fins de semana. E quantas vezes Dimas e eu tínhamos matado aula e corrido para lá, para jogar videogame e assistir filmes? Meu pai trabalhava o dia todo e se alguma vez desconfiou que usávamos sua casa para fugir da escola, nunca disse nada. Eu tinha roupas, livros, objetos pessoais lá. Pensar em tudo sendo revirado e levado por estranhos não era nada animador.
- Vamos seguindo, devemos estar perto agora – Jon nos convocou.
Atravessamos até a outra margem do rio. Estávamos num ponto raso, então pudemos passar pela água mesmo. No ponto mais fundo, o rio me cobria até os ombros, o que nem de longe era um impedimento. Íamos segurando as mochilas em cima de nossas cabeças, eu segurando também a de Dimas, que juntara um segundo peixe ao primeiro que ele pescara, e levava a estaca com cuidado para não deixar nosso almoço cair.
Seguimos molhados, mas extremamente satisfeitos. Seja por nosso ânimo ter melhorado um pouco ou pela luz do sol ter tomado conta de tudo, o trajeto pareceu mais convidativo, menos opressor. Aquela parte da floresta era agradável e fresca, os troncos das árvores, mais finos e retorcidos, se dividiam em galhos espaçados que eram ornados de poucas folhas, o que permitia que o sol penetrasse sem grandes obstáculos.
Vi com surpresa um macaquinho se mover sorrateiro e um pica-pau buscar alimento batendo com o bico no tronco de uma árvore. Os pássaros faziam uma festa afinada e orquestrada, e no topo das árvores vi alguns deles voando.
Herick apontou para um mico que pulava satisfeito de um galho a outro. Dimas, Perla, Herick e eu nos olhamos e sorrimos ante aquela visão incomum. Por um momento esperei ver a Bela Adormecida sair por entre as árvores cantando uma música, seguida por um séquito de animais amigos fantasiados de Príncipe Encantado.
Gaspar, Jon e Amanda seguiam à nossa frente, e o que antes parecia uma distância casual, ocasionada pelas paradas que meus amigos e eu fazíamos, se tornou uma clara separação. Cheguei a me censurar por estar ficando paranóico, mas não tinha como se enganar em relação aquilo. Quando nos apressávamos para acompanhá-los, eles aceleravam o passo e, de novo, nos deixavam para trás. E não iam em silêncio. Eu podia ouvir murmúrios, resmungos. Eles conversavam alguma coisa e não queriam que nós escutássemos. Se havíamos chegado ao ponto de guardar segredos uns dos outros, já não éramos mais um grupo, e não falava só por eles. Eu também não contara a ninguém sobre meus conhecimentos sobre Rhea, sobre o fato de eu saber o nome dela antes que ela própria o revelasse, sobre como eu completara mentalmente uma frase que ela estava proferindo.
Jon e sua turma pararam de repente, olhos à frente. Corremos até eles, dessa vez não iríamos ser deixados para trás.
Eles tinham parado nos limites de uma imensa clareira. A relva ali era mais clara e abundante. O condomínio estava a nossa frente. Os prédios eram distribuídos de modo a formar um U, com duas fileiras paralelas, e um prédio no final, no meio das duas. Era nesse que meu pai morava.
- Com você agora, Edie – Amanda disse. – Você conhece o lugar.
Arrumei a mochila nas costas e entrei na clareira. O portão de ferro que circundava o condomínio desaparecera, assim como a guarita da entrada e os carros dos inquilinos. Posicionei-me entre os dois primeiros prédios, ou entre o que restara deles, montanhas de escombros amontoados no chão. Eu era minúsculo ante aqueles esqueletos de concreto, que dois dias antes tinham sido o lar de centenas de pessoas. O prédio onde meu pai morava continuava de pé. De onde eu estava, podia vê-lo se erguer estranhamente solitário, como a primeira rosa que nasce das cinzas de uma área incinerada.
 - É aquele lá – eu apontei para o fim do corredor de destruição. – É onde meu pai morava.
E sem dizer mais nada, começamos nossa caminhada.

31.
A cada passo que dávamos, a sensação de estar em uma cidade fantasma crescia a ponto de ficar palpável.
Nossos pés amassavam a relva verde e exuberante e um som de arraste, quase como se estivéssemos pisando em um tapete felpudo, era tudo o que ouvíamos. Me perguntei se o asfalto que deveria estar ali, as pistas por onde os carros iam e vinham, estava encoberto ou teria mesmo desaparecido.
- Está tão quieto aqui – Gaspar disse, colocando as mãos no revólver que trazia no coldre de ombro improvisado, quase sem perceber.
Alguns murmuraram concordando, mas ninguém falou nada.
Andávamos em um ritmo constante, pouco parando ou observando. Íamos olhando para frente e só para frente, como se a visão da pilha dos prédios destruídos pudesse trazer à tona fantasmas raivosos e inconformados, reivindicando mais uns poucos momentos de vida.
A travessia pelos blocos A, B, C e D foi tranquila e rápida, e já estávamos na metade do caminho antes que percebêssemos. O prédio onde meu pai morava se mostrava cada vez mais imponente e inacreditável, uma torre de fantasia, um oásis em meio à destruição.
- Shhh – Jon disse, levantando o braço para deter nossos passos. – Ouvi alguma coisa.
Olhamos para os lados em alerta, preocupados. Os cabelos de minha nuca se arrepiaram de repente. O vento soprava as copas das árvores nos proporcionando uma trilha sonora macabra e dispensável. Foi quando ouvimos claramente um som. Um pequeno deslizamento vindo da ruína de um dos edifícios.
Cada um olhou para um lado diferente, sem saber exatamente de onde o som vinha. Formamos um círculo, um de costas para o outro, encarando os prédios reduzidos a montes de entulho, móveis e lembranças. Lembrei do terremoto, o primeiro, e de quantos tinham sido pisoteados no colégio, quantos estavam sepultados sob os escombros da ala principal. Sacudi a cabeça para me livrar de pensamentos pouco úteis no momento, que incluíam pessoas se remexendo embaixo daquele monte de concreto, querendo viver mais um pouco.
- Acho melhor irmos em frente – Amanda disse. – Este lugar está me dando arrepios.
- Mas vamos ficar de olho – Jon retrucou, o revólver firme em sua mão.
Os sons de deslizamento nos seguiram prédio após prédio, mesmo que nada estivesse à vista. O ritmo de nossos passos se acelerou, e eu me percebi ofegante à medida que nos aproximávamos do Bloco I, lar do meu pai.
- Olha lá, cara.
Herick estava apontando para o primeiro dos nove andares do Bloco I. Diferente dos demais, cujas janelas estavam fechadas, algumas cobertas por cortinas, outras abertas, mas vazias e tristes, como olhos cegos mirando o nada, um movimento incomum e extremamente reconfortante prendeu nossos olhos.
- É gente. É gente! – Gaspar berrou antes de explodir em uma gargalhada.
- O que é que eles estão fazendo? – ouvi Perla murmurar ao meu lado.
De onde estávamos já podíamos ver bem. Cerca de uma dúzia de pessoas se projetava das janelas escancaradas, abanando os braços com energia, quase rispidez, de modo a chamar nossa atenção. O vento trazia palavras e frases gritadas por eles, mas eu não conseguia entender nada.
- Será que eles estão bem? – eu perguntei para o resto do grupo, que apertou o passo para chegar mais rápido ao prédio.
- Claro – Dimas respondeu, já ofegante. – Só estão querendo que a gente veja que eles estão ali e...
Foi quando a perna de Dimas subiu no ar e ele caiu com as costas no chão. Perla soltou um grito breve de surpresa e num piscar de olhos todos estávamos agrupados em volta de meu amigo.
- Que droga!
Dimas tinha escorregado em alguma coisa que tínhamos deixado passar, tamanha era a empolgação de abreviar a jornada. Herick e eu içamos Dimas pelos braços, e ele já estava de pé em um minuto.
- Ai, você se machucou. – Amanda pegou o braço de Dimas, que estava rubro de sangue.
- Não... – Dimas conseguiu dizer. – Não é meu.
E não era mesmo. A queda não tinha machucado Dimas, mas o que estava no chão tinha sujado seus braços e as costas de sua camisa. Dimas escorregara em um pedaço de carne banhado em sangue. E sangue recente, o que era pior.
- E isso, agora? – Jon se abaixou para examinar aquilo. Tinha uma coloração arroxeada e lembrava horrivelmente o pedaço de um intestino. Um intestino humano.
Foi quando os pelos de minha nuca se eriçaram de novo. E não só eles, todo o cabelo do meu corpo se arrepiou ao mesmo tempo e uma estranha sensação gelada invadiu meu estômago.
- Levanta daí, Jon – eu disse, meus olhos fixos na galera que estava no prédio, ainda agitando os braços, ainda gritando alguma coisa.
E ouvimos um riso. Um som estridente e macabro que nos fez chegar perto um dos outros. Era único no início, mas depois se multiplicou, como se algo chegasse por todos os lados, nos cercasse, e quisesse anunciar isso.
Foi então que um animal surgiu no topo dos destroços do Bloco E. Escalara as ruínas por trás, fazendo sua cabeça surgir primeiro, depois o corpo esguio. Parecia um lobo, mas era mais magro e um pouco maior. Tinha um focinho longo, olhos amarelos e brilhantes, pelo marrom salpicado de cinza.
- Que porra é essa? – Amanda falou, tirando sua pistola do coldre.
Eu sabia.
- Hiena. Uma hiena.
Mas não era apenas uma hiena. Eu mal tinha acabado de falar e outra hiena apareceu atrás da primeira, e outra atrás desta. À nossa volta, os animais apareciam por detrás dos escombros, saíam por aberturas no concreto, surgiam no topo dos destroços. Não tinha um prédio destruído que não estivesse amontoado com os bichos, que tinham nos olhos malignos uma expressão clara e reconhecível. Fome.
 Os risos estridentes tomaram conta do ar, e não conseguíamos ouvir mais nada. Era enlouquecedor. Estávamos vulneráveis no meio daquele corredor polonês, em clara desvantagem. O Bloco I, que antes parecera tão próximo, estava quase inalcançável e as palavras que as pessoas gritavam de lá eram, com certeza, corram, fujam.
Farejando nosso medo, as hienas aos poucos iam abandonando suas fortalezas de concreto e avançando em nossa direção. As bocarras abertas deixavam escapar uma baba espessa e nos davam um vislumbre de suas presas afiadas.
E sem esperar reação, a primeira atacou.

32.
O animal dobrou as patas traseiras para ganhar impulso e saltou em nossa direção. Presas a mostra, assassínio nos olhos. Com aquela ânsia e fúria podia estraçalhar o pescoço de qualquer um de nós.
Um estrondo se vez ouvir em toda a clareira, e um flash de luz chamou minha atenção, mas não o suficiente para eu perder o que aconteceu em seguida. A poucos centímetros de nós, a cabeça da hiena explodiu como um Big Bang de sangue, cérebro e ossos. O corpo do animal desabou no chão, inanimado.
Foi só aí que eu olhei para o lado, e minha surpresa foi grande o suficiente para me fazer cair de joelhos, mas eu consegui me manter em pé. Estava esperando que Jon, Amanda ou mesmo Gaspar tivessem sido responsáveis pelo tiro certeiro que mandou a hiena para o inferno dos bichos, mas era Perla. Os olhos fixos, os lábios contraídos, os braços estendidos à frente, a pistola firme em suas mãos. O estrondo do tiro e o destino de uma de suas companheiras assustaram a alcatéia de hienas por um segundo, mas só um segundo mesmo.
- Corram!
Jon gritou e não precisamos de um segundo comando para obedecer.
As hienas correram atrás de nós, todas ao mesmo tempo, como uma onda teleguiada. Embora elas viessem por todos os lados, eram as que estavam na frente que nos preocupavam mais, pois eram um obstáculo palpável entre nós e a segurança do edifício intacto.
Repentinamente, os risos dementes dos bichos não eram os únicos sons penetrantes naquele campo de batalha inusitado. Estampidos de tiros, aos montes, começavam a ferir nossos ouvidos, enquanto hienas mortas caíam no chão, uma atrás da outra.
Jon, Gaspar, Amanda e Perla comandavam a matança dos bichos, mas para cada uma que caía, outras cinco surgiam como monstros kamikazes. Herick corria a meu lado, surpreso, mas raivoso, saltando a cada investida dos animais que não arrancavam pedaços de suas pernas por poucos centímetros.
Era inacreditável a quantidade de hienas que nos cercava. Elas acompanhavam nossos passos, avançando vez ou outra, sendo repelidas por chutes, mas voltando mais raivosas e sedentas.
 Cansada de rodear e amedrontar, uma hiena saltou, mirando o pescoço de Dimas, babando de desejo. Dimas se voltou a tempo de levantar a estaca que carregava. O bicho voou direto para a morte com um ganido baixo e breve. Dimas levantou a estaca e a sacudiu com força, fazendo a hiena voar e se chocar com uma irmã, que se preparava para armar o bote. Os peixes foram junto. Nada de almoço dos sonhos.
Quando a clareira virou um campo de concentração para as hienas, o resto do bando parou de enrolar e se voltou contra nós com fúria demente. Se retraçando em suas patas traseiras, as hienas se jogavam contra nós, mordendo, rugindo, rindo. A porta do Bloco I já estava a poucos metros, só mais uns passos e estaríamos salvos.
Os tiros que até então pipocavam, cessaram de repente. As balas tinham acabado e parar para recarregar estava longe de ser uma opção. Mais hienas avançavam por ar e por terra, e entre pulos e chutes, gritos de dor eram ouvidos quando uma presa arranhava uma perna ou um braço.
Pela porta de entrada transparente do Bloco I, podia-se ver uma movimentação intensa e apreensiva, todos esperando que estivéssemos próximos o suficiente para nos deixar entrar. Pelo menos assim eu esperava.
Um rosnado próximo demais me fez vacilar um segundo, e uma dor excruciante subiu pela minha perna, endurecendo meus quadris. Uma olhada para baixo e eu vi uma das hienas com as presas agarradas à minha perna, a pressão era tão forte que eu pensei que ela fosse explodir.
Ouvi Perla gritar e imaginei que fosse por minha causa. Com apenas uma perna disponível, pendi perigosamente para frente, se eu caísse seria um homem morto. Movido por um impulso inexplicável - como os que passaram a me assolar desde o início de toda aquela loucura - joguei minha perna para frente, com força, o mesmo gesto que faria um atacante prestes a marcar o gol de sua vida.
A hiena largou minha perna e saiu voando, derrubando suas irmãs que ainda estavam em nosso caminho e indo se chocar contra a porta transparente do Bloco I. Uma rachadura se formou com a pancada, mas a porta se manteve inteira, e eu respirei aliviado por ela ser blindada.
Com o resto do caminho aberto como se fosse o mar vermelho, continuamos nossa maratona antes que as hienas voltassem à ativa novamente. Dimas e Herick praticamente me carregaram pelo resto do caminho.
As hienas se reagruparam rapidamente e se voltaram contra nós, mas era tarde demais. Chutando o corpo do bicho que jazia à porta do Bloco I, Jon nem precisou bater.
- Rápido, pelo amor de Deus, homem - berrou uma voz familiar. Não familiar ruim, como era Rhea, mas familiar boa, que trazia lembranças dos domingos na casa de meu pai, dos passeios pelo condomínio, do som da gaita.
- Tyson? – chamei, e a porta se fechou.
O hall do Bloco I estava escuro e um tanto abafado. Minha visão turva detectou a presença de muitas pessoas. Vinte, trinta, não consegui contar.
- Fala comigo, cara – era a voz de Dimas, distante. – Edie...
Minha perna doía horrivelmente, queimava, parecia que ia inchar e implodir.
Alguém apertou minha mão.
- Edie – era voz de Tyson, preocupada, mas ainda descontraída. – Edie, fala comigo...
E eu apaguei.

FIM DA PARTE 1

Continua...

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Livro: A Floresta (Cont.)

É aqui que as coisas começam a ficar estranhas. Ou mais estranhas. Entra em cena uma personagem que vai ajudar Edie a decifrar toda a trama por trás da floresta.


J.C.

25.
Um cheiro delicioso de carne assada me acordou de um sono sem sonhos.
Estava em um quarto pequeno, mas aconchegante. As paredes eram feitas de ripas de madeira e estavam cobertas de fotos de família. A cama era tão confortável que parecia que eu estava deitado em nuvens. Demorei a levantar, não querendo perder aquela mordomia, mas o rumor de conversas vindas do outro cômodo era tão irresistível que tive que sair da cama.
Reparei no porta-retrato em cima do criado-mudo, também de madeira. Em uma foto antiga, uma jovem de cabelos amarelos e rosto bonito sorria. Era Rhea, pude reconhecer, uma Rhea bem mais jovem.
- Rhea – eu murmurei. – Como é que eu te conheço?
Uma explosão de risadas me arrancou do quarto. Segui o ruído das conversas e atravessei um corredor estreito e nu até chegar a um cômodo amplo, uma mistura de sala de estar e cozinha.
Numa lareira de tijolos, uma fogueira crepitava iluminando meus amigos. Eles rodeavam Rhea, que estava sentada em uma poltrona antiquíssima e fofa. Tudo na sala era feito de madeira, mas em nenhum momento isso passava uma ideia de algo tosco ou rude. Era um ambiente que irradiava nostalgia e tranquilidade.
- Edie. – Dimas se levantou de uma pilha de almofadas jogadas no chão. – Você está bem?
- Claro. – E estava mesmo.
- Você desmaiou de repente...
- É só fome – Rhea cortou Dimas, e se levantou da poltrona. – Mas vamos resolver isso rapidinho. A sopa está quase pronta.
Rhea atravessou o cômodo parar chegar ao espaço destinado à cozinha. No fogão, que parecia um calhambeque de tão grande, uma imensa panela de metal fumegava. A velha misturou a sopa lá dentro com uma colher de pau. O cheiro era tentador.
- Já vou tirar a carne do forno – ela disse, extinguindo o fogo sob a panela de metal. – O pessoal que esteve aqui ontem me ajudou, eu tenho bastante carne lá fora, vocês viram.
- Senta aqui, Edie – Amanda convidou-me para as almofadas.
Dimas e eu nos sentamos, o fogo nos esquentava e animava. Era bom estar em uma casa de novo.
- Vocês estavam se divertindo – eu disse.
- A Rhea é ótima – Jon falou, sorrindo. – Uma figura muito interessante. Cem anos, segundo ela.
- Ela nos deixou dormir aqui – Liana disse. – Achei uma boa, não íamos conseguir chegar ao condomínio hoje de qualquer jeito.
Era bem verdade. Tínhamos errado com relação à distância, e embora meu desejo de chegar logo ao apartamento de meu pai fosse imenso, não era muito prudente se arriscar sem motivo.
- Agora pronto, crianças – Rhea disse do fogão. – Hora de comer, vão lavar as mãos. Lá fora tem uma pia com uma tina de água. Vocês devem ter percebido que eu não tenho água encanada aqui.
Fomos em fila indiana para fora. A casa de Rhea era uma bela e simples construção em madeira localizada entre duas grossas e onipotentes árvores. Vista de determinados ângulos, a casa e as árvores pareciam se fundir.
Ao lado das duas árvores protetoras ficavam o banheiro (do lado esquerdo) e a pia (lado direito).  O bangalô de madeira se localizava bem no centro de uma clareira circular, com as mesmas árvores baixas e tortas delimitando seus domínios. Também ali, pedaços de carne pendiam nos galhos.
Lavamos as mãos, um por vez, o cheiro de comida caseira nos alcançando mesmo ali fora. A lua cheia iluminava a pequena clareira como um holofote, fazendo reluzir os pedaços de carne. E foi quando algo me chamou a atenção. Estava pendurado nos galhos baixos, numa árvore bem próxima. Parecia uma enorme peça de roupa, não consegui identificar se uma calça ou uma camisa, pois estava dobrada. Não era muito higiênico secar roupas no mesmo lugar onde de colocava a carne, e isso fez soar um alarme na minha cabeça, o mesmo que disparara logo que encontramos Rhea na trilha. De repente, o cheiro das carnes me pareceu forte e enjoativo, e o que eu via pendurado no galho parecia menos com uma peça de roupa e mais com...
- Vamos, Edie. Estou morrendo de fome.
Amanda nos guiou de volta para dentro. Mesmo com dúvidas e receios, eu também estava morrendo de fome.

26.
Rhea preparou uma mesa farta para nós, que não sabíamos o que era comida de fogão há dois dias. Uma tina com sopa fumegante ocupava o centro da mesa, junto com um pão caseiro branquinho e fofo, cortado em rodelas. Uma peça de carne assada rodeada de cebolas grelhadas completava o banquete.
O cheiro era delicioso, e não sei como me aguentei para não avançar para a refeição, enfiando tudo na boca como um animal selvagem. Esqueci por completo as frutas guardadas nas mochilas, que já não pareciam tão apetitosas.
- Vamos, crianças – Rhea nos encorajou, sentada à cabeceira da mesa. – Podem se servir, vamos.
Não havia talheres na mesa, só uma enorme faca incrustada no pedaço de carne, mas não era por um esquecimento de Rhea. Vimos como ela se servia e imitamos. Rhea pegou sua cuia, todos tínhamos uma, e mergulhou na tina de sopa. A cuia voltou cheia e molhada e Rhea não demorou em levá-la a boca, bebendo a sopa como se fosse um suco.
Me lembrei de imediato de uma estranha mistura que minha mãe fazia quando queria emagrecer. Era uma sopa, pelo menos ela dizia que era, onde se misturavam todos os temperos possíveis e imagináveis. Quando pronta, a mistura tinha consistência e cor de vômito, além de um cheiro insuportável. No início, minha mãe servia a sopa em um prato, e tomava com colher como se fosse comida de verdade, mas a tortura era tão tremenda que ela passou a colocar a mistura num copo e beber num só gole, para acabar com aquilo de vez.
A sopa vermelha escorreu pela boca de Rhea, pingando de seu queixo ossudo. Por um momento, todo meu apetite se extinguiu, e uma onda de repulsa e asco me dominou vinda de lugar nenhum. Jon, sentado a meu lado e indiferente a meus engulhos, mergulhou sua cuia na tina de sopa e a entornou, bebendo tudo num gole só. Minha barriga roncou alto para me lembrar que não era hora para frescura.
- Está uma delícia, Rhea – Amanda disse, se servindo de sopa pela segunda vez. – Tem um gosto que eu não consigo identificar, é de legumes?
Rhea limpou a boca com a manga do vestido e sorriu para Amanda. Deixei minha cuia cair com um estrondo na mesa ao ver os dentes de Rhea cobertos de sangue. Levantei-me com um pulo, mas uma segunda olhada me fez ver que seus dentes estavam alvos, como sempre foram.
- Calma, Edie – Jon disse, também se levantando. – O que foi?
Minha sopa se espalhara pela mesa, tingindo-a de vermelho. Procurei um guardanapo próximo, mas não tinha nenhum.
- Desculpe, acho que... Pensei ter visto uma coisa. A luz me pregou uma peça, foi isso.
Rhea apareceu com um pano nas mãos e um sorriso no rosto.
- Tudo bem, foi só um engano. Temos sopa suficiente.
Enxuguei a mesa molhada com o pano puído de algodão. A sopa vermelha sendo absorvida pelo algodão branco me deu mais uma sensação estranha, incômoda. A sopa de Rhea revirou no meu estômago e quase fez o caminho contrário para ser expulsa pela minha boca. Mas consegui me segurar.
- Senta, Edie – Perla falou. – Você deve estar fraco, com fome.
Todos na mesa dividiam a mesa opinião, eu podia dizer só de olhar seus rostos. Se eu continuasse tendo ataques como aquele, ia ser abandonado no meio da floresta, como João e sua irmãzinha Maria.
João e Maria, pensei. O que João e Maria tinham a ver com aquilo? Uma lembrança antiga tentou emergir de minha cabeça. Nada. Mas o caminho era aquele, com certeza. João e Maria... Balancei a cabeça para me livrar de ideias tão sem sentido.
Sentei-me novamente e os rostos da caravana me encararam, alguns preocupados, outros intrigados. Dimas, Herick, Perla e Amanda na minha frente. Jon, Gaspar, Marino e Liana ao meu lado.
- Mais sopa, criança? – Rhea se voluntariou a me servir. Eu segurei seu braço esquelético para impedi-la, e minha mão ardeu em fogo. Larguei o braço da velha, minha mão queimando, dolorida.
Rhea parou com a mão no ar, estendida em direção à minha cuia, mas sem alcançá-la. Os olhares em mim de novo. Deus, aquilo estava ficando estranho.
- Sabe... – tentei desconversar. – Parei com a sopa, já.
Rhea sorriu compreensiva, e bateu na testa com a mão.
- Claro. Não fiquem se entupindo de sopa. Ninguém comeu a carne ainda.
Um rumor de concordância correu a mesa. Dimas bateu palmas, ansioso.
- Joanatan, por favor, faça as honras – pediu Rhea.
Jon levantou para fazer o trabalho. Perdido sem um garfo para espetar o pedaço de carne, parou um segundo, pensativo e confuso. Retirou a faca estocada na carne, mas isso não lhe trouxe ideias.
- O quê, criança? – Rhea perguntou.
- É que eu preciso de um garfo... Para segurar a carne.
- Não se preocupe com isso. Pode usar as mãos, sabemos que está limpa.
- É, Jon – Dimas disse impaciente. – Corta isso logo.
 Levantando os ombros, Jon segurou a peça de carne com a mão e passou a faca, cortando-a transversalmente. A lâmina deslizou suave do início ao fim e uma fatia da carne tombou na travessa rústica.
- Muito bom – Dimas se precipitou. Pegou duas fatias do pão caseiro e imprensou o pedaço de carne entre eles, fazendo um sanduíche. – Vocês me desculpem, mas eu estou matando por um pedaço de carne.
Dimas colocou o sanduíche inteiro na boca, ficando com bochechas do tamanho de laranjas. Recostou-se na cadeira com uma expressão de puro prazer no rosto. Herick riu.
- Mais, Jon. – Herick se aproximou da travessa. – Mais um pouco.
Jon cortou mais um pedaço de carne e Herick a pegou, jogando-a direto na boca. A carne estava mal passada e a cada fatia cortada, um filete de sangue escorria, formando uma pequena poça vermelha na travessa.
- Vai um pedaço, Edie? – Jon ofereceu. Todos, com exceção de Rhea, saboreavam a carne e esperavam por mais. – Olha que eu estou abrindo mão do cargo de churrasqueiro.
- Pode ser. Me dá um pedaço.
Jon tirou mais uma fatia de carne e me entregou direto na lâmina da faca. A carne estava tão macia que eu pude dobrá-la ao meio e colocar na boca. Como carnívoro inveterado, percebi no ato que aquilo não era uma carne convencional. Revisei mentalmente os animais que viviam em florestas e imaginei qual deles eu estava mastigando. Cervos, coelhos, javalis... Desisti. Fosse o que fosse, estava uma delícia, o suficiente para me fazer querer mais um pedaço.
Peguei a faca que Jon tinha deixado ao lado da travessa e inspecionei a peça de carne, escolhendo de onde eu tiraria o próximo pedaço.
- Quero mais também, Edie – Dimas disse com a boca cheia.
Uma risadinha rouca me fez virar para Rhea. Ela estava com as mãos magrelas sobre a mesa nos observando comer.
- E você, Rhea? – eu perguntei. – Quer um pedaço?
- Não, criança. Comam o quanto quiserem.
E sorriu satisfeita, mostrando os dentes pequenos e pontiagudos, como presas de piranha.
- Droga.
Me levantei, derrubando a cadeira no chão. A faca escorregara e cortara meu dedo indicador. Um grande rasgo se iniciava no topo de meu dedo e seguia todo o caminho até o limite da palma de minha mão. Meu sangue escorria incontrolável.
- É muito fundo, o corte? – Dimas deu a volta na mesa, se aproximando.
- É melhor lavar antes que infeccione. – Era Perla.
- Pior que a gente não tem nada para colocar nisso... – Liana.
Ouvia meus amigos falando como se fosse através de um rádio mal sintonizado. Envolvi meu dedo machucado com a outra mão e o apertei em uma tentativa de estacar o sangue. Meus olhos se voltaram para Rhea que permanecia impassível, sentada à cabeceira...
Como uma rainha impiedosa, cruel. Seus olhos se mostravam famintos e predadores. Chegara a hora de comer. A bruxa ia à caça. A voz explodiu em minha cabeça de novo, e o mundo girou diante de meus olhos. Meus joelhos vacilaram e eu caí, batendo o queixo na borda da mesa.
- Segura ele, Jon – Liana gritou histérica. – Ele não está bem.
Dois pares de mãos me levantaram pelas axilas. Na queda eu mordera a bochecha, sentia gosto de sangue na boca. Meus olhos correram de novo para Rhea, e agora sim ela sorria, escancarava os dentes. Pontiagudos, mortais.
- Quem é você? – eu gritei para a velha. Ela se levantou com ar inocente, com cara de vovó. – Por que está fazendo isso?
Rhea tapou a boca com a mão. Parecia assustada e ofendida. Ninguém estava entendendo nada.
- Criança... – ela começou.
- Ele não sabe o que está falando, Rhea – Jon disse, me mantendo de pé. – Ele está mal, delirando...
- Não... – eu balbuciei.
- Vamos levá-lo lá para fora. – Herick correu para abrir a porta. – Tomar um pouco de ar, lavar os ferimentos.
Jon e Dimas me carregaram para fora da casa da Rhea. O ar frio da floresta me estapeou com força e eu berrei alucinado, querendo ser compreendido.
- Vamos sair daqui!
- Calma, Edie – Jon falava baixo, aflito.
- A bruxa sai para caçar – eu continuei desesperado. – Nos caçar. A bruxa!
Senti meu corpo contra a pia de concreto. Dimas pegou minha mão e mergulhou na bacia de água gelada. Uma ardência subiu pelos meus dedos e atingiu minha espinha, me encolhi de surpresa e dor. Dimas esfregava minha mão para se livrar do sangue. Os outros rodeavam a pia de concreto, me encarando como se eu tivesse enlouquecido, surtado.
- Cadê o Marino? – perguntei aflito, minha cabeça virando de um lado para o outro na busca. – Cadê ele?
- Edie... – Jon conseguiu dizer, estava assustado de verdade.
- MARINO!
E aí eu vi. Saindo da casa, amparando Rhea que andava lenta e dolorosamente.
- Sai daí – eu gritei. – Larga dela!
- Edie, para! – Dimas me sacudiu. – O que é que você está fazendo?
Empurrei Dimas com força e me desequilibrei ao ser largado por ele. Recuperei o prumo e me afastei de Jon, que tentou me segurar.
- Edie! – Perla gritou.
Não dei atenção. Corri em direção às árvores, aos galhos que serviam de varal para Rhea. Os pedaços de carne, tantos pedaços de carne, agora eu sabia de quem eram. Sabia. Meu estômago revirou de novo, eu não conseguiria segurá-lo dessa vez.
Agarrei o que eu achei que fossem roupas, camisas, calças... Deus, não estava na cara desde o início? A textura daquilo me deu asco, tocar aquilo era insuportável. Jon me agarrou pelos ombros, tentando me deter.
- Edie, se controla. Droga!
- Não! – eu gritei
Com um puxão forte, arranquei dos galhos a pele humana que ali descansava. Jon também me puxou e nós dois caímos de costas no chão. Jon gritou de horror e repulsa. Sentei-me para contemplar o que eu já sabia, e vi o invólucro de um ser humano em cima de Jon. Era como se, de alguma forma, o esqueleto e os órgãos de um homem tivessem sido retirados por mágica e só a capa que envolvia essa estrutura tivesse restado. Era disso que Jon tentava se livrar.
- Tira isso de mim! – ele gritava. – Tira!
Amanda chegou correndo e viu a pele que cobria Jon. Uma careta de nojo deformou seu rosto lindo e ela jogou o resto do que fora um ser humano para longe. Jon levantou, se espanando como se isso de alguma forma fizesse aquela experiência desaparecer.
- Que merda – Amanda gritou. – Era a pele de alguém... Toda a pele...
E ela voltou sua atenção para as carnes penduradas nos galhos. Seus olhos se arregalaram com a compreensão.
- A carne... A carne...
Dimas cobriu a boca, impedindo um jato de vômito de sair. Perla não se restringiu, caiu de joelhos e vomitou uma mistura de sólido e líquido. Ela tremia, chorava e vomitava em um ciclo que parecia interminável.
- Minha Nossa Senhora... – Jon disse por fim.
- Foi um jantar adorável, não se desfaçam dele agora – uma voz rouca e potente disse. A voz de Rhea, mas parecia que ela tinha sido amplificada.
Nos viramos para encará-la ao mesmo tempo, quase como se tivéssemos ensaiado. Emoldurada pela porta de madeira, lá estava Rhea. Ou algo muito parecido com ela. Seus ombros tinham se alongado e engrossado, sua postura, antes encurvada e frágil, agora era altiva, perigosa. O vestido preto se rasgara na altura dos quadris, revelando uma pele dura e marrom, uma armadura. Mas o que fazia toda a diferença era o rosto, nada mais de pele enrugada e caída, nada mais de boca pequena. O rosto se alongara, chegando próximo à aberração, a pele agora assentava todo ele. Um sorriso demoníaco e debochado revelava seus dentes de piranha, os dentes que eu vira à mesa.
- Marino! – Liana gritou, desesperada.
Seu namorado estava ajoelhado, nos encarava suplicante. Rhea o segurava com uma chave de braço, que eu tinha certeza, já tinha esmigalhado os ossos de Marino.
- Por favor... – Marino balbuciou, fraco. – Por favor...

27.
De repente, as vozes da floresta pareciam sussurrar obscenidades e pragas. O ar ficou pesado com chumbo, frio com se estivéssemos em pleno inverno no hemisfério norte. O chão mexeu um pouco, eu quase caí de novo.
- Solta ele! – Liana gritou, as lágrimas lavando seu rosto, seu hálito se transformando em uma névoa branca.
- Digam-me, então, crianças... – Rhea falou com sua voz de trovão. – O jantar estava à altura?
Perla cobriu o rosto com as mãos, estava chorando.
- O que quer da gente? – eu perguntei, a voz firme, alta.
Rhea torceu com mais força o braço de Marino. O estalo do osso ecoou na clareira silenciosa. Marino gritou de agonia e Liana o acompanhou.
- Eu quero que vocês respondam minha pergunta – Rhea tornou com raiva. – Estava à altura, meu jantar? Estava, garota linda?
Rhea olhou para Perla sorrindo com malícia. Perla caiu de joelhos, aos prantos. Limpava a boca com as costas das mãos com a habilidade de um obsessivo compulsivo.
- Quer botar tudo para fora? – Rhea perguntou, parecendo mortalmente desapontada.
Um trovão reboou ao longe, mas não havia nenhuma formação de nuvens no céu. Rhea apontou um dedo longo e esquelético para Perla, que se curvou para o chão, gritando de dor.
- Para! – eu gritei, impotente. – Para com isso!
Rhea gargalhou em êxtase e, de repente, Perla estava vomitando novamente. Mas desta vez não era um jato, era uma enxurrada de vômito vermelho e gosmento. Ela estava de quatro no chão, a boca aberta despejando tudo o que ela comera hoje, ontem, sempre.
- Para! – tentei de novo.
Rhea continuava com o dedo em riste, apontando para Perla, que perdia as forças e caía lentamente no rio formado por seu próprio vômito. Olhávamos aquilo sem ação, paralisados. Vi uma substância amarelada misturada com o vermelho intenso. A bílis. Meu Deus...
E eu senti o que muito provavelmente Bruce Banner sentia poucos segundos antes de se transformar em Hulk. Meu sangue ferveu, a raiva aqueceu meu corpo de cima a baixo, não me surpreenderia se fumaça estivesse saindo dos meus ouvidos.
- PARA COM ISSO! – Eu soquei o chão, colérico, incontrolável.
E eu causei um tremor. O chão dançou em nossos pés por um momento e uma fenda se abriu no lugar que eu golpeara, se alastrando até a porta da casa de Rhea. Ela se voltou para mim, a surpresa estampada em seu rosto monstruoso. Funcionou. Rhea desviara a atenção de Perla, que parara de vomitar. Amanda e Dimas correram para ajudá-la.
- Agora, você vai sair do caminho – eu ordenei.   
Rhea riu da minha cara, o que não me deixou menos combativo. Tinha qualquer coisa em mim que queria um confronto, pedia por ele. Talvez fosse a adrenalina, ou eu estivesse mesmo ficando louco.
Mais uma torção no braço de Marino. Suas pernas dançaram no ritmo da dor, parando em ângulos estranhos. Rhea aproximou o rosto do pescoço dele. Da sua boca, uma língua grossa e pestilenta saiu como uma cobra sairia da toca. A língua nojenta passeou pelo pescoço de Marino, deixando um rastro vermelho de dor e queimação. Liana chorou mais alto.
- Vem, criança – Rhea me desafiou. – Banca o herói, salva o dia. Tenta. Dá um passo para ver o destino de seu amiguinho.
Não tinha medo ou hesitação no olhar de Rhea. Lembrei de algo que ouvira há algum tempo, mas não conseguia me lembrar onde. Alguma coisa a respeito de monstros, que os monstros eram seres sem consciência. Naquele momento eu entendi o que aquilo queria dizer.
- Nos deixe ir – eu falei. Eu não era um monstro, tinha consciência, medo, e minha voz tremeu. Ponto contra. – Não precisa da gente.
Rhea riu debochada.
- Você tem comida. – Eu apontei as carnes penduradas. – Mais do que pode aguentar.
- Pode ser. – Rhea me encarou. – Mas eu sempre prefiro carne fresca.
Rhea atacou o pescoço de Marino, seu maxilar se expandindo para baixo, deixando sua boca imensa, inacreditável.
Liana gritou de horror, e Rhea arrancou com sua bocarra metade do pescoço de Marino. A metade restante não aguentou o peso da cabeça e tombou para o lado. A cabeça de Marino estava deitada em seu próprio ombro, apenas alguns ligamentos e um naco de pele mostravam que um pescoço existira ali, unindo torso e cabeça há menos de cinco segundos.
Exclamações de horror e indignação cresceram ao meu redor, meus companheiros se dividiam entre o choque e o medo. Perla, quase inconsciente, era a única calada. Amanda e Dimas, que a seguravam, lançavam maldições e pragas. Herick e Gaspar partiram para uma ação mais concreta, atirando pedras que nem chegaram a encostar em Rhea, e os olhos de Jon dançavam pelo chão, pelas árvores, pelo ar, como se a nossa salvação estivesse escondida em algum desses lugares.
Rhea engoliu o pedaço que arrancara de Marino e soltou um arroto sonoro. Gargalhou, maligna e indiferente, seus olhos brilhando de odiosa satisfação.
- Delícia – ela disse. – Carne fresca, não tem nada melhor. Eu não preciso nem falar, vocês sabem como é.
E jogou o corpo inerte de Marino para o lado. Ele fez uma dança macabra pelo ar antes de cair, o rosto virado para o chão, as pernas abertas, quase vulgares.
- FILHA DA PUTA.
Liana gritou e avançou contra Rhea, a voz de choro, os olhos vermelhos de raiva. Minha voz ficou presa na garganta, mas eu sabia que o ataque a Marino tinha sido só um aperitivo. A mão de Rhea adquiriu um brilho esverdeado, parecia que ela segurava a maior esmeralda do mundo.  Ela jogou a mão brilhante para trás, como se estivesse se preparando para jogar uma bola, e foi exatamente isso que saiu de sua mão: uma bola verde incandescente que ela jogou contra Liana.
A bola brilhou todo o caminho até o peito de Liana, e entrou em seu corpo sem barreiras, como se fosse feita de pura luz. Liana foi jogada para trás com uma força inumana, seus pés riscando o chão, levantando poeira. Rhea balbuciou palavras ininteligíveis antes de cair na gargalhada, e Liana foi suspensa do chão. Seus gritos de agonia eram os mais pavorosos que eu já ouvira na vida.
Corri até ela, Dimas e Herick fizeram o mesmo. Mas antes de chegarmos perto, o corpo de Liana se dobrou ao meio, a testa encostou nas pernas esticadas à frente, e quando ficou ereto de novo, foi só para seu esqueleto ser expulso do corpo por um rasgo imenso que dilacerava toda sua parte traseira. Um tsunami de sangue acompanhou o esqueleto completo de Liana que pairou no ar por um segundo, antes de cair no chão, os ossos quebrando numa sucessão angustiante.
Minhas pernas cederam ante aquela visão e eu caí, os olhos arregalados ainda vendo aquela pálida e repulsiva versão de nossa amiga. Com o esqueleto removido, a carne, os órgãos e a pele de Liana pareciam uma estranha fantasia ou uma daquelas capas que protegem vestidos. O grito de Amanda nos envolveu a todos e os restos de Liana se entulharam no chão com um som molhado e repulsivo.
Dimas vomitou nos próprios sapatos, Herick caiu de joelhos no chão, os olhos marejados, o rosto transfigurado numa careta de horror.
- Dois em oito – Rhea riu-se. – Devo continuar?
Tomando nosso silêncio como resposta, Rhea levantou os braços e o chão tremeu de novo. Pedras minúsculas pipocavam do solo enquanto tentávamos nos manter de pé. Foi aí que uma raiz afiada emergiu do chão, não acertando meu pé por um milímetro. Outras vieram logo em seguida tentando me alcançar, pareciam cobras atiçadas por um encantador.
- Corram! – Jon gritou e escapou com um pulo de uma raiz particularmente grossa que quase agarrou seu pé.
Não tínhamos muito espaço naquela clareia, Rhea fechava a passagem adiante, e se voltássemos pelo caminho que tínhamos vindo, as árvores acabariam com a gente. Só podíamos correr como baratas tontas no espaço circular da clareira enquanto as raízes rompiam o solo e nos caçavam.
Não demorou para o primeiro de nós ser pego. Uma raiz perfurou o pé de Gaspar o derrubando de costas. Outra se enroscou em sua cintura e se elevou, mantendo-o preso como um troféu nas alturas.
Amanda sacou a pistola e atirou em uma raiz que avançava contra ela. A coisa se partiu em duas, mas a parte ligada ao solo não desistiu da caçada. Amanda mirou, mas foi surpreendida por seis raízes que saíram do chão, envolvendo-a como em uma gaiola. A raiz deformada se esgueirou para dentro daquela prisão natural e golpeou seu braço. A arma voou longe.
Jon nem teve tempo de usar sua arma, foi pego pelos braços e suspendido no ar assim como Gaspar. Perla e Dimas foram pegos juntos, uma raiz os envolveu pela cintura, seus braços colados aos corpos.
- Herick! – eu gritei. – Abaixa.
Ele obedeceu e uma raiz passou reto por onde sua cabeça estaria. Com o corpo dobrado, Herick correu para o lado, eu segui em seu encalço. Rhea mexia os braços como se estivesse orquestrando o ataque.
- Faz alguma coisa, Edie! – Herick gritou enquanto pulava por cima de uma raiz que por pouco não pegara seu pé.
- O quê?
Uma raiz veio direto em minha direção, na altura dos meus olhos. Como se tivesse vida própria, meu braço se ergueu, segurando a raiz antes que ela me atingisse o rosto. Senti a coisa se contorcendo em minha mão, irada, impaciente. Segurei-a com as duas mãos e puxei com força. Uma das árvores nanicas de Rhea afundou no chão com violência.
Herick gritou e eu o vi sendo suspenso por duas raízes, uma lhe prendendo os pés, a outra, os braços acima da cabeça. As raízes se voltaram contra mim, o alvo remanescente.
Corri me livrando delas, parecia um medalhista olímpico em uma prova de obstáculos. Ouvia meus amigos gritando por mim, para mim. Rhea entrou em meu campo de visão, precisava chegar até ela, distraí-la como fizera da última fez.
Chutei uma raiz que tentava se enroscar em minha cintura, e avancei contra Rhea tão rápido que parecia estar voando. A expressão de surpresa novamente cobriu seu rosto, e um pequeno tremor no solo me alertou. Tomei um impulso e pulei no exato momento que uma imensa raiz emergiu do chão como um monstro marinho num pequeno lago, não me pegando por pouco.
Venci a distância que me separava de Rhea com aquele salto e, pegando-a desprevenida, agarrei seu pescoço magro e ossudo. Um grito estridente e raivoso saiu de sua boca, balançando a copa das árvores e fazendo as raízes vacilarem.
- Eu acabo com você, desgraçada!
Uma gosma esverdeada e brilhante começou a sair da boca aberta do monstro, escorrer pelo queixo e pingar em minhas mãos. Minha pele queimou ao entrar em contato com aquela substância e eu soltei o pescoço de Rhea, que me empurrou com violência.
Caí de costas no chão e ela voou em minha direção, as mãos transformadas em garras mortais. Rolei de costas para longe e Rhea enterrou suas garras no solo. Levantei com um pulo e chutei com força o rosto monstruoso dela, forçando mais gosma ácida para fora de sua boca. Rhea se voltou contra mim, as presas à mostra, os olhos emanando ódio. As raízes nos rodeavam, como se estivessem decidindo se continuavam o ataque, mesmo pondo em risco sua mestra.
- Sabe que eu posso acabar com seus amigos com um pensamento? – Rhea rosnou, tentando parecer debochada.
Para provar isso uma raiz investiu contra mim. Eu me desviei, correndo e pulando. Uma ideia invadiu minha cabeça, não dando lugar a nenhuma outra. Corri ao redor da clareira, raízes pipocando do solo a cada metro, me caçando. Rhea gargalhava. Eu estava atrás dela, podia ver suas costas anormais. Dei uma volta completa na clareira, as raízes no meu encalço, sempre. Com um impulso me lancei no ar, não vou dizer que voei, mas fui muito alto, tão alto que sumi de vista por poucos segundos.
Confusa, Rhea olhou para cima, mas eu já começara a descer. Pousei em frente a ela, nossos rostos a centímetros um do outro. Rhea arregalou os olhos, surpresa.
- Pensa nisso, sua puta.
Dei um grande salto para trás quando ouvi as raízes. Rhea nem teve tempo de se virar, foi surpreendida pelas costas. Uma raiz atravessou sua cabeça, outras três, seu peito, e continuaram avançando contra mim. Mas pararam antes de me alcançarem.
Rhea estava morta, suas ordens já não valiam. Empalada por suas raízes, a bruxa parecia um estranho espantalho, em pé, os olhos esbugalhados de surpresa, seu sangue verde e ácido jorrando por todos os ferimentos.
As raízes vacilaram e cederam. Jon, Gaspar e Herick caíram de quase dois metros, mas não se machucaram, correram e foram ajudar os outros a se soltarem das amarras. Como bichos sem dono, as raízes se esgueiraram de volta para dentro do solo. No horizonte, o sol nasceu preguiçoso, tingindo o céu negro de rosa e azul. Um novo dia começara na floresta.