segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Livro: A Floresta

Okay, livro em construção. Vamos tentar alguma coisa. A Floresta é uma história que eu quero contar já há algum tempo. É uma jornada longa, mas acho que vale a pena. Me digam vocês...


J.C.

PARTE 1: REFLORESTAMENTO

1.
O Reflorestamento, que foi como passamos a chamar o que aconteceu naquela terça-feira - todos que sobrevivemos, é claro - começou às onze e quinze da manhã.
Não sei se essa foi a hora exata, mas foi por aí. Sei, porque tinha acabado de escapar de uma confusão no colégio; porque o terremoto já tinha derrubado meio mundo, e porque o sol ainda não estava a pino quando me juntei à multidão em polvorosa que assistia incrédula ao fim do mundo.
Mas isso não é muito importante. O importante é que nada do que aconteceu foi precedido de um sinal, simplesmente aconteceu. O que deixou a todos no vácuo, com perguntas explodindo na cabeça, e desespero latente e palpável. Para mim, com dezessete anos então, pareceu uma viagem a um mundo mágico e cruel, onde o medo e o terror eram companheiros fiéis e incômodos.
Nasci e cresci em uma família que, embora não fosse muito rica, sempre me deu condições de estudar, comer e me divertir. Sempre fui muito amado e só conhecia de longe as desgraças do mundo. Não que eu não sofresse, ou vivesse numa redoma de vidro. Conhecia o que estava a minha volta e, claro, já tinha presenciado o mal, o perverso. Mas o medo que me alcançou junto com as árvores, era o tipo de medo intrínseco, o medo da crueldade animalesca que nos leva de volta ao primeiro grau da evolução.
Medo. Foi isso que o reflorestamento nos trouxe, além de nos ter dado uma visão clara e definitiva de como as coisas podem mudar de uma hora para outra. Sem aviso, sem preparação. Elas simplesmente mudam e se você não estiver preparado, está fora do jogo. Acho que foi isso que levou tantas pessoas a loucura e matou tantas outras. Não as árvores, não os animais, não os terrores escondidos. Mas a certeza de que não somos nada. E por mais que achemos o contrário, não sabemos um terço do que pensamos.

2.
Eu cresci achando que vivia num conto de fadas. Num daqueles reinos de faz-de-conta incrustado em florestas perigosas e traiçoeiras.
Delírio infantil, obviamente, já que a floresta que margeava minha casa nada tinha de traiçoeira. E só foi se tornar perigosa depois que meu tempo de criança tinha passado. Quando meu irmão desapareceu lá.
Mas até esse acontecimento, a floresta era o mais próximo de um mundo de fantasia que eu podia chegar. E para minha mente, que sempre foi fértil, era um prato cheio. Pássaros voando em bandos, insetos desconhecidos, um ou outro animal se esgueirando pelos arbustos. O cheiro de verde que me lembrava meu pai, piqueniques, corridas de bicicleta com Dimas, tudo o que me levava de volta a um tempo feliz e ingênuo.
Mas depois do sumiço de Jô a visão das árvores crescendo ao redor da casa, o cheiro de orvalho e terra molhada pela manhã, coisas simples assim, se tornaram insuportáveis. E todo dia ao acordar, eu sentia tudo o que não queria. A saudade, a raiva, a dúvida, a incompetência, o medo de Jô estar morto, ou pior, vivo e sofrendo. Sofrendo muito.
Eu não era o único que sentia isso. Minha mãe também. Por isso ela tomava remédios. Antidepressivos. Drogas que a tinham transformado em uma pessoa completamente diferente. Mais fria, fechada, sem sorrisos. Viva, mas em compasso de espera.
Meu pai devia sentir isso também, claro. Talvez não como nós, já que não tinha que se deparar diariamente com o cenário do desaparecimento de meu irmão, as árvores, os arbustos, as aves. Ele já não morava conosco. Ele e minha mãe se separaram pouco depois do sumiço de Jô. Nós ficamos com a casa, pois ele quis assim. E eu sei por quê. Minha mãe podia viver à base de remédios, ele não. Acordar com a constante lembrança de Jô seria o suficiente para que ele se matasse. Sim, ele era do tipo suicida.
Eu pensava em tudo isso no começo daquela manhã. Sério, estava pensando em tudo isso e nem tinha levantado da cama. Estava deitado, encarando o teto, ainda saindo daquela zona crepuscular entre os sonhos e a realidade. Eu vivia com a cabeça cheia, geralmente de coisas menos importantes do que essas.
Estava com preguiça de sair da cama, me arrumar, fazer o café, pegar o ônibus para a escola. Estava de saco cheio, cansado antes mesmo de o dia começar. Lembrei de um comercial para TV de um travesseiro dos astronautas. O narrador dizia que a culpa de se acordar sempre cansado era dos travesseiros comuns, que deixavam o corpo na posição errada, o que fazia com que nós ficássemos nos debatendo a noite toda. Talvez fosse isso.
- Preciso de um travesseiro novo – foi a primeira coisa que falei naquela manhã. Ainda tinha o gosto de acordar na boca. – Um travesseiro igual o dos astronautas.
Com isso em mente, afastei os cobertores e coloquei os pés no chão. Pisei em uma coisa gelada. Retraí o pé instintivamente e um arrepio percorreu minha espinha. Olhei para baixo e vi uma lata de refrigerante amassada. Droga.
- Também preciso arrumar meu quarto – falei, chutando a lata para o lado e dando uma olhada ao redor.
Parecia que lata de lixo tinha vomitado no assoalho. Meias sujas, All Stars encardidos, embalagens de biscoitos, era vergonhoso admitir que eu dormia ali. Pensei em abrir as cortinas, mas decidi deixar o sol do lado de fora por mais um tempo, ainda estava cedo demais.
Uma vontade louca de voltar para cama tomou conta de mim. Geralmente eu não era assim tão preguiçoso, mas alguma coisa no começo daquele dia me deixara sem ânimo. Talvez fosse por ter acordado pensando no desaparecimento de Jô e na desestruturação de minha família. Isso bastava para me deixar para baixo, querendo me enrolar nas cobertas e esperar o dia passar.
Minha mãe com certeza não ia se importar. Desde que os remédios tinham entrado em sua vida, ela só percebia minha presença se eu gritasse. Era eu quem fazia meu café da manhã, me arrumava como um bom garoto e ia para o colégio sem pestanejar. Se eu quisesse matar aula, ficar dormindo a manhã inteira, com certeza ela não se daria conta, e se desse, não faria muito esforço para me repreender.
Antes que eu percebesse, estava de novo sentado na cama. A ideia de me jogar no colchão parecia mais e mais tentadora. O friozinho do começo de manhã praticamente me empurrava de volta para o travesseiro, me sussurrava encorajamentos para voltar a dormir. E eu o faria, tiraria um dia de folga não fosse o cheiro que eu senti.
Foi tão estranho e longe da realidade que por um segundo eu pensei ter imaginado. Delírios olfativos, se é que isso existia. Devia existir, existe de tudo atualmente. Mas é incrível como tudo o que existe no mundo tem que acontecer comigo, como se eu fosse algum tipo de cobaia universal.
Esperei o cheiro ir embora, o delírio se desfazer. Mas isso não aconteceu. E de repente, não era só o cheiro. Tinha um barulho, um chiado. Depois um bater de panelas, depois um tilintar de talheres. E eu conhecia aquela sinfonia doméstica. Assim como conhecia aquele cheiro, mesmo tendo passado anos sem senti-lo em plenitude.
Alguém estava fazendo café-da-manhã.

Era minha mãe.
Vê-la mexendo em pratos e panelas me deixou paralisado, literalmente. Eu fiquei imóvel na entrada da cozinha, os braços pendendo ao lado do corpo, uma expressão abobada na cara. Olhei bem, conferi se os olhos eram os mesmos, a boca, os trejeitos, se aquela realmente era minha mãe ou algum estranho clone que a substituira.
Era ela mesma.
- Mãe?
Ela parou no movimento de pegar a garrafa térmica do café e voltou os olhos para mim. Como eu, ela pareceu ter sido atingida por um raio paralisador e ficou me encarando por uns segundos, esperando que eu adicionasse mais alguma coisa à conversação que eu iniciara. Como eu não o fiz, ela voltou ao normal.
- Já falei para não ficar andando assim pela casa, Edie – ela falou baixinho, enquanto colocava a garrafa térmica em cima da mesa. – Pode pegar um resfriado.
Não entendi bem o que ela disse, mas quando um vento gelado arrepiou meus pelos, percebi que estava só de cueca. O choque de sentir cheiros e ouvir barulhos vindos da cozinha me fizera sair do quarto sem nem ao menos vestir uma camisa.
- Eu não sabia que a senhora já estava acordada – disse, me aproximando da mesa meio sem jeito.
Minha mãe sorriu. Ou tentou sorrir. Não via um sorriso sincero no rosto dela desde o desaparecimento de Jô, e se separar de meu pai logo depois disso não ajudara em nada seu humor. Mas só o fato de ela se esforçar, de tentar sorrir, me deixava mais animado naquela manhã.
- Tive um pesadelo – minha mãe falou, puxando uma cadeira e se sentando.  – Não consegui dormir o resto da noite, então... Resolvi fazer café-da-manhã.
Fiz que sim com a cabeça, ainda achando tudo aquilo muito surreal. Pensei em perguntar como fora o sonho, mas não estava nem um pouco disposto a colocar a mão num vespeiro. Sabia bem como fora, e com quem tinha sido. Jô. Eu mesmo tinha repetidos pesadelos com ele. Não eram nada agradáveis, e me davam uma sensação de fracasso, de incompetência. Sempre o via no fim de um corredor infinito e escuro. Jô estendia os braços para mim, o rosto redondo e branco marcado por manchas vermelhas e molhado de lágrimas. Gritava meu nome, implorava. Eu corria para ele, mas o corredor parecia não ter fim. Cada passo que eu dava me afastava dele. Eu gritava seu nome, o corredor mudava de cor, passava do preto para o vermelho, depois para azul, depois parecia transparente. Eu corria e corria, passando por meu pai, minha mãe e pessoas que eu não conhecia, e Jô continuava longe, gritando, pedindo ajuda...
Eu acordava desses sonhos com o rosto suado, a cabeça rodando.
- Senta, Edie – minha mãe chamou, me arrancando de meus pensamentos. – Come alguma coisa.
Eu nunca tinha fome pela manhã, mas não era momento de fazer desfeita. Puxei uma cadeira e sentei, disposto a fazer o que ela pedia. Tinha dúvidas de que isso estimulasse minha mãe a retomar seus hábitos culinários, mas mal não iria fazer.
- Come – minha mãe repetiu, embora ela mesma não estivesse comendo nada.
Enchi minha caneca com café fumegante e arranquei um pedaço da broa de pão que eu fizera alguns dias atrás. Já estava dura e seca, mas não liguei. Minha mãe me observava atenta. Eu mergulhando o pão no café, levando-o boca. Odiava que me vissem comendo.
- Eu fiz ovos. – Ela me empurrou um prato com ovos mexidos. Não tinham a melhor aparência do mundo. Sorri com a boca cheia de pão.
- Como está a escola? – minha mãe me perguntou de repente.
- Tudo bem, eu acho. – Puxei os ovos mexidos para perto e os devorei em três garfadas. Estavam sem sal. – Normal. Sabe como é a escola...
Ela concordou com a cabeça. Seus movimentos eram lentos e arrastados, parecia que ela pesava centenas de quilos extremamente dolorosos de se carregar.
- Eu sei. Mas acho que você está indo bem. Nunca mais recebi reclamações a seu respeito, e elas eram bem frequentes.
Sorri sem saber o que dizer.
Ficamos em silêncio. Um silêncio pesado e incômodo. Parecia que éramos dois estranhos sem assuntos em comum, o que era bem assustador uma vez que morávamos na mesma casa. Aquilo me entristeceu. Lembrava do tempo em que nossa casa não era silenciosa. Se não era o Jô que estava correndo, era meu pai ouvindo suas músicas dos anos 70. Quando não era isso, era o Dimas vindo passar o fim de semana, ou os vizinhos aparecendo, ou a gente conversando sobre todo e qualquer assunto, fosse bobo ou relevante. E agora, era silêncio.
- Eu tenho que me arrumar para o colégio – eu disse, me levantando. – Se eu perder o ônibus... Sabe como é.
Minha mãe concordou brevemente e abaixou os olhos, encarando a mesa. Andei vacilante em direção a ela, mas dei meia volta. Não conseguia pensar em nada para dizer. Eu já estava com um pé fora da cozinha, quando ouvi:
- Me desculpe, Edie.
Olhei para trás. Ela estava chorando. Voltei para perto da mesa com passos tímidos e estaquei lá sem saber o que fazer.
- Eu não quero que você pense que eu não ligo para você, que te deixei de lado.
- Mãe...
- Mas é difícil para mim. – Ela levantou o rosto e pude ver seus olhos vermelhos. – É difícil não saber o que aconteceu, não ter notícias. – E parou por um segundo doloroso. – Não poder enterrar meu filho.
- Ele não morreu, mãe.
- Então, onde ele está?
Eu não sabia o que responder. Abaixei a cabeça e senti meus olhos formigarem. Respirei fundo para impedir as lágrimas de caírem e me preparei para dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Mas minha mãe foi mais rápida.
- É melhor você ir ou pode perder o ônibus – ela disse com a voz mais firme, quase recomposta.
- Vai fazer o quê hoje, mãe?- perguntei olhando para ela.
- Cuidar da horta. - Ela forçou um sorriso, ainda sem olhar para mim.
- Por que não vai me buscar no colégio? Podemos comer em algum lugar...
- Não. - Seco. Definitivo. - O ônibus já deve estar passando, é melhor você ir.
Eu fui.

Morávamos em um sítio afastado da cidade. Era uma construção antiga e firme, sem grandes luxos, mas extremamente funcional. A casa fora construída por meu avô como um pequeno refúgio para ele e minha avó iniciarem a vida de casados. Com o passar dos anos e o surpreendente aumento da família - minha avó, após uma dificuldade momentânea, dera à luz sete filhos, meu pai entre eles - meu avô foi construindo novas alas e anexando-as à construção inicial.
Se fosse vertical, nossa casa teria três andares. Mas a construção era toda na horizontal, uma ala ao lado da outra, como um muro gigante. Era um oásis de tijolo e cimento no meio da imensidão verde que era o bosque que a cercava.
Fomos para o sítio quando ainda éramos uma família inteira. Eu, minha mãe, meu pai e meu irmão mais novo. Fomos fugidos das confusões e arruaças que passaram a dominar as ruas de Albuquerque. Fomos buscando paz e sossego. Meu pai guardava recordações carinhosas do lugar, as festas de família, as brincadeiras com os irmãos, o cheiro de ar limpo do campo. Ele adorava a casa, mas insistiu para que minha mãe e eu ficássemos com ela após a separação. Talvez as boas lembranças, misturadas com as ruins, mais a solidão, o levassem a fazer algo pouco louvável. Aceitamos mesmo o sítio sendo uma verdadeira mansão para nós dois sozinhos.
Eu fazia o caminho entre minha casa e o ponto de ônibus na beira da rodovia a pé. Não era muito distante, quinze minutos de caminhada, e eu mal sentia esse tempo passar distraído pela paisagem. Seguia pela estrada de terra deixando meus pensamentos viajarem sem censura enquanto observava a vida acontecendo na floresta.
Também passava o tempo tentando imaginar em que parte daquele trajeto meu irmãozinho fora atacado e sequestrado, já que era isso que eu achava que tinha acontecido. Me perguntava se seu raptor o espreitara por detrás das árvores, se viera a pé, de bicicleta ou mesmo de carro. Imagens grotescas se formavam na minha cabeça, e eu via Jô sendo dominado, suas lágrimas caindo, ouvia seus gritos de pânico. Fazia um esforço tremendo para mandar esses pensamentos embora. Não gostava nem de pensar no que tinham feito a ele, e em como ele estaria quando voltasse para nós.Se voltasse para nós, uma voz cruel me corrigiu perversamente.
Procurei não dar atenção a ela. O ônibus já estava parado na rodovia. Tinha que correr.

Nenhum comentário:

Postar um comentário