sábado, 11 de agosto de 2012

Conto: 5 dias de março

Primeiro dia.

Ela sempre teve relacionamentos complicados. E quem quer que a visse de longe, poderia dizer que ela gostava disso. A constante inabilidade de criar laços, a recusa em se envolver, a ausência da necessidade de manter o encanto.

Talvez por isso aquela história a tenha assustado tanto. Pois foi fluente, fácil. Bem fácil. Eles se conheceram, se gostaram. Nada de amor à primeira vista, mas um encanto mútuo, aquele sentimento de descoberta, de reencontro. Tinham coisas em comum, pelo menos as que interessavam, sorriam em sincronia, entendiam o humor um do outro, se apaixonaram pelos olhos um do outro. Parecia perfeito, e por mais que ela não acreditasse em tal coisa, era mesmo perfeito. Trocaram telefones. Realmente ligaram um para o outro. Ele primeiro, quase meia-noite, e só Deus sabe como ela gostou daquilo. Tudo assim, naturalmente, facilmente.

Ela até pensou que daquela vez fosse dar certo. Que finalmente conseguiria se ligar emocionalmente a alguém, que conseguiria perder o controle. Ela não conseguiu. Sumiu depois de eles terem ficado juntos, de terem dormido juntos, de terem chegado ao ápice da intimidade. Ela saiu da casa dele feliz. Muito feliz. Tão feliz que se assustou. Cantarolar músicas amorosas. Uma vontade louca de ver comédias românticas. A ânsia pelo toque do telefone. Aquilo não era ela. Ela era confusão, sarcasmo, cinismo esperto. Mas diante do fato indiscutível de que estava apaixonada, ela perdeu a força, e com isso o controle. Não encontrava elementos que alimentassem seu sarcasmo, seu cinismo havia se transformado em romantismo. Estava com medo. Não sabia o que fazer a partir dali. Não sabia que expectativas tinha gerado e nem se podia corresponder a elas. Não sabia como se comportar, como estar presente sem ser intrusiva, como estar afastada sem ser distante. Não sabia nada. Tinha perdido o controle e precisava recuperá-lo.

Precisava terminar tudo. E por mais que odiasse cair em clichês, esse era inevitável. O problema não era com ele, era com ela. E isso ficou bem claro no e-mail que ela mandou. Sem encontrar as palavras certas, escolheu uma poesia. Algo sobre ter uma alcachofra mofada no lugar do coração... Sim, era ela. Transcreveu a poesia. As únicas palavras dela foram: “Eu sou horrível”.

Leu o e-mail. Não estava chorando, embora estivesse destruída. Enviou. E ela nunca contou isso para ninguém, mas enviou com a esperança gritante de que ele respondesse. Poderia ser curto e grosso. Um “deixa de ser estúpida e vem me ver” bastaria. Ela teria ido na hora.

 
Segundo dia.

Mas no dia seguinte a resposta não veio. Ela estava sendo extremamente prepotente achando que ele deveria responder. Na certa, a resposta não viria. Na certa, ele já teria lido o e-mail e a achado louca. Ou fria. Ou grosseria. Ou estranha. E não importa o que ela tenha tido pouco antes de eles transarem, – Eu sou complicada. Posso desaparecer se não me achar merecedora disso tudo – ainda assim, ele não entenderia.

Mas, sinceramente, tudo estaria bem se ela tivesse conseguido o que queria. Recuperar o controle.  Mas isso não tinha acontecido. Ele ainda estava lá. No comando de seus sonhos e desejos, nas suas projeções, nas suas fantasias. Era o sorriso dele que ela ainda via quando fechava os olhos, eram os olhos dele que ainda brilhavam em suas lembranças, era o toque de sua pele suada com a dele que ainda a fazia recordar do dia em que tinham ficado juntos, o gosto de sua pele molhada e seu cheiro que ficariam nela para sempre.

Ela checou de novo os e-mails recebidos. Nenhum dele. Já não tinha ânimo para ver mais nada. Desligou o computador e foi para a cama, passaria muito dos dias seguintes na cama. Pegou o celular. Nenhuma ligação perdida, nenhuma mensagem recebida. Seria possível mesmo que ele tivesse aceitado o fim de tudo com tanta complacência? Ele não tinha que ter ligado, só para saber o que tinha acontecido? Era assim que as coisas aconteciam, pelo menos como ela conhecia. Lembra da vez que também terminou um relacionamento de forma grosseira e covarde, por mensagem de texto do celular. Estava bêbada e tinha escrito quase um bilhete suicida – “Só escrevendo para dizer que foi ótimo te conhecer. Adeus”-, mas havia recebido uma ligação no dia seguinte. Não adiantou, ela foi se afastando de qualquer jeito e eles deixaram de se ver.

Não era isso que ela queria que acontecesse agora. Queria que ele ligasse, queria se explicar. Dizer que tinha razões para ter feito o que fez, que aquele e-mail tinha justificativa. Que tinha se arrependido, que não queria que a história deles terminasse. Mas ele precisava ligar, mandar uma resposta por e-mail, pois ela não ia fazer isso. Tinha aquela vozinha dentro dela, aquela que insistia que estava tudo terminado, que voltar atrás era um retrocesso, que ela tinha que ter orgulho.

Ele ainda podia ligar. Depois do trabalho, à noite. Aí eles conversariam. Tudo se esclareceria.

A noite chegou. Nenhuma ligação.

Ela chorou embaixo das cobertas. Queria que pelo menos uma coisa na vida fosse fácil demais. E lembrou que uma coisa tinha sido fácil demais. Eles. Os dois juntos. E ela tinha estragado tudo. Tinha acabado. E para não deixar dúvidas, apagou o telefone dele de seu celular. Pronto.

Terceiro dia.   

O dia começou para ela só depois das onze da manhã. E começou chuvoso, pois nada poderia ser mais apropriado.

Ela não saiu da cama. Nem ensaiou retirar as cobertas e fazer algo útil. Estava perfeitamente confortável acompanhada de sua miséria e tristeza. E suas lembranças, que não eram muitas, mas enchiam manhãs, tardes e noites, sendo repetidas exaustivamente. A primeira vez que eles tinham se visto, vez em que ela nem o tinha reparado, pelo contrário, achava que ele estava dando em cima de sua amiga. A primeira vez que tinham se beijado. A primeira vez que ela tinha desaparecido, com medo de tudo aquilo. Tentou lembrar de como tinham voltado, mas as coisas aí não estavam muito claras. Não lembra se tinha ligado para ele, embora tenha quase certeza de que foi isso que aconteceu. E isso levava a inevitável e terrível constatação: Podia ligar para ele. Dizer que tinha se arrependido.

Podia, mas não iria fazê-lo. Tinha um monstrinho orgulhoso e cheio de banca dentro dela que a impedia. Por mais que ela se contorcesse, e suasse, e tentasse, e achasse que ia morrer, não ligaria – até porque tinha apagado o telefone dele de seu celular e não o sabia de cor -, e não mandaria outro e-mail se retificando. Tinha terminado, ele não tinha se importado, por que ela deveria?

A chuva se intensificou. Relâmpagos iluminavam os céus sombrios e carregados, sendo seguidos por trovões que ensurdeciam momentaneamente de tão fortes e balançavam as paredes de tão intensos. O mundo parecia que ia se acabar e, em sua grande prepotência, a mesma que a vez ter certeza de que ele iria responder o e-mail, que iria ligar de volta, ela achou que tudo aquilo era para ela. Todo o dilúvio, todo o céu chorando por sua imensa estupidez. Mas ainda assim, ela não se mexeu. E enfim conseguiu chorar. Passou a tarde assim, coberta dos pés a cabeça, chorando. Querendo ter coragem e força, mas elas não vinham.

Tentando se convencer de que tinha sido melhor assim, de que tinha sido um ato corajoso terminar no começo um relacionamento que ela com certeza destruiria mais para frente, quando estivesse ainda mais apaixonada. Tinha sido melhor. E esse passou a ser seu mantra, até que dormiu com os olhos encharcados.

Quarto dia.

O quarto dia foi um domingo. A chuva tinha passado, mas tinha deixado marcas. Ela conseguiu sair da cama. Olhou-se no espelho para ver seus olhos inchados e vermelhos. Estava destruída e não queria mais ver aquilo. A primeira reação foi voltar para cama, se esconder embaixo das cobertas. Mas decidiu que era melhor não fazê-lo. Tinha que sair. Sair do quarto, sair de casa. Era domingo, podia ir ao cinema.

Pegou o celular. Sentiu uma alegria quase infantil. Cinco chamadas não atendidas. Como podia aquilo? Sim, tinha deixado o aparelho no silencioso para, no caso de ele ligar, ela não atender. Queria que ele ligasse mais que tudo, mas não queria atender de primeira. Podia parecer que estava desesperada pela ligação, que não estava fazendo nada só esperando ele ligar, e isso ela não queria. Ela era seriamente perturbada.

Viu de quem eram as chamadas. Não eram dele. Eram suas amigas. Provavelmente preocupadas pelo seu súbito desaparecimento. Não ligou de volta, não estava com saco para falar sobre isso. Iria ao cinema, pronto. Pegaria uma sessão no meio da tarde, comeria chocolate, passaria na livraria e depois voltaria para casa. Iria se distrair, se reestruturar. Quem sabe conhecesse outra pessoa, sempre teve o sonho de conhecer alguém no cinema.

Saiu do quarto. Primeiro passo dado, tudo bem. Falou com a mãe. Disse que estava tudo bem. “Mas você passou o dia trancado no quarto.” Eu sei, mãe. Mas estou bem. “Mas você não comeu nada... Está anoréxica?”. Não, mãe, não estou anoréxica. Só estava dormindo. Vou tomar banho.

Foi. Tirou a roupa. Entrou embaixo do jato quente de água. Sentiu o corpo dolorido, respirou fundo. Deixou a mente vagar, e ela foi direto para ele. Abriu os olhos, sacudiu a cabeça. Pensou em outra coisa. No filme que filme ia ver... Um filme de ação, cheio de explosões. Nada de comédias românticas. Talvez um filme de terror. Com jovens tolos, assassinos imortais, muito sangue e... ele. Ele.

-         
Droga!

Desligou o chuveiro. Enrolou-se na tolha e voltou para o quarto. Ligou a televisão e se deixou envolver pela programação de domingo. Estava passando um filme censura livre. Era chato, mas ela assistiu. A mãe trouxe um prato de comida e ela agradeceu. Comeu como louca. Repetiu. Ficou entupida. Deitou-se e sentiu preguiça. Lembrou-se que tinha que sair, ir ao cinema, parecer descontraída e bem. Preguiça. Não tinha condições de sair de casa. Por nada.  Livrou-se da toalha que enrolava seu corpo e se enrolou em seu cobertor. Tinha sono, muito sono. Queria dormir. Precisava dormir. Ainda não estava pronta para nada.

Dormiu.

Quinto dia. Um ano depois.

Aquele estado de luto durou pouco mais de duas semanas. Conferir o e-mail em busca de respostas e o celular atrás de ligações perdidas virou uma espécie de rotina. Uma rotina forçada, daquelas que aos poucos vai se deixando de lado.

Os trezentos e sessenta e seis dias que formavam o ano bissexto se passaram como sempre muito rápidos, e o pensamento sempre voltando para ele, aquele filminho lá no fundo da mente que se repetia enjoativamente – o primeiro encontro, o primeiro beijo... – virou quase parte essencial da vida dela.

Não que ela pensasse nele todo dia, isso a tornaria mais do que chata, psicótica. Mas lembrava dele. Especialmente nos dias chuvosos, onde não queria estar em nenhum outro lugar senão embaixo das cobertas com ele, vendo filmes na tv, comendo chocolate.

Durante o ano que havia passado, a ideia de que tinha sido melhor terminar tudo antes que algo mais sério começasse foi perdendo a força, e a vontade de se desculpar foi ficando mais forte. O monstrinho do orgulho idiota foi se minguando e a certeza de que talvez as coisas ainda pudessem dar certo foi se reestruturando.

Mas recomeçar não foi tão fácil como terminar, se é que terminar tinha sido fácil. Não poderia ligar para ele, pois já não sabia o número de seu celular, e era melhor assim, pois precisava de uma resposta concreta antes de se aventurar a ouvir a voz dele. Sendo assim, sobrou o famigerado e-mail. Pesquisou nas suas mensagens enviadas e achou o cataclísmico e-mail de um ano atrás. Releu. Que vergonha. Pegou o endereço de e-mail dele. Pronto. Hora de arquitetar sua volta. Mandaria algo que ela mesma escreveria, não mais um poema, como havia pensando. A mensagem precisava ser sincera, para dar segurança; divertida, para fazê-lo lembrar dos velhos tempos, e arrependida, mas nada “cachorro que caiu da mudança”, um arrependimento insinuado, nada muito explícito.

Começou. “Oi...” Bom começo. Em certos momentos, nada é mais sincero que um oi.  Continuou dizendo que esperava que ele não mandasse o e-mail direto para a lixeira. Sabia que tinha sumido por muito tempo e que aquilo não tinha sido muito legal. Pediu desculpas. Disse que precisavam se falar, se ele quisesse. Disse que era uma idiota, mais como toque dramático do que como afirmativa sincera, ela não conseguiu resistir.

Pronto. Parecia bom. Enviou e esperou.

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