quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Livro: A Floresta (Cont.)

É aqui que as coisas começam a ficar estranhas. Ou mais estranhas. Entra em cena uma personagem que vai ajudar Edie a decifrar toda a trama por trás da floresta.


J.C.

25.
Um cheiro delicioso de carne assada me acordou de um sono sem sonhos.
Estava em um quarto pequeno, mas aconchegante. As paredes eram feitas de ripas de madeira e estavam cobertas de fotos de família. A cama era tão confortável que parecia que eu estava deitado em nuvens. Demorei a levantar, não querendo perder aquela mordomia, mas o rumor de conversas vindas do outro cômodo era tão irresistível que tive que sair da cama.
Reparei no porta-retrato em cima do criado-mudo, também de madeira. Em uma foto antiga, uma jovem de cabelos amarelos e rosto bonito sorria. Era Rhea, pude reconhecer, uma Rhea bem mais jovem.
- Rhea – eu murmurei. – Como é que eu te conheço?
Uma explosão de risadas me arrancou do quarto. Segui o ruído das conversas e atravessei um corredor estreito e nu até chegar a um cômodo amplo, uma mistura de sala de estar e cozinha.
Numa lareira de tijolos, uma fogueira crepitava iluminando meus amigos. Eles rodeavam Rhea, que estava sentada em uma poltrona antiquíssima e fofa. Tudo na sala era feito de madeira, mas em nenhum momento isso passava uma ideia de algo tosco ou rude. Era um ambiente que irradiava nostalgia e tranquilidade.
- Edie. – Dimas se levantou de uma pilha de almofadas jogadas no chão. – Você está bem?
- Claro. – E estava mesmo.
- Você desmaiou de repente...
- É só fome – Rhea cortou Dimas, e se levantou da poltrona. – Mas vamos resolver isso rapidinho. A sopa está quase pronta.
Rhea atravessou o cômodo parar chegar ao espaço destinado à cozinha. No fogão, que parecia um calhambeque de tão grande, uma imensa panela de metal fumegava. A velha misturou a sopa lá dentro com uma colher de pau. O cheiro era tentador.
- Já vou tirar a carne do forno – ela disse, extinguindo o fogo sob a panela de metal. – O pessoal que esteve aqui ontem me ajudou, eu tenho bastante carne lá fora, vocês viram.
- Senta aqui, Edie – Amanda convidou-me para as almofadas.
Dimas e eu nos sentamos, o fogo nos esquentava e animava. Era bom estar em uma casa de novo.
- Vocês estavam se divertindo – eu disse.
- A Rhea é ótima – Jon falou, sorrindo. – Uma figura muito interessante. Cem anos, segundo ela.
- Ela nos deixou dormir aqui – Liana disse. – Achei uma boa, não íamos conseguir chegar ao condomínio hoje de qualquer jeito.
Era bem verdade. Tínhamos errado com relação à distância, e embora meu desejo de chegar logo ao apartamento de meu pai fosse imenso, não era muito prudente se arriscar sem motivo.
- Agora pronto, crianças – Rhea disse do fogão. – Hora de comer, vão lavar as mãos. Lá fora tem uma pia com uma tina de água. Vocês devem ter percebido que eu não tenho água encanada aqui.
Fomos em fila indiana para fora. A casa de Rhea era uma bela e simples construção em madeira localizada entre duas grossas e onipotentes árvores. Vista de determinados ângulos, a casa e as árvores pareciam se fundir.
Ao lado das duas árvores protetoras ficavam o banheiro (do lado esquerdo) e a pia (lado direito).  O bangalô de madeira se localizava bem no centro de uma clareira circular, com as mesmas árvores baixas e tortas delimitando seus domínios. Também ali, pedaços de carne pendiam nos galhos.
Lavamos as mãos, um por vez, o cheiro de comida caseira nos alcançando mesmo ali fora. A lua cheia iluminava a pequena clareira como um holofote, fazendo reluzir os pedaços de carne. E foi quando algo me chamou a atenção. Estava pendurado nos galhos baixos, numa árvore bem próxima. Parecia uma enorme peça de roupa, não consegui identificar se uma calça ou uma camisa, pois estava dobrada. Não era muito higiênico secar roupas no mesmo lugar onde de colocava a carne, e isso fez soar um alarme na minha cabeça, o mesmo que disparara logo que encontramos Rhea na trilha. De repente, o cheiro das carnes me pareceu forte e enjoativo, e o que eu via pendurado no galho parecia menos com uma peça de roupa e mais com...
- Vamos, Edie. Estou morrendo de fome.
Amanda nos guiou de volta para dentro. Mesmo com dúvidas e receios, eu também estava morrendo de fome.

26.
Rhea preparou uma mesa farta para nós, que não sabíamos o que era comida de fogão há dois dias. Uma tina com sopa fumegante ocupava o centro da mesa, junto com um pão caseiro branquinho e fofo, cortado em rodelas. Uma peça de carne assada rodeada de cebolas grelhadas completava o banquete.
O cheiro era delicioso, e não sei como me aguentei para não avançar para a refeição, enfiando tudo na boca como um animal selvagem. Esqueci por completo as frutas guardadas nas mochilas, que já não pareciam tão apetitosas.
- Vamos, crianças – Rhea nos encorajou, sentada à cabeceira da mesa. – Podem se servir, vamos.
Não havia talheres na mesa, só uma enorme faca incrustada no pedaço de carne, mas não era por um esquecimento de Rhea. Vimos como ela se servia e imitamos. Rhea pegou sua cuia, todos tínhamos uma, e mergulhou na tina de sopa. A cuia voltou cheia e molhada e Rhea não demorou em levá-la a boca, bebendo a sopa como se fosse um suco.
Me lembrei de imediato de uma estranha mistura que minha mãe fazia quando queria emagrecer. Era uma sopa, pelo menos ela dizia que era, onde se misturavam todos os temperos possíveis e imagináveis. Quando pronta, a mistura tinha consistência e cor de vômito, além de um cheiro insuportável. No início, minha mãe servia a sopa em um prato, e tomava com colher como se fosse comida de verdade, mas a tortura era tão tremenda que ela passou a colocar a mistura num copo e beber num só gole, para acabar com aquilo de vez.
A sopa vermelha escorreu pela boca de Rhea, pingando de seu queixo ossudo. Por um momento, todo meu apetite se extinguiu, e uma onda de repulsa e asco me dominou vinda de lugar nenhum. Jon, sentado a meu lado e indiferente a meus engulhos, mergulhou sua cuia na tina de sopa e a entornou, bebendo tudo num gole só. Minha barriga roncou alto para me lembrar que não era hora para frescura.
- Está uma delícia, Rhea – Amanda disse, se servindo de sopa pela segunda vez. – Tem um gosto que eu não consigo identificar, é de legumes?
Rhea limpou a boca com a manga do vestido e sorriu para Amanda. Deixei minha cuia cair com um estrondo na mesa ao ver os dentes de Rhea cobertos de sangue. Levantei-me com um pulo, mas uma segunda olhada me fez ver que seus dentes estavam alvos, como sempre foram.
- Calma, Edie – Jon disse, também se levantando. – O que foi?
Minha sopa se espalhara pela mesa, tingindo-a de vermelho. Procurei um guardanapo próximo, mas não tinha nenhum.
- Desculpe, acho que... Pensei ter visto uma coisa. A luz me pregou uma peça, foi isso.
Rhea apareceu com um pano nas mãos e um sorriso no rosto.
- Tudo bem, foi só um engano. Temos sopa suficiente.
Enxuguei a mesa molhada com o pano puído de algodão. A sopa vermelha sendo absorvida pelo algodão branco me deu mais uma sensação estranha, incômoda. A sopa de Rhea revirou no meu estômago e quase fez o caminho contrário para ser expulsa pela minha boca. Mas consegui me segurar.
- Senta, Edie – Perla falou. – Você deve estar fraco, com fome.
Todos na mesa dividiam a mesa opinião, eu podia dizer só de olhar seus rostos. Se eu continuasse tendo ataques como aquele, ia ser abandonado no meio da floresta, como João e sua irmãzinha Maria.
João e Maria, pensei. O que João e Maria tinham a ver com aquilo? Uma lembrança antiga tentou emergir de minha cabeça. Nada. Mas o caminho era aquele, com certeza. João e Maria... Balancei a cabeça para me livrar de ideias tão sem sentido.
Sentei-me novamente e os rostos da caravana me encararam, alguns preocupados, outros intrigados. Dimas, Herick, Perla e Amanda na minha frente. Jon, Gaspar, Marino e Liana ao meu lado.
- Mais sopa, criança? – Rhea se voluntariou a me servir. Eu segurei seu braço esquelético para impedi-la, e minha mão ardeu em fogo. Larguei o braço da velha, minha mão queimando, dolorida.
Rhea parou com a mão no ar, estendida em direção à minha cuia, mas sem alcançá-la. Os olhares em mim de novo. Deus, aquilo estava ficando estranho.
- Sabe... – tentei desconversar. – Parei com a sopa, já.
Rhea sorriu compreensiva, e bateu na testa com a mão.
- Claro. Não fiquem se entupindo de sopa. Ninguém comeu a carne ainda.
Um rumor de concordância correu a mesa. Dimas bateu palmas, ansioso.
- Joanatan, por favor, faça as honras – pediu Rhea.
Jon levantou para fazer o trabalho. Perdido sem um garfo para espetar o pedaço de carne, parou um segundo, pensativo e confuso. Retirou a faca estocada na carne, mas isso não lhe trouxe ideias.
- O quê, criança? – Rhea perguntou.
- É que eu preciso de um garfo... Para segurar a carne.
- Não se preocupe com isso. Pode usar as mãos, sabemos que está limpa.
- É, Jon – Dimas disse impaciente. – Corta isso logo.
 Levantando os ombros, Jon segurou a peça de carne com a mão e passou a faca, cortando-a transversalmente. A lâmina deslizou suave do início ao fim e uma fatia da carne tombou na travessa rústica.
- Muito bom – Dimas se precipitou. Pegou duas fatias do pão caseiro e imprensou o pedaço de carne entre eles, fazendo um sanduíche. – Vocês me desculpem, mas eu estou matando por um pedaço de carne.
Dimas colocou o sanduíche inteiro na boca, ficando com bochechas do tamanho de laranjas. Recostou-se na cadeira com uma expressão de puro prazer no rosto. Herick riu.
- Mais, Jon. – Herick se aproximou da travessa. – Mais um pouco.
Jon cortou mais um pedaço de carne e Herick a pegou, jogando-a direto na boca. A carne estava mal passada e a cada fatia cortada, um filete de sangue escorria, formando uma pequena poça vermelha na travessa.
- Vai um pedaço, Edie? – Jon ofereceu. Todos, com exceção de Rhea, saboreavam a carne e esperavam por mais. – Olha que eu estou abrindo mão do cargo de churrasqueiro.
- Pode ser. Me dá um pedaço.
Jon tirou mais uma fatia de carne e me entregou direto na lâmina da faca. A carne estava tão macia que eu pude dobrá-la ao meio e colocar na boca. Como carnívoro inveterado, percebi no ato que aquilo não era uma carne convencional. Revisei mentalmente os animais que viviam em florestas e imaginei qual deles eu estava mastigando. Cervos, coelhos, javalis... Desisti. Fosse o que fosse, estava uma delícia, o suficiente para me fazer querer mais um pedaço.
Peguei a faca que Jon tinha deixado ao lado da travessa e inspecionei a peça de carne, escolhendo de onde eu tiraria o próximo pedaço.
- Quero mais também, Edie – Dimas disse com a boca cheia.
Uma risadinha rouca me fez virar para Rhea. Ela estava com as mãos magrelas sobre a mesa nos observando comer.
- E você, Rhea? – eu perguntei. – Quer um pedaço?
- Não, criança. Comam o quanto quiserem.
E sorriu satisfeita, mostrando os dentes pequenos e pontiagudos, como presas de piranha.
- Droga.
Me levantei, derrubando a cadeira no chão. A faca escorregara e cortara meu dedo indicador. Um grande rasgo se iniciava no topo de meu dedo e seguia todo o caminho até o limite da palma de minha mão. Meu sangue escorria incontrolável.
- É muito fundo, o corte? – Dimas deu a volta na mesa, se aproximando.
- É melhor lavar antes que infeccione. – Era Perla.
- Pior que a gente não tem nada para colocar nisso... – Liana.
Ouvia meus amigos falando como se fosse através de um rádio mal sintonizado. Envolvi meu dedo machucado com a outra mão e o apertei em uma tentativa de estacar o sangue. Meus olhos se voltaram para Rhea que permanecia impassível, sentada à cabeceira...
Como uma rainha impiedosa, cruel. Seus olhos se mostravam famintos e predadores. Chegara a hora de comer. A bruxa ia à caça. A voz explodiu em minha cabeça de novo, e o mundo girou diante de meus olhos. Meus joelhos vacilaram e eu caí, batendo o queixo na borda da mesa.
- Segura ele, Jon – Liana gritou histérica. – Ele não está bem.
Dois pares de mãos me levantaram pelas axilas. Na queda eu mordera a bochecha, sentia gosto de sangue na boca. Meus olhos correram de novo para Rhea, e agora sim ela sorria, escancarava os dentes. Pontiagudos, mortais.
- Quem é você? – eu gritei para a velha. Ela se levantou com ar inocente, com cara de vovó. – Por que está fazendo isso?
Rhea tapou a boca com a mão. Parecia assustada e ofendida. Ninguém estava entendendo nada.
- Criança... – ela começou.
- Ele não sabe o que está falando, Rhea – Jon disse, me mantendo de pé. – Ele está mal, delirando...
- Não... – eu balbuciei.
- Vamos levá-lo lá para fora. – Herick correu para abrir a porta. – Tomar um pouco de ar, lavar os ferimentos.
Jon e Dimas me carregaram para fora da casa da Rhea. O ar frio da floresta me estapeou com força e eu berrei alucinado, querendo ser compreendido.
- Vamos sair daqui!
- Calma, Edie – Jon falava baixo, aflito.
- A bruxa sai para caçar – eu continuei desesperado. – Nos caçar. A bruxa!
Senti meu corpo contra a pia de concreto. Dimas pegou minha mão e mergulhou na bacia de água gelada. Uma ardência subiu pelos meus dedos e atingiu minha espinha, me encolhi de surpresa e dor. Dimas esfregava minha mão para se livrar do sangue. Os outros rodeavam a pia de concreto, me encarando como se eu tivesse enlouquecido, surtado.
- Cadê o Marino? – perguntei aflito, minha cabeça virando de um lado para o outro na busca. – Cadê ele?
- Edie... – Jon conseguiu dizer, estava assustado de verdade.
- MARINO!
E aí eu vi. Saindo da casa, amparando Rhea que andava lenta e dolorosamente.
- Sai daí – eu gritei. – Larga dela!
- Edie, para! – Dimas me sacudiu. – O que é que você está fazendo?
Empurrei Dimas com força e me desequilibrei ao ser largado por ele. Recuperei o prumo e me afastei de Jon, que tentou me segurar.
- Edie! – Perla gritou.
Não dei atenção. Corri em direção às árvores, aos galhos que serviam de varal para Rhea. Os pedaços de carne, tantos pedaços de carne, agora eu sabia de quem eram. Sabia. Meu estômago revirou de novo, eu não conseguiria segurá-lo dessa vez.
Agarrei o que eu achei que fossem roupas, camisas, calças... Deus, não estava na cara desde o início? A textura daquilo me deu asco, tocar aquilo era insuportável. Jon me agarrou pelos ombros, tentando me deter.
- Edie, se controla. Droga!
- Não! – eu gritei
Com um puxão forte, arranquei dos galhos a pele humana que ali descansava. Jon também me puxou e nós dois caímos de costas no chão. Jon gritou de horror e repulsa. Sentei-me para contemplar o que eu já sabia, e vi o invólucro de um ser humano em cima de Jon. Era como se, de alguma forma, o esqueleto e os órgãos de um homem tivessem sido retirados por mágica e só a capa que envolvia essa estrutura tivesse restado. Era disso que Jon tentava se livrar.
- Tira isso de mim! – ele gritava. – Tira!
Amanda chegou correndo e viu a pele que cobria Jon. Uma careta de nojo deformou seu rosto lindo e ela jogou o resto do que fora um ser humano para longe. Jon levantou, se espanando como se isso de alguma forma fizesse aquela experiência desaparecer.
- Que merda – Amanda gritou. – Era a pele de alguém... Toda a pele...
E ela voltou sua atenção para as carnes penduradas nos galhos. Seus olhos se arregalaram com a compreensão.
- A carne... A carne...
Dimas cobriu a boca, impedindo um jato de vômito de sair. Perla não se restringiu, caiu de joelhos e vomitou uma mistura de sólido e líquido. Ela tremia, chorava e vomitava em um ciclo que parecia interminável.
- Minha Nossa Senhora... – Jon disse por fim.
- Foi um jantar adorável, não se desfaçam dele agora – uma voz rouca e potente disse. A voz de Rhea, mas parecia que ela tinha sido amplificada.
Nos viramos para encará-la ao mesmo tempo, quase como se tivéssemos ensaiado. Emoldurada pela porta de madeira, lá estava Rhea. Ou algo muito parecido com ela. Seus ombros tinham se alongado e engrossado, sua postura, antes encurvada e frágil, agora era altiva, perigosa. O vestido preto se rasgara na altura dos quadris, revelando uma pele dura e marrom, uma armadura. Mas o que fazia toda a diferença era o rosto, nada mais de pele enrugada e caída, nada mais de boca pequena. O rosto se alongara, chegando próximo à aberração, a pele agora assentava todo ele. Um sorriso demoníaco e debochado revelava seus dentes de piranha, os dentes que eu vira à mesa.
- Marino! – Liana gritou, desesperada.
Seu namorado estava ajoelhado, nos encarava suplicante. Rhea o segurava com uma chave de braço, que eu tinha certeza, já tinha esmigalhado os ossos de Marino.
- Por favor... – Marino balbuciou, fraco. – Por favor...

27.
De repente, as vozes da floresta pareciam sussurrar obscenidades e pragas. O ar ficou pesado com chumbo, frio com se estivéssemos em pleno inverno no hemisfério norte. O chão mexeu um pouco, eu quase caí de novo.
- Solta ele! – Liana gritou, as lágrimas lavando seu rosto, seu hálito se transformando em uma névoa branca.
- Digam-me, então, crianças... – Rhea falou com sua voz de trovão. – O jantar estava à altura?
Perla cobriu o rosto com as mãos, estava chorando.
- O que quer da gente? – eu perguntei, a voz firme, alta.
Rhea torceu com mais força o braço de Marino. O estalo do osso ecoou na clareira silenciosa. Marino gritou de agonia e Liana o acompanhou.
- Eu quero que vocês respondam minha pergunta – Rhea tornou com raiva. – Estava à altura, meu jantar? Estava, garota linda?
Rhea olhou para Perla sorrindo com malícia. Perla caiu de joelhos, aos prantos. Limpava a boca com as costas das mãos com a habilidade de um obsessivo compulsivo.
- Quer botar tudo para fora? – Rhea perguntou, parecendo mortalmente desapontada.
Um trovão reboou ao longe, mas não havia nenhuma formação de nuvens no céu. Rhea apontou um dedo longo e esquelético para Perla, que se curvou para o chão, gritando de dor.
- Para! – eu gritei, impotente. – Para com isso!
Rhea gargalhou em êxtase e, de repente, Perla estava vomitando novamente. Mas desta vez não era um jato, era uma enxurrada de vômito vermelho e gosmento. Ela estava de quatro no chão, a boca aberta despejando tudo o que ela comera hoje, ontem, sempre.
- Para! – tentei de novo.
Rhea continuava com o dedo em riste, apontando para Perla, que perdia as forças e caía lentamente no rio formado por seu próprio vômito. Olhávamos aquilo sem ação, paralisados. Vi uma substância amarelada misturada com o vermelho intenso. A bílis. Meu Deus...
E eu senti o que muito provavelmente Bruce Banner sentia poucos segundos antes de se transformar em Hulk. Meu sangue ferveu, a raiva aqueceu meu corpo de cima a baixo, não me surpreenderia se fumaça estivesse saindo dos meus ouvidos.
- PARA COM ISSO! – Eu soquei o chão, colérico, incontrolável.
E eu causei um tremor. O chão dançou em nossos pés por um momento e uma fenda se abriu no lugar que eu golpeara, se alastrando até a porta da casa de Rhea. Ela se voltou para mim, a surpresa estampada em seu rosto monstruoso. Funcionou. Rhea desviara a atenção de Perla, que parara de vomitar. Amanda e Dimas correram para ajudá-la.
- Agora, você vai sair do caminho – eu ordenei.   
Rhea riu da minha cara, o que não me deixou menos combativo. Tinha qualquer coisa em mim que queria um confronto, pedia por ele. Talvez fosse a adrenalina, ou eu estivesse mesmo ficando louco.
Mais uma torção no braço de Marino. Suas pernas dançaram no ritmo da dor, parando em ângulos estranhos. Rhea aproximou o rosto do pescoço dele. Da sua boca, uma língua grossa e pestilenta saiu como uma cobra sairia da toca. A língua nojenta passeou pelo pescoço de Marino, deixando um rastro vermelho de dor e queimação. Liana chorou mais alto.
- Vem, criança – Rhea me desafiou. – Banca o herói, salva o dia. Tenta. Dá um passo para ver o destino de seu amiguinho.
Não tinha medo ou hesitação no olhar de Rhea. Lembrei de algo que ouvira há algum tempo, mas não conseguia me lembrar onde. Alguma coisa a respeito de monstros, que os monstros eram seres sem consciência. Naquele momento eu entendi o que aquilo queria dizer.
- Nos deixe ir – eu falei. Eu não era um monstro, tinha consciência, medo, e minha voz tremeu. Ponto contra. – Não precisa da gente.
Rhea riu debochada.
- Você tem comida. – Eu apontei as carnes penduradas. – Mais do que pode aguentar.
- Pode ser. – Rhea me encarou. – Mas eu sempre prefiro carne fresca.
Rhea atacou o pescoço de Marino, seu maxilar se expandindo para baixo, deixando sua boca imensa, inacreditável.
Liana gritou de horror, e Rhea arrancou com sua bocarra metade do pescoço de Marino. A metade restante não aguentou o peso da cabeça e tombou para o lado. A cabeça de Marino estava deitada em seu próprio ombro, apenas alguns ligamentos e um naco de pele mostravam que um pescoço existira ali, unindo torso e cabeça há menos de cinco segundos.
Exclamações de horror e indignação cresceram ao meu redor, meus companheiros se dividiam entre o choque e o medo. Perla, quase inconsciente, era a única calada. Amanda e Dimas, que a seguravam, lançavam maldições e pragas. Herick e Gaspar partiram para uma ação mais concreta, atirando pedras que nem chegaram a encostar em Rhea, e os olhos de Jon dançavam pelo chão, pelas árvores, pelo ar, como se a nossa salvação estivesse escondida em algum desses lugares.
Rhea engoliu o pedaço que arrancara de Marino e soltou um arroto sonoro. Gargalhou, maligna e indiferente, seus olhos brilhando de odiosa satisfação.
- Delícia – ela disse. – Carne fresca, não tem nada melhor. Eu não preciso nem falar, vocês sabem como é.
E jogou o corpo inerte de Marino para o lado. Ele fez uma dança macabra pelo ar antes de cair, o rosto virado para o chão, as pernas abertas, quase vulgares.
- FILHA DA PUTA.
Liana gritou e avançou contra Rhea, a voz de choro, os olhos vermelhos de raiva. Minha voz ficou presa na garganta, mas eu sabia que o ataque a Marino tinha sido só um aperitivo. A mão de Rhea adquiriu um brilho esverdeado, parecia que ela segurava a maior esmeralda do mundo.  Ela jogou a mão brilhante para trás, como se estivesse se preparando para jogar uma bola, e foi exatamente isso que saiu de sua mão: uma bola verde incandescente que ela jogou contra Liana.
A bola brilhou todo o caminho até o peito de Liana, e entrou em seu corpo sem barreiras, como se fosse feita de pura luz. Liana foi jogada para trás com uma força inumana, seus pés riscando o chão, levantando poeira. Rhea balbuciou palavras ininteligíveis antes de cair na gargalhada, e Liana foi suspensa do chão. Seus gritos de agonia eram os mais pavorosos que eu já ouvira na vida.
Corri até ela, Dimas e Herick fizeram o mesmo. Mas antes de chegarmos perto, o corpo de Liana se dobrou ao meio, a testa encostou nas pernas esticadas à frente, e quando ficou ereto de novo, foi só para seu esqueleto ser expulso do corpo por um rasgo imenso que dilacerava toda sua parte traseira. Um tsunami de sangue acompanhou o esqueleto completo de Liana que pairou no ar por um segundo, antes de cair no chão, os ossos quebrando numa sucessão angustiante.
Minhas pernas cederam ante aquela visão e eu caí, os olhos arregalados ainda vendo aquela pálida e repulsiva versão de nossa amiga. Com o esqueleto removido, a carne, os órgãos e a pele de Liana pareciam uma estranha fantasia ou uma daquelas capas que protegem vestidos. O grito de Amanda nos envolveu a todos e os restos de Liana se entulharam no chão com um som molhado e repulsivo.
Dimas vomitou nos próprios sapatos, Herick caiu de joelhos no chão, os olhos marejados, o rosto transfigurado numa careta de horror.
- Dois em oito – Rhea riu-se. – Devo continuar?
Tomando nosso silêncio como resposta, Rhea levantou os braços e o chão tremeu de novo. Pedras minúsculas pipocavam do solo enquanto tentávamos nos manter de pé. Foi aí que uma raiz afiada emergiu do chão, não acertando meu pé por um milímetro. Outras vieram logo em seguida tentando me alcançar, pareciam cobras atiçadas por um encantador.
- Corram! – Jon gritou e escapou com um pulo de uma raiz particularmente grossa que quase agarrou seu pé.
Não tínhamos muito espaço naquela clareia, Rhea fechava a passagem adiante, e se voltássemos pelo caminho que tínhamos vindo, as árvores acabariam com a gente. Só podíamos correr como baratas tontas no espaço circular da clareira enquanto as raízes rompiam o solo e nos caçavam.
Não demorou para o primeiro de nós ser pego. Uma raiz perfurou o pé de Gaspar o derrubando de costas. Outra se enroscou em sua cintura e se elevou, mantendo-o preso como um troféu nas alturas.
Amanda sacou a pistola e atirou em uma raiz que avançava contra ela. A coisa se partiu em duas, mas a parte ligada ao solo não desistiu da caçada. Amanda mirou, mas foi surpreendida por seis raízes que saíram do chão, envolvendo-a como em uma gaiola. A raiz deformada se esgueirou para dentro daquela prisão natural e golpeou seu braço. A arma voou longe.
Jon nem teve tempo de usar sua arma, foi pego pelos braços e suspendido no ar assim como Gaspar. Perla e Dimas foram pegos juntos, uma raiz os envolveu pela cintura, seus braços colados aos corpos.
- Herick! – eu gritei. – Abaixa.
Ele obedeceu e uma raiz passou reto por onde sua cabeça estaria. Com o corpo dobrado, Herick correu para o lado, eu segui em seu encalço. Rhea mexia os braços como se estivesse orquestrando o ataque.
- Faz alguma coisa, Edie! – Herick gritou enquanto pulava por cima de uma raiz que por pouco não pegara seu pé.
- O quê?
Uma raiz veio direto em minha direção, na altura dos meus olhos. Como se tivesse vida própria, meu braço se ergueu, segurando a raiz antes que ela me atingisse o rosto. Senti a coisa se contorcendo em minha mão, irada, impaciente. Segurei-a com as duas mãos e puxei com força. Uma das árvores nanicas de Rhea afundou no chão com violência.
Herick gritou e eu o vi sendo suspenso por duas raízes, uma lhe prendendo os pés, a outra, os braços acima da cabeça. As raízes se voltaram contra mim, o alvo remanescente.
Corri me livrando delas, parecia um medalhista olímpico em uma prova de obstáculos. Ouvia meus amigos gritando por mim, para mim. Rhea entrou em meu campo de visão, precisava chegar até ela, distraí-la como fizera da última fez.
Chutei uma raiz que tentava se enroscar em minha cintura, e avancei contra Rhea tão rápido que parecia estar voando. A expressão de surpresa novamente cobriu seu rosto, e um pequeno tremor no solo me alertou. Tomei um impulso e pulei no exato momento que uma imensa raiz emergiu do chão como um monstro marinho num pequeno lago, não me pegando por pouco.
Venci a distância que me separava de Rhea com aquele salto e, pegando-a desprevenida, agarrei seu pescoço magro e ossudo. Um grito estridente e raivoso saiu de sua boca, balançando a copa das árvores e fazendo as raízes vacilarem.
- Eu acabo com você, desgraçada!
Uma gosma esverdeada e brilhante começou a sair da boca aberta do monstro, escorrer pelo queixo e pingar em minhas mãos. Minha pele queimou ao entrar em contato com aquela substância e eu soltei o pescoço de Rhea, que me empurrou com violência.
Caí de costas no chão e ela voou em minha direção, as mãos transformadas em garras mortais. Rolei de costas para longe e Rhea enterrou suas garras no solo. Levantei com um pulo e chutei com força o rosto monstruoso dela, forçando mais gosma ácida para fora de sua boca. Rhea se voltou contra mim, as presas à mostra, os olhos emanando ódio. As raízes nos rodeavam, como se estivessem decidindo se continuavam o ataque, mesmo pondo em risco sua mestra.
- Sabe que eu posso acabar com seus amigos com um pensamento? – Rhea rosnou, tentando parecer debochada.
Para provar isso uma raiz investiu contra mim. Eu me desviei, correndo e pulando. Uma ideia invadiu minha cabeça, não dando lugar a nenhuma outra. Corri ao redor da clareira, raízes pipocando do solo a cada metro, me caçando. Rhea gargalhava. Eu estava atrás dela, podia ver suas costas anormais. Dei uma volta completa na clareira, as raízes no meu encalço, sempre. Com um impulso me lancei no ar, não vou dizer que voei, mas fui muito alto, tão alto que sumi de vista por poucos segundos.
Confusa, Rhea olhou para cima, mas eu já começara a descer. Pousei em frente a ela, nossos rostos a centímetros um do outro. Rhea arregalou os olhos, surpresa.
- Pensa nisso, sua puta.
Dei um grande salto para trás quando ouvi as raízes. Rhea nem teve tempo de se virar, foi surpreendida pelas costas. Uma raiz atravessou sua cabeça, outras três, seu peito, e continuaram avançando contra mim. Mas pararam antes de me alcançarem.
Rhea estava morta, suas ordens já não valiam. Empalada por suas raízes, a bruxa parecia um estranho espantalho, em pé, os olhos esbugalhados de surpresa, seu sangue verde e ácido jorrando por todos os ferimentos.
As raízes vacilaram e cederam. Jon, Gaspar e Herick caíram de quase dois metros, mas não se machucaram, correram e foram ajudar os outros a se soltarem das amarras. Como bichos sem dono, as raízes se esgueiraram de volta para dentro do solo. No horizonte, o sol nasceu preguiçoso, tingindo o céu negro de rosa e azul. Um novo dia começara na floresta.   

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Livro: A Floresta (Cont.)


19.
Cabelos Grisalhos na verdade se chamava Joanatan, era um policial civil aposentado e tomara para si a liderança do pequeno grupo que nos cercara. Eram cinco pessoas diferentes entre si, o tipo de grupo que só se formaria em uma situação adversa.
Eles se apresentaram, mas eu ouvia distraído e agitado. Corri para o carro, tombando em árvores e galhos, a noite chegara completamente e a única luminosidade na área eram os feixes das lanternas do grupo de Joanatan.
Encontrei Perla encostada na roda traseira da caminhonete, as pernas dobradas na frente do corpo, chorando. Ajoelhei-me em frente a ela quando um feixe de luz revelou seu rosto manchado e assustado. Ela me abraçou tremendo, me apertou junto dela. Sua camiseta estava esticada, como se a tivessem puxado, mas não rasgada.
Felizmente, os caras não tiveram tempo de fazer muita coisa além de assustá-la, mas isso foi suficiente para desejá-los mortos, cruelmente mortos, na floresta. A moça bonita que me escoltara durante o confronto minutos atrás, novamente surgiu atrás de mim. Perla a encarou, confusa e nervosa, mas eu acenei com a cabeça para mostrar que estava tudo bem.
- Oi – disse a moça numa voz baixa e gentil. – Você é a Perla, certo? Me deixa te ajudar...
Perla me puxou mais para perto. Tremia de novo.
- Tudo bem, Perla – eu cochichei em seu ouvido. – Eles são legais.
Perla parecia perdida. Podia ser uma impressão inicial, mas aquele ataque a tinha modificado mais do que eu poderia imaginar. Tremia de pensar em como ela estaria se aqueles homens tivessem ido até o fim. Em seus olhos, onde havia vivacidade e curiosidade, agora só existia medo e desconfiança. Bem vindos à selva, Joanatan dissera. A ficha acabara de cair.
- Vamos só lavar esse rosto, colocar um agasalho. Está ficando frio.
A moça estendeu a mão para Perla e eu achei que ela ia ficar no vácuo, mas Perla lhe estendeu a mão trêmula. Lançou-me um olhar de criança desamparada, mas eu a encorajei com um sorriso. A moça a ajudou a se levantar e juntas entraram no carro.
Uma estranha luminosidade me chamou a atenção e eu me virei para uma fogueira. Dimas e Herick alimentavam o fogo com os galhos que conseguiram recolher. Joanatan arrastara uma pedra, e se sentara nela, admirando o fogo.
Além da moça que cuidava de Perla no carro e Joanatan, a caravana ainda contava com o que parecia um casal de namorados, pelo menos o rapaz gorducho trazia a garota peituda segura em um abraço, e o garoto quase tão novo quanto nós. Todos pareciam cansados e abatidos, mas acima de tudo, rudes e perigosos.
O rapaz gorducho largou a namorada quando Joanatan o chamou com um aceno de mão. Tirou a mochila estufada das costas e a entregou ao líder.
- Obrigado, Marino.
 Joanatan tirou de lá um pacote de salsichas de cachorro-quente e meu estômago deu uma guinada, estava morrendo de fome. Dimas e Herick me olharam esperançosos e eu fui me juntar a eles. Os outros integrantes da caravana também se sentaram ao redor da fogueira, só Perla e a moça bonita continuaram no carro.
- Podemos comer? – Joanatan nos perguntou, sorrindo, e abriu o pacote de salsichas. – Liana, você conseguiu pegar...
Mas a namorada de Marino já estava dizendo que sim com a cabeça antes que Joanatan terminasse. Foi sua vez de abrir a mochila e tirar alguns espetos de madeira para churrasco.
- Aqui, Jon – ela disse estendendo os palitos de madeira. – Sabia que iam ser úteis.
Jon fez um gesto de cabeça indicando o garoto mais novo da caravana e Liana entregou os espetos para ele. O garoto os recebeu um tanto sem jeito.
- Gaspar – Jon resmungou. O garoto olhou para ele e Jon lhe jogou o pacote de salsichas. – Pode começar.
A porta do carro se abriu e Perla e a moça saíram. Perla nos viu e correu para sentar-se do nosso lado. Trocara a camisa esticada do uniforme por um agasalho vermelho e folgado.
A moça sentou-se ao lado de Gaspar. Ele sorriu para ela, que lhe lançou uma piscadela.
- Tudo bem?– ele perguntou, enquanto espetava as salsichas nos palitos.
Ela confirmou com a cabeça e colocou um sorriso cansado no rosto. Perla não tirou os olhos dela um segundo, mas não disse nada.
- Obrigado – eu disse um tanto acanhado. – Por cuidar dela.
- Não foi nada – ela respondeu. – Tomamos conta uns dos outros agora. De agora em diante tem que ser assim.
- Estamos com fome, Gaspar – Jon resmungou para o garoto que preparava as salsichas. – Ainda vai demorar?
- Não, já está pronto – Gaspar disse, enquanto passava os espetos para a moça que ajudara Perla, que por sua vez os passava para Jon.
Enquanto fazia isso, a moça lançava olhares significativos para nosso grupo. Devíamos estar parecendo cachorrinhos assustados diante deles.
- Gostam de cachorro-quente? – ela perguntou com um sorriso.
- Na atual situação – Herick respondeu -, gostamos de qualquer coisa.
- Esse é o espírito – a moça disse, tentando achar um pedaço de chão confortável. – Eu já sei o nome dela. Perla. Mas vocês...
Fiz as apresentações formais. A moça olhava atentamente o rosto de cada um enquanto nossos nomes eram revelados.
- Eu sou Amanda – ela disse, por fim.  
- Vocês se livraram de uma boa hoje, garotos – Joanatan disse enquanto colocava os espetos de salsicha perto do fogo para torrarem.
Olhamo-nos pouco à vontade com tanta gente nova e concordamos com a cabeça. É engraçado como tínhamos nos tornado um grupo desde o início de tudo aquilo. Mesmo na confusão pós-terremoto, não deixamos ninguém se aproximar, pelo menos não o suficiente para ser um de nós. Não sei de onde viera a ideia de que nós bastávamos, mas ali, rodeados de pessoas estranhas, e que tinham nos salvado, a consciência de que éramos apenas garotos perdidos numa floresta infinita nos atingiu.
- Fomos pegos de surpresa – eu disse para quebrar o silêncio. – Tínhamos decidido dormir por aqui, sabe, não queríamos encarar a floresta à noite.
- O perigo não está só na floresta – Amanda falou, soltando os cabelos do coque. – Quando se sentem acuadas, as pessoas fazem coisas que machucam.
Perla abaixou a cabeça e se aninhou em meu peito. Coloquei meu braço em seus ombros e a apertei junto de mim.
- A gente sabe – Herick rebateu. – Fomos atacados antes mesmo de a floresta tomar conta de tudo. Foi um dos motivos pelos quais resolvemos ficar aqui, montando guarda.
Joanatan balançou a cabeça, pensativo. Remexeu no churrasco de salsicha e pareceu satisfeito com eles. Liana abriu novamente sua mochila e tirou de lá um pacote de pães; pegou dois, um para ela e outro para o namorado, e passou o pacote para o resto do grupo.
- Vocês devem estar com fome – Gaspar disse pegando seu pão e nos passando o pacote. – Comeram alguma coisa hoje?
- Só jabuticabas. – Dimas pegou três pães e passou o pacote para Joanatan. – Acho que ainda temos algumas se quiserem para a sobremesa.
- Pode ser. – Gaspar pegou um espeto de salsicha e colocou dentro do pão. Apertou o pão e retirou o palito de madeira, deixando a salsicha segura lá dentro.
- Guarde o palito, não podemos jogar nada fora por enquanto – Amanda disse repetindo o gesto de Gaspar com o churrasco de salsicha. Ele balançou a cabeça.
- Vocês estavam no colégio quando... – e Gaspar fez um gesto indistinto com a mão mostrando as árvores.
Joanatan nos entregou nossas salsichas, e elas foram direto para o pão.
- No terremoto ainda estávamos no colégio – eu disse abocanhando um bom pedaço do meu cachorro-quente. – Mas quando as árvores surgiram já estávamos na rua. Você?
- Matando aula – Gaspar falou de boca cheia. – Provavelmente o que me salvou.
Pela primeira vez pensei na galera que tinha ficado no colégio, esperançosa, contando que os bombeiros e a polícia chegariam. Me perguntei se alguém de lá conseguira sobreviver e isso me embrulhou o estômago, a morte estava virando algo corriqueiro demais para o meu gosto.
Terminamos a refeição em silêncio, Perla mal tocou na comida. Todos estavam perdidos em pensamentos, encarando o fogo, contemplativos. Os sons noturnos da floresta tinham o poder de nos acalmar e intrigar. Trinados de aves, correnteza de rio, farfalhar de folhas ao vento.
- Como vocês conseguiram as armas? – Herick perguntou.
Todos eles carregavam uma. Desconfiava que a mochila que Joanatan não largava devia estar cheia de munição, ou de mais armas. Ele era o único que parecia completamente à vontade com a situação.
- Esta aqui é minha mesmo. – Joanatan tirou o revólver do coldre e ele cintilou com a luz da fogueira. – Do meu tempo de polícia. As outras também são minhas, mas nunca usei. Eu tinha uma espécie de coleção. Estava em casa quando tudo aconteceu. Depois do terremoto, saí juntando tudo que podia, metade da minha casa tinha sido destruída. Coloquei as armas na mochila, e foi só isso que eu consegui salvar.
- E vocês foram se achando pelo caminho... – eu falei.
Amanda balançou a cabeça em afirmativa e Gaspar sorriu.
- Em uma situação como essa, o melhor é se unir – Gaspar falou.
Em uma situação como essa, ele disse. Mas que situação era aquela? Continuava perdido e atônito, faltava ali uma explicação lógica, compatível. A pergunta chave continuava a se repetir em minha cabeça: Como enfrentar uma situação que era indefinível?
- Vocês sabem o que foi que aconteceu?
Um silêncio temporário foi a resposta para minha pergunta. A caravana de Joanatan trocou olhares cúmplices e assombrados, o que me fez ter certeza que eles sabiam de alguma coisa. Ou pelo menos mais coisas do que nós.
Foi Joanatan quem voltou a falar:
- Sabemos o que aconteceu, mas não como ou por quê.
- Sabemos o que aconteceu também – Dimas disse cansado. – A floresta tomou conta de tudo. Quer dizer que vocês não sabem mais do que a gente...
- Ninguém sabe – Marino tomou a palavra. – Depois do terremoto o mundo virou de cabeça para baixo, porque o terremoto foi de escala global. Todas as emissoras estavam noticiando, mostrando imagens... Até que saíram do ar.
- Ouvimos rumores logo depois do terremoto – Perla disse, a voz fraca, acanhada. - Achamos que talvez fossem exageros...
- Provavelmente não eram – Marino continuou. – Muitos lugares já estavam completamente destruídos antes de as árvores aparecerem. Todas as cidades costeiras já estavam debaixo de água. Tsunamis. Parece impossível, mas olha em volta. O impossível nos engoliu a todos.
 Liana abraçou o namorado com força e ele parou de falar para lhe afagar os cabelos. As notícias não eram novas ou positivas, só confirmavam o que já sabíamos. Estávamos perdidos, sem esperança.
- Aonde vocês estão indo? – Dimas perguntou. – Agora que tudo parece estar destruído...
- Acho que a única coisa que podemos fazer é nos juntar a outras pessoas – Amanda disse. – Há muita gente como aqueles caras que botamos para correr, mas também tem muita gente confusa, perdida, como nós. É juntar a galera e tentar recomeçar.
Era um plano genérico demais. Eles estavam falando de reconstruir uma sociedade, uma cidade, um mundo. Resolvi não falar nada, embora tivesse sérias questões em relação àquele plano. Para começar, juntar as pessoas seria um trabalho do cão, e sem garantia de recompensas. Todos estavam assustados e fragilizados, uma combinação nada atraente.
- Vamos todos juntos? – Joanatan nos perguntou.
Não tinha o que pensar. Fazer parte daquela caravana podia ser nossa salvação, não tínhamos ideia do que nos aguardava mais à frente e um grupo armado e numeroso podia ser de grande ajuda. Trocamos um olhar de concordância e estava decidido.
- Ok – eu disse.
- Bom – Joanatan se levantou. – Partimos amanhã cedo. Quem fica de guarda primeiro?

20.
Gaspar e eu fomos os primeiros a ser escolhidos para a guarda. Como estávamos em oito, decidimos que duplas se revezariam a cada três horas até que todos pudessem ter alguns momentos de sono.
Herick, Dimas e Perla se instalaram no carro, o resto da caravana montou acampamento perto da fogueira e adormeceram por lá. Gaspar e eu sentamos com as costas apoiadas numa árvore nodosa e, pelo menos em aparência, centenária. A fogueira dava sinais de exaustão e como estávamos sem madeira para alimentar o fogo, resolvi sair para buscar mais.
- Fica no alcance da luz – Gaspar disse. – Se não encontrar muita madeira não tem problema, se você se perder a confusão vai ser maior.
Fiz o que ele disse, e de fato, não consegui muita coisa para alimentar o fogo. Catei alguns galhos secos do chão, descartando os que pareciam muito novos. Não sabia quase nada de acampamento e estava completamente perdido naquela situação toda. Confiava em alguns conhecimentos adquiridos em filmes de aventura, mas tinha sérias dúvidas de que eles se aplicariam cem por cento na vida real.
Ainda dentro da auréola de luz que marcava meus limites, encontrei uma jabuticabeira, provavelmente tinha sido naquela árvore que Herick colhera os frutos que nos alimentaram mais cedo. O cheiro das frutinhas pretas novamente me fez lembrar de Jô.
Assim como minha mãe, não abrira mão da esperança de que ele ainda estivesse vivo. Mas na atual situação, não sabia se aquela certeza fazia algum sentido. O mundo destruído, a floresta engolindo tudo, e ele era só uma criança.
Minha cabeça girou por um segundo e eu precisei segurar num galho da jabuticabeira para não cair. Respirei fundo e tentei esvaziar minha mente, ou pelo menos, expulsar os pensamentos sombrios e negativos que envolviam minha família. Se era para ter esperança, a teria por completo. Pensaria em meus pais vivos e em meu irmão também.
Voltei para o acampamento e coloquei os galhos secos perto da fogueira, os usaríamos quando necessário.
 Gaspar continuava alerta e desperto, com o revólver na mão. Sentei-me ao lado dele, que me lançou um sorriso de reconhecimento. Não falamos nada por um bom tempo, só ouvimos os sons da floresta, e Joanatan, que roncava.
O céu explodia de estrelas, uma imagem linda que eu conhecia bem por crescer afastado das luzes da cidade. Lembrei que minha mãe me dizia para não contar estrelas, pois cresceriam verrugas em mim. Pareciam lembranças de um tempo antigo, longínquo, assim como os gritos de desespero e morte de mais cedo, que de alguma forma não pareciam casar com aquela tranquilidade rústica.
- Você saber mexer nisso? – eu perguntei, olhando para o revólver que Gaspar mantinha seguro nas mãos.
- Não muito. Jon me ensinou o básico. É a primeira vez que eu pego numa arma de fogo.
- É muito útil agora. Quer dizer, é só você apontar e, sei lá... Assusta.
Gaspar concordou com a cabeça e girou o revólver nas mãos. Era um modelo antigo, com o cano longo e fino. Me fez lembrar os filmes de faroeste que meu pai assistia nos canais a cabo.
- Tomara que só a visão disto assuste mesmo... Não sou o melhor atirador do mundo.
- Talvez agora seja – eu disse, e Gaspar sorriu. – Deve estar pelo menos entre os dez melhores.
Um uivo longo e tremeluzente chegou aos nossos ouvidos e os pelos de meus braços se arrepiaram. Não pensei imediatamente em lobos, mas em lobisomens. Pode parecer estranho, mas se tornara uma coisa comum eu pensar no mais esdrúxulo antes de me voltar para as coisas mais naturais.
- Lobos? – Gaspar perguntou, mais pé no chão do que eu.
Não respondi nada e tentei ver através da cortina obscura que cobria a floresta. Talvez fossem mesmo lobos.
- Onde você encontrou o resto do pessoal? – perguntei, desviando o assunto para outro caminho.
- Minha noção espacial ficou seriamente comprometida depois da floresta – ele disse pensativo. – Não sei dizer em que parte da cidade eu estava.
Balancei a cabeça, compreensivo, e Gaspar continuou.
 - Encontrei o Jon e a Amanda primeiro. Marino e Liana se juntaram a nós já aqui perto, no final do dia. Foi aquilo que conversamos. Se é para ir para algum lugar, é melhor irmos todos juntos.
- Então, vocês caminharam a tarde toda?
- Praticamente. Paramos aqui, ali. Descansamos, mas não ficamos parados muito tempo.
- Vocês encontraram alguma coisa anormal pela floresta? Mais anormal do que tudo isso...
Gaspar me encarou curioso e se aproximou. A arma cintilou à luz da fogueira.
- Como assim?
Mordi o lábio inferior. Não queria parecer bobo ou impressionável, mas não podia deixar passar aquela oportunidade.
- Essa tarde, por duas vezes, nós ouvimos um som. Um rugido, talvez, um urro...
- Eu sei – Gaspar me cortou. – Nós ouvimos também. Não parecia com um animal, não um animal comum, pelo menos.
Concordei com a cabeça, mudo. Não era parecido com nada do que eu conhecia ou ouvira falar.
- Vocês viram animais, de qualquer tipo? – eu perguntei. – Quando vinham para cá.
Gaspar parou para pensar um momento, parecia confuso, indeciso.
- Acho que vi alguma coisa – ele disse, por fim. – De relance, muito rápido. Um animal de médio porte, mas foi muito rápido. Passou longe, atrás das árvores, posso ter me confundido.
- Pensei... Toda a floresta tem uma fauna. Sem supermercados, lanchonetes... Vamos ter arranjar um jeito de comer.
- Acho que você está certo. Toda floresta tem que ter uma fauna. Pelo menos pássaros, sabemos que tem. Eu os ouvi cantando o dia todo.
- Certo.
O fogo crepitou baixinho e ameaçou se extinguir. Gaspar se levantou e foi reavivá-lo com os galhos secos. A fogueira parecia que não ia reagir aos estímulos, mas rapidamente os galhos incendiaram e o fogo levantou de novo.
- Você está com o quê? – Gaspar perguntou, sentando-se de novo ao meu lado. – Dezesseis, dezessete?
- Dezessete. Você também?
- Dezoito. Desde ontem.
- Parabéns.
Gaspar sorriu e coçou a barba rala.
- Tem família? – eu continuei a conversa.
- Rezando para ainda ter.
- Eu sei.
Gaspar encostou-se no tronco da árvore e se perdeu em pensamentos, encarando o fogo. Era difícil levantar o assunto família naquela situação, quando não tínhamos como ter notícias ou esperanças. Mas por mais fantasioso e ingênuo que fosse, não conseguia pensar em minha família morta. Aquela floresta invadindo tudo fora algo tão desconcertante que parecia que tínhamos sido enviados para outro mundo, outra dimensão, e que a Terra continuava segura, salva. E todas as pessoas que amávamos estavam lá. Era um pensamento infantil, quase como pensar que nossas pessoas queridas tinham ido tirar férias no céu.
- Eu tenho uma filha, sabia?
Gaspar tirou a carteira do bolso traseiro da calça e eu me aproximei, surpreso com a revelação. Ele tirou de um dos compartimentos internos a foto de uma garotinha bonita e morena. Tinha os cabelos cheios e crespos, assim como a garota que a segurava.
- Que linda – eu disse, pegando a foto que ele me estendia. – Ela é grande.
- É. Ia fazer... Vai fazer três anos.
- Uau, você começou cedo.
Gaspar sorriu, mas não pareceu embaraçado.
- E essa é a mãe dela... – eu concluí, olhando para a jovem que segurava a criança.
- Minha namorada. É.
Pensei em mais alguma coisa para dizer, mas nada me veio à cabeça. Perguntar onde elas estavam quando tudo aconteceu só traria más lembranças, preferi ficar quieto e deixá-lo viajar nos pensamentos. Devolvi a foto para ele, que guardou na carteira.
- E a sua família? – Gaspar quis saber.
- Pai, mãe e um irmão. Meus pais estão separados.
- E seu irmão estava no colégio?
- Eu não sei onde meu irmão está. Ele desapareceu já tem três anos.
- Que merda.
Levantei os ombros e foi minha vez de encarar o fogo, pensativo. De novo, só conseguia pensar em Jô. Agora, mais do que nunca, tinha uma estranha sensação de que ele estava vivo, esperando. Mas se não conseguimos achá-lo quando tínhamos os recursos do mundo moderno, como encontrá-lo agora, no meio de uma floresta estranha e hostil?
- Posso te perguntar uma coisa? - Gaspar falou. Voltei a olhar para ele. – Aquele cara, o que estava te agredindo...
Me aprumei, desconfortável, já tendo uma ideia do que ele ia perguntar.
- Quando chegamos, ele estava dizendo que você tinha quebrado a perna dele.
Sorri para mostrar que achava aquilo uma bobagem, mas Gaspar continuou.
- Eu iluminei a perna dele em um momento e... A coisa mais estranha. A perna ia normal até chegar ao tornozelo. Ali, a calça murchava, está dando para entender? Como se o tornozelo não estivesse mais ali, ou pelo menos não estivesse inteiro. E o pé estava virado num ângulo completamente estranho, impossível...
Olhei para Gaspar constrangido, incomodado. Não sabia o que dizer, como agir.
- Como é que você fez aquilo? Você fez mesmo aquilo?
Balancei a cabeça em uma negativa, mexendo a boca tentando encontrar as palavras certas para encerrar aquele assunto, deixá-lo para trás. Gaspar me encarava, curioso.
- Ei, garotos – era a voz de Jon. Ele acordara. – Acabou a ronda de vocês?
Gaspar olhou seu relógio de pulso e disse que ainda faltava meia hora para a troca de guardas. Joanatan se levantou e estalou as costas assim como Dimas. Gaspar ainda olhava para mim interessado, mas não me perguntou nada.
- Não vou mais conseguir dormir – Jon disse, bocejando. – Se vocês quiserem descansar, podem ir. Eu acordo a Amanda em meia hora, não vai ter problemas.
Não dei chances para ele mudar de ideia e me levantei rápido. Gaspar entregou para Jon o relógio e eu fui me deitar no carro, junto com meus amigos.

21.
Acordamos cedo, embora eu não soubesse exatamente a hora. Estava com o corpo doído por dormir sentado, mas me sentia revigorado, ou tão revigorado quanto se podia estar. Olhei para os bancos da frente e só vi Herick bocejando e coçando a cabeça. Perla e Dimas já estavam acordados, fora deles o último turno.
Herick e eu saímos do carro e o resto da caravana já se mexia. Marino e Liana dobravam e guardavam os agasalhos que haviam lhes servido de travesseiros durante a noite. Amanda estava sentada em uma pedra, as pernas abertas e os joelhos dobrados, os cabelos jogados para um lado, limpando sua arma de um jeito sexy e ameaçador. Olhei para o lado e percebi que não fora o único que a notara, Herick também estava babando.
- Bom dia, vocês – Perla disse, se aproximando. Estava mais animada e corada que na noite anterior, o que me deixou contente.
- Oi – eu respondi. Ela me abraçou com preguiça. – Como é que foi o turno?
Ela levantou os ombros, descontraída.
- Tranquilo. Dimas e eu estamos aprendendo a atirar. Não é nada difícil, a Amanda vai me deixar atirar mais tarde.
Um brilho intenso passou pelos olhos de Perla, um brilho que eu sabia que não veria se voltasse dois dias. Ela podia ter melhorado, mas não esquecera, o que talvez fosse bom.
Joanatan nos chamou para comer alguma coisa antes de partirmos. Gaspar apareceu vindo da floresta, as mãos vazias. Disse que não encontrara árvores frutíferas, com exceção, é claro, das jabuticabeiras.
- Podemos encontrar pelo caminho – disse Amanda, guardando a pistola no coldre que envolvia sua cintura. – Me lembro de ter visto maracujás e mangas no caminho para cá. Dei bobeira não pegando, achei que encontraríamos fácil.
Comemos só uns pedaços de pão e bebemos água. Marino carregava uma garrafa térmica cheia, mas não mágica. Em algum momento, aquilo ia precisar ser reabastecido.
Juntamos nossas coisas e partimos.
Jon nos liderava por todo o caminho. Ia à frente, calado, introspectivo. Vez ou outra Amanda caminhava a seu lado. Eles conversavam baixo, sorriam e ele voltava a ficar sozinho.
Nós, por outro lado, conversávamos por todo o caminho. Trocávamos confidências, descobríamos coincidências, ríamos de histórias antigas. Em pouco tempo, todos parecíamos velhos conhecidos, não um grupo que se conhecera há menos de vinte e quatro horas. Podia parecer estranho que, estando onde estávamos, vivendo o que vivíamos, ainda nos parecesse possível conversar amenidades, rir e nos divertir. Mas não tinha outra coisa que podia ser feita, ou era isso ou enlouquecíamos.
Era impressionante ver no que a cidade e - se estivéssemos certos em nossas previsões - o mundo tinham se transformado. Até onde a vista alcançava, só conseguíamos identificar árvores e mais árvores. Em alguns momentos, elas se juntavam em um corredor estreito, em outras se espaçavam em um caminho agradável. Nesses casos, ainda conseguíamos ver vestígios de nossa civilização. Estruturas de metal, ruínas de casas ou estabelecimentos comerciais, produtos dos mais diversos. Tudo o que parecia minimamente aproveitável levávamos conosco. Nesse jogo de pique - esconde, encontramos as ruínas do que parecia ser um mercadinho de bairro. Conseguimos salvar dos escombros poucos mantimentos, biscoitos recheados e uma mina de ouro: um pacote com garrafas de água mineral. Estavam quentes, mas pareceram perfeitas para nós.
A dúvida que eu levantara durante a madrugada, sobre a existência de animais na floresta, foi respondida logo. Quando deixávamos o mercadinho, um bando de cervos passou em nossa frente. Olhei admirado para os animais esguios e majestosos, trotando tranquilos e altivos.
- Cervos – Joanatan disse, quando retomamos a caminhada. – Agora, podemos ver de tudo.
Menos gente, eu pensei. Por mais que andássemos, não vi nenhum grupo como o nosso, ou mesmo pessoas sozinhas, o que era estranho, pois ouvíamos murmúrios e cochichos. As pessoas estavam lá, mas não apareciam.
Comentei isso com Dimas e ele disse ter a mesma impressão.
- Talvez estejam assustados – Herick falou. – Não sabem o que esperar da gente, e nem nós sabemos o que esperar deles.
- É – Perla disse. – Não tivemos boas experiências com essas pessoas.
Perla já nos dividira entre nós e eles. Tentei não tornar isso uma grande coisa, mas com certeza seria quando outras pessoas se juntassem ao nosso grupo.
  
22.
Chegamos a uma área problemática da floresta por volta de onze horas da manhã.
A primeira coisa que nos atingiu foi o cheiro, isso bem antes de começarmos a andar em um terreno lamacento e instável. Era um odor forte, desagradável, podre que nos fez tapar os narizes, o que não impediu o cheiro pútrido de nos alcançar.
O pé de Joanatan foi o primeiro a afundar na lama. Sua perna foi engolida pelo pântano até a altura do joelho, ele se desequilibrou e caiu com as mãos no chão. Amanda o ajudou a se levantar, mas precisou de Marino e Dimas para desatolar o pé de Jon.
- Vamos começar a ter cuidado por aqui – Jon disse, limpando as mãos na camisa. – Esses pântanos podem ser mais perigosos do que parecem.
Só de ouvir a palavra pântano imaginei jacarés e crocodilos do tamanho de dinossauros prontos para nos atacar. Tentei me livrar daquelas ideias, mas aquela parte da floresta era perfeita para a proliferação de pensamentos espúrios. As árvores ali eram estranhas, tortas e escuras, cresciam muito juntas umas das outras e as perdíamos de vista de tão altas. Passamos diversas vezes por troncos da largura de pernas de gigantes.
À medida que avançávamos, o dia parecia virar noite. As copas das árvores impediam completamente a luz do sol de penetrar, mas ao invés de nos proporcionarem uma sombra fresca, nos cobriam com uma sombra desagradável e estéril.
Jon indicava o caminho a seguir, desviando de montes de terra putrefatos e molengas, onde provavelmente afundaríamos. Andávamos contíguos a um lago escuro e espesso, que não corria, permanecia estático. A superfície borbulhava lentamente, o estouro das bolhas ecoava no ar silencioso e pesado.
Mais de uma vez tive uma sensação estranha, um déjà vu. Era quase como se já tivesse andado por aqueles pântanos, visitado aquele lugar. Por mais impossível que pudesse parecer, não conseguia deixar de sentir uma estranha familiaridade com aquilo tudo.
Um inseto, o maior que já vira, deu um rasante na cabeça de Dimas, nos surpreendendo a todos. Meu amigo pulou de susto e, achando que o bicho ainda estava em sua cabeça, não parou de mexer compulsivamente nos cabelos, até que Herick segurou seus braços para que ele parasse.
- Droga de bichos – ele disse, ofegante. – Que merda era aquela?
Os insetos viraram parte da nossa viagem. Mosquitos, moscas, pernilongos e outras criaturas maiores e desconhecidas por nós nos assediaram durante todo o caminho, sugando nosso sangue, nos mordendo, incomodando. Era uma tortura.
- Droga – eu disse, estapeando minha testa e matando um borrachudo.
Os braços de Perla estavam vermelhos de tantas mordidas e picadas. Ela prendeu os cabelos em um rabo de cavalo e se abanou com as mãos. O ar abafado, o cheiro desagradável e os insetos tornavam impossível nossa permanência ali.
Continuamos perseverantes e silenciosos, buscando qualquer caminho alternativo que nos tirasse daquele lugar o mais rápido possível. Escalamos a raiz de uma árvore que emergira do solo e se erguia quase dois metros. Olhei para cima e o caule tortuoso e grosso da árvore parecia subir até o céu, igual o pé de feijão do João.
- É impressão minha ou está ficando mais fácil de respirar? – Liana perguntou.
Não era impressão. Um vento agradável circulava, soprando em nossos rostos suados e vermelhos. As árvores estavam mais espaçadas e o sol já conseguia entrar. Aquela parte da floresta estava ficando para trás.
Apressamos o passo, animados, deixando as árvores para trás, entrando em um descampado onde a relva crescia verde, livre e fresca. Dimas se jogou no chão, de barriga para cima, e respirou fundo.
- Graças a Deus – disse, explodindo numa gargalhada. – Achei que ia morrer ali.
- Acham que devemos parar agora? – perguntei, tirando a camisa e enxugando a testa suada.
Mas todos já estavam deixando as mochilas caírem e se sentado. Segui o exemplo de Dimas e também me deitei na grama. Minhas pernas agradeceram o descanso, se olhasse para elas poderia ver fumaça escapando.
- Comer – Jon chamou, mas não me levantei por um instante. Fiquei olhando o céu azul, sentindo o vento em meu rosto e desejei, não pela primeira vez, que tudo aquilo acabasse.
- Edie – Perla me gritou, e eu me levantei para me juntar ao grupo.
Como não tínhamos armado uma fogueira, comemos o básico e sem reclamar. Devoramos o resto do pão, que começava a endurecer, algumas salsichas e miojo cru. Amanda também abriu o pacote de biscoitos recheados e deu dois para cada um de nós. O gosto de chocolate quase me fez gozar de tanto prazer.
- Onde será que a gente está? – perguntei, tentando me situar, colocando um mapa imaginário da cidade em cima do percurso que tínhamos feito.
- Perto do centro, talvez – Marino disse. – O centro deve ser por aqui.
- Estou me lembrando do cara que encontramos, aquele que fumava direto – Perla falou. – Ele disse que no centro a situação devia estar bem pior do que estava no Porão.
Dimas concordou com a cabeça, uma sombra cobriu seus olhos. Ele estava pensando no pai.
- Eu contava que íamos encontrar mais pessoas. – Jon parecia decepcionado. – É impossível que tenha sobrado tão pouca gente.
- Passamos por algumas pessoas no caminho – Amanda disse. – Mas elas estavam se escondendo, com medo, acho. – Ela levantou a arma para mostrar um possível motivo para o pavor.
- Eu tive a mesma impressão – eu endossei. – Mas mesmo contando com esses que se esconderam, é muito pouca gente, mesmo pensando nos que morreram.
Jon concordou com a cabeça, mas não se demorou muito no assunto. Levantou-se espanando a sujeira da calça.
- Vou dar uma volta por aí – ele disse. – Vê se encontro um lago, rio, qualquer coisa. Estou precisando jogar uma água no corpo.
Herick ficou de pé rapidamente e se voluntariou para ir junto. Marino fez o mesmo, depois de dar um beijo na namorada. Os três seguiram em frente.
- Amanda – Perla chamou. – Você falou que me ensinava a atirar. Pode ser agora?
Amanda se levantou disposta, e tirou a arma do coldre.
Liana pegou sua pistola, que descansava em cima da mochila, e a entregou para Perla.
- Pode treinar com a minha.
Perla sorriu.
- Vem comigo – Amanda chamou Perla, e as duas desceram o caminho em direção a uma árvore que já tínhamos deixando para trás.
Dimas as acompanhou com o olhar, mas não se interessou por muito tempo. Deitou na relva e cobriu o rosto com a camisa.
- Vou tirar um cochilo – ele me disse, sem a mínima necessidade. Era óbvio o que ele ia fazer.
Restamos Liana e eu. Ela estava mexendo em sua mochila, alheia a todos os outros acontecimentos. Fiquei de pé e fui até ela que tirava o que parecia ser um jogo de cartas da mochila. Parei na sua frente e ela me sorriu.
- Quer que eu leia sua sorte? – me ofereceu.
- Qual? – eu perguntei, sorrindo.
Liana riu e colocou as cartas no chão. Um baralho de tarô.
- Senta logo, menino – ela disse. – Você está bem na direção do sol, está ferindo meus olhos.
Sentei na frente dela.
- Tarô – ela disse, embaralhando as cartas. – Já jogou?
Disse que não com a cabeça. Liana mexia as cartas com desenvoltura e propriedade, parecia um jogador de pôquer profissional.
- Você joga isso faz tempo?
- Não é isso. – Ela pareceu um pouco chateada. – O tarô é muito sério.
- Desculpe.
 Liana se arrastou para trás, afastando-se de mim. Achei que ela tivesse mesmo se chateado, mas ela continuou a falar.
- Divide em três – ela disse, colocando o tarô entre nós.
Fiz o que ela mandou. Liana juntou novamente os três montes de cartas em um só, colocando um em cima do outro, da esquerda para direita.
- Eu não sou nenhuma profissional – ela disse. – Comprei o tarô não tem muito tempo, ainda estou aprendendo.
 Liana destacou a primeira carta e a colocou no chão, virada para baixo. Logo após, dispôs sete cartas horizontalmente embaixo da primeira, e mais sete embaixo daquelas, por fim mais sete embaixo das anteriores.
Um tiro explodiu próximo, acabando com o silêncio. Perla segurava a pistola e parecia satisfeita. Amanda sorria a seu lado.
- Pronto? – Liana me perguntou. Respondi que sim com a cabeça.
Ela virou a carta que estava no topo do jogo. Um esqueleto remando um barco. A Morte.
- Isso não é bom, é?
Mas ela não me respondeu. Continuou abrindo as cartas, concentrada. O Papa, A Roda da Fortuna, A Estrela, O Sol, As Sombras e por aí foi. Liana não me falava nada durante o processo de revelação das cartas, e eu estava ficando nervoso.
O Carro foi a última carta que ela virou. Esperei a conclusão, mas ela não veio. Liana ficou encarando o jogo. Era enervante, quase a balancei pelos ombros para ela falar alguma coisa.
- E então?
- O seu jogo começa bem coerente. – Ela apontou a carta da Morte. Senti um arrepio. – A Morte significa mudança, o fim de alguma coisa, o início de uma situação nova. – Ela abriu os braços abrangendo todo o cenário onde estávamos. A floresta, certo.
- E termina como?
- Sua jornada parece muito perigosa – ela continuou. – Eu vejo muitas ameaças.
- Parece coerente, também – eu disse, olhando as cartas, tentando entender o jogo. – Todos corremos perigo, certo?
- Eu não nos vejo neste jogo – ela falou trepidante. –, esse grupo que nós formamos agora. – Ela apontou para uma carta no centro do jogo. O Eremita. – Vê? Você lidera aqui, ilumina o caminho. Não é a situação atual da caravana.
Não era mesmo. No grupo atual eu era apenas mais um que seguia o caminho que Joanatan indicava, e não me sentia incomodado com isso. Preferia, até.
- Conflitos – Liana continuou. – O Imperador, uma figura masculina importante.
- Meu pai? – perguntei afoito. – Ele está vivo?
- Ele está no jogo. Tem um embate aqui. Um confronto entre vocês dois?
Balancei a cabeça, atordoado.
- Isso não está fazendo sentido.
- Eu só estou dizendo o que está aqui.
Perla disparou mais um tiro contra a árvore, desta vez, seguido de um grito eufórico. Dimas tirou a camisa do rosto e se sentou, com cara de sono.
- O que vocês estão fazendo? - ele nos perguntou.
Nós não respondemos.
- Minha mãe está viva? – perguntei à Liana. – Meu irmão? Você consegue ver isso aí?
- Tem uma mulher muito poderosa no seu jogo. – Ela apontou a carta da Imperatriz. - Tomando conta, protegendo. Ativa, viva.
Meus olhos se encheram de lágrimas. Aquela não parecia muito a minha mãe, não como ela era agora. Mas eu sabia que era ela, tinha que ser. Eles estavam vivos, minha mãe e meu pai estavam vivos.
Dimas estava atrás de mim, não sabia desde quando. Só o notei depois de me convencer de que as cartas estavam certas, de que eu ainda tinha uma família. Só faltava...
- Meu irmão?
Liana encarou as cartas de novo, passava os dedos por cada uma, uma careta de absorção e entendimento dançando em seu rosto.
- Não tenho certeza. Não vou arriscar dizer que sim ou não.
Fechei os olhos e duas lágrimas grossas rolaram por minhas bochechas. Meu estômago revirou de descontentamento. Só faltava ele para eu me agarrar na certeza de que tudo ia dar certo.
- E no mais, vejo um caminho longo. Tortuoso, dolorido, com perdas, vitórias temporárias, não vejo nada derradeiro.
- Do que é que ela está falando? – Dimas perguntou, perdido na conversa.
Liana juntou as cartas novamente, desfazendo meu jogo.
Fiquei um tempo fora do ar, tentando apreender tudo o que ela disse, gravar cada detalhe na minha mente. Minha mãe e meu pai estavam vivos. Eu ia liderar alguma coisa. Um embate com meu pai? Aquela parte não fazia sentido.
- Prontos para partimos? – Era a voz de Joanatan.
Ele, Herick e Marino tinham voltado. Dimas, Liana e eu nos levantamos.
- Vamos ter quer ralar um pouco para continuar.


23.
Jon nos guiou em frente, até o ponto onde o chão desaparecia. Chegamos mais perto e vimos que, na verdade, estávamos no topo de um monte. Era como se todo o resto do mundo tivesse decido para o andar térreo.
A vista dali era inacreditável. A massa verde que era a floresta se espalhava para frente e para todos os lados. Um bando de pássaros levantou voo do meio das árvores, dançando um balé aéreo hipnotizante.
Um rio, impossível de existir no meio da cidade, corria plácido, passando pelo meio das árvores. As margens o estreitavam e depois alargavam, até levá-lo para uma bacia grande e extensa, onde ele reluzia à luz do sol.
Mas o que me chamou mesmo a atenção, o suficiente para não reparar em nada mais, foi um conjunto de prédios parcialmente destruído, a dois, três quilômetros no máximo. O condomínio sobrevivera à floresta, pois se localizava bem onde agora era uma vasta clareira.
Os prédios estavam dispostos em forma de ferradura. A maioria estava demolido, perda total, mas alguns ainda conservavam alguma estrutura. Até nestes, plantas trepadeiras haviam demarcado terreno, tingindo de verde o cimento e o aço. De longe, pareciam uma estranha mistura de concreto e natureza. O conjunto de edificações só conservava um prédio intacto, o que ficava ao fundo do terreno do condomínio, bem no centro. 
- É o condomínio do meu pai – eu disse, apontando o conjunto de edifícios. – Meu pai morava aí.
Dimas também reconhecera o lugar, muitas vezes o visitara comigo. A disposição dos prédios era inconfundível, e embora todos os pontos de referência tivessem sumido, eu sabia que era ali que meu pai morara.
- Tem certeza? – Jon perguntou, reparando com mais atenção os prédios.
- Absoluta. Ele morava naquele ali, ó, o último. O que está de pé.
Todos olharam para o prédio. Meu coração batia mais forte. Se o prédio não tinha caído, meu pai ainda podia estar vivo.
- Vamos dar uma passada lá – Amanda disse para Jon. – Podemos encontrar algumas coisas úteis nos apartamentos.
Jon concordou com a cabeça, mas eu pouco estava me importando com coisas úteis. Queria chegar lá o mais rápido possível para tentar encontrar vestígios do meu pai.
- Vamos, então – Jon disse, e nós começamos a descer o declive.
Jon se referira a isso quando falou que íamos precisar ralar. O morro tinha um declive, que embora não fosse íngreme, não era nenhum passeio no parque. Era uma descida em terra vermelha, com pedras soltas e pontas de raízes nos espetando. Descemos com cuidado, pois qualquer deslize de terra podia nos soterrar, e qualquer passo em falso podia nos fazer enfiar o pé em um buraco.
Não demoramos muito para completar a descida, mas quando a terminamos, estávamos exaustos e suados, o que já virara uma constante. Resolvemos dar um tempo no sopé do monte para recuperarmos o fôlego.
- Seu pai – Dimas me disse. – Acha que ele ainda está lá?
Eu respondi que sim com a cabeça, mas não tinha certeza. Não acho que meu pai ficaria num prédio condenado, a não ser que estivesse ferido, incapacitado. Mas mesmo não estando lá, o prédio de pé me dava a esperança de que ele estava vivo, e isso era o mais importante.
- É melhor irmos em frente – Amanda chamou. – Vamos chegar ao condomínio antes do escurecer.

24.
Depois de cruzarmos uma área descampada e estéril, a floresta voltou a nos envolver com toda sua abundância e estranheza.
Parecemos entrar num mundo de contos de fadas, um contraste tão grande com o pântano que enfrentamos mais cedo que por um momento achei que entráramos em outro planeta. Uma trilha na relva nos guiava floresta adentro, que parecia cheia de cor e vida. Um coelho branco e roliço colocou a cabeça para fora da toca, que ficava às margens da trilha, e nos encarou por um segundo, antes de correr e sumir de vista.
As árvores, mais espaçadas ali, eram bonitas, quase desenhadas de tão perfeitas, com os caules grossos que se ramificavam em galhos simétricos, que seguravam folhas verdes e saudáveis. Algumas flores de cores berrantes despontavam do solo, e um agradável canto de pássaro nos acalmava e animava.
- Olha lá, gente. – Amanda apontou para um grupo de árvores frutíferas mais adiante. – Hora de abastecer.
Corremos para lá como crianças buscando ovos de páscoa escondidos, e logo fomos atingidos pelo cheiro de frutas frescas e suculentas. Colhemos maças, maracujás, cajus, tangerinas e goiabas. Ainda encontramos as já conhecidas jabuticabeiras, que achávamos em qualquer parte, pés de jaca, e melancias esparramadas pelo chão.
- Despensa cheia – disse Herick, tentando enfiar uma melancia em uma das mochilas, sem sucesso. – Quem dera ser assim em todo lugar.
- Esquece essa melancia, Herick. – Marino colocou sua mochila nas costas. – Deixa tudo que é muito pesado para trás, senão vamos começar a diminuir nosso tempo.
Não vi grande problema nisso, afinal nem sabíamos aonde estávamos indo e não tínhamos prazo nenhum, mas concordei que carregar pesos extras não era uma boa ideia. Herick largou a melancia, mas ainda olhou para ela com cobiça.
- Ei – Amanda chamou por ele.
Tirou uma faca do bolso e a jogou para Herick. Ele a pegou no ar e abriu a melancia com habilidade.
- Servidos?
Herick deu um pedaço para cada um. Estava doce e deliciosa, um refresco bem vindo naquele calor de inferno. Herick pegou o resto da melancia e seguimos em frente.
Não sei quanto tempo andamos, mas o céu começava a ficar alaranjado quando encontramos os pedaços de carne secando ao sol. Foi Dimas quem os avistou primeiro e chamou nossa atenção.
- O que é aquilo? – ele perguntou.
Chegáramos a uma parte da floresta onde as árvores eram estranhamente tortas e baixas, e os galhos das árvores pareciam se alongar e se unir uns aos outros, formando um grande varal de madeira. Era para esses galhos que Dimas apontava, mais precisamente, para o que estava pendurado neles.
- Isso é carne? – Liana perguntou.
Moscas rodeavam os nacos de carne, pedaços grandes, cortados em forma de bife. A cor avermelhada era chamativa e eu imaginei um churrasco completo com arroz e vinagrete. Mesmo com a barriga cheia de melancia, minha boca encheu de água.
- Carne vermelha – Jon falou. – Não vimos nenhum animal desde que chegamos, certo? Vocês viram algum?
- Só o coelho – eu lembrei. – Mas esses pedaços de carne são muito grandes para serem de coelhos.
- Com certeza deve ser cervo – Marino disse, querendo encerrar a conversa. – Passamos por um bando deles lá atrás, e essa parte da floresta é muito chamativa para animais. O que temos que fazer é procurar a galera que está aqui por perto. Se eles deixaram essa carne para secar, planejam ficar por um tempo.
Siga a trilha de pedaços de carne, pensei enquanto avançávamos pela floresta, nos guiando pelo frigorífico ao ar livre. Era carne demais, daria para servir um batalhão, se existisse algum instalado na floresta. Não tinha um pedaço de galho livre das carnes, e isso de alguma maneira me arrepiava.
A sensação de déjà vu voltou a me atingir, dessa vez com força suficiente para me deixar tonto.  Tive certeza de já ter visitado aquele lugar, não era uma impressão, era um fato. As árvores nanicas e tortas, os galhos, as flores, tudo era conhecido, nada me surpreendia.
Era um lugar lindo e fresco, perfeito para brincar, acampar, colher frutas. Mas era bem ali, onde era mais bonito, que era mais perigoso...
As palavras explodiram na minha cabeça como fogos de artifício. Eu lembrava daquilo. De onde?
- Uma mulher... – Jon falou. – É uma mulher?
Alguém estava caído no meio da trilha.
- É sim – Jon confirmou e saiu correndo para acudir.
Não fosse pelo fato da senhora estar usando um vestido ultrapassado e puído seria impossível definir seu sexo. O rosto era tão velho e enrugado, que traços femininos ou masculinos eram irreconhecíveis. Os cabelos brancos e finos paravam nos ombros e começavam a rarear no topo da cabeça. Era a mulher mais velha que eu já vira.
- Será que ela morreu? – Amanda perguntou.
A velha estava desacordada, as costas no chão, os braços abertos.  
Jon se ajoelhou ao lado dela e tomou seu pulso. A velha se mexeu um pouco, como se o toque de Jon a tivesse trazido de volta à vida. Jon pareceu ter pensado isso também, pois soltou o pulso dela como se tivesse tocado fogo.
As pálpebras da velha se mexeram, mas não abriram. Ela levantou os braços, buscando algo no ar. Jon lhe ofereceu o braço e a velha agarrou com firmeza, puxando-o para junto de seu corpo. Ela balbuciou alguma coisa. Ninguém entendeu.
- Senhora? – Jon chamou.
A velha abriu os olhos de repente, eram de um verde hipnotizante. Soltou um gemido de dor e segurou com mais força o braço de Jon. Ela nos olhou, desnorteada, perdida.
- Quem são vocês? – ela perguntou, a voz rouca, baixa, falha.
- Não vamos machucar a senhora – Jon respondeu. – Só queremos ajudar.
Ela soltou outro gemido de dor. Seu rosto se fechou numa careta.
- Me ajuda a levantar, por favor.
Dimas, Herick e eu nos unimos a Jon e levantamos a velha. Seu corpo era magro e frágil ao toque, quase como se fosse feito apenas de ossos. O vestido que ela usava a cobria do pescoço aos pés, mas mesmo naquele calor abafado ela não suava ou ofegava. Só suas mãos e rosto estavam descobertos.
A velha era pequena, de pé alcançava meus ombros. Ela tentou ajeitar os cabelos, as mãos tremendo. Apoiou-se no meu ombro para não cair. Por um momento tive vontade de empurrá-la, me livrar dela. Mas foi um ímpeto que foi embora tão rápido quanto veio.
- Obrigada, meus filhos – ela disse.
- O que aconteceu com a senhora? – eu perguntei.
- Eu estou muito velha, eu acho. Essa droga de sol me derrubou. Eu estava voltando para casa, devo ter desmaiado.
- Casa? – Jon se aproximou intrigado. – Ela continua de pé?
A velha olhou para ele como se, de repente, Jon estivesse falando japonês. Suas sobrancelhas ralas e grisalhas se juntaram num tique de incompreensão.
- Minha casa é muito forte, rapaz – ela disse. – Nunca tive problema nenhum.
- Sim, mas... – Amanda estranhou. – A senhora está sozinha? Como é que está se virando?
- Como sempre - a velha respondeu com simplicidade. – Eu sempre morei na floresta.
A declaração da velha me pegara de jeito. Não entendi muito bem o que ela quis dizer, e pelo olhar de meus companheiros, eles estavam no mesmo barco que eu.
A velha largou meu ombro e endireitou a coluna enferrujada. Cambaleou um segundo, mas se firmou sem ajuda. Olhava para todos nós com uma curiosidade simpática e amena, como se fôssemos seres espaciais vindos em missão de paz.
- Quando a senhora diz sempre morei na floresta – Dimas perguntou, confuso. –, quer dizer que sempre morou nesta floresta?
A velha sorriu com a pergunta de meu amigo, mostrando as gengivas rosadas e os dentes pequenos e brancos.
- Isso mesmo – ela respondeu. – Vocês é que não são daqui, não é? Igual aos outros.
- Que outros? – Gaspar se aproximou.
- Uns rapazes vieram bater ontem na minha porta, tarde da noite. Estavam sujinhos e cansados como vocês. Não sou mulher de recusar comida, enquanto eu tiver um pão, eu divido. Foi isso que eu disse enquanto botava eles para dentro e preparava uma sopa.
A velha parou para recuperar o fôlego e limpar a boca, que se enchera de saliva, com a manga do vestido.
- É uma pena, não me lembro dos nomes deles. – Ela levantou os ombros. – Não ficaram muito tempo; comeram e saíram. Viajantes errantes. Embrenham-se pela floresta atrás de aventura, dinheiro. Já vi muitos deles por aí.
- Nesta floresta? – Jon ainda parecia aturdido.
- Sempre os vi por aí, desde que eu era pequena. Um deles tentou se aproveitar da minha irmã... Hump.
Papai cuidou dele, eu pensei, sem razão aparente.
- Papai cuidou dele – a velha disse, para depois limpar a boca de novo.
Foi como se tivessem atingido minha cabeça com uma marreta. Me segurei em Dimas para não cair, tudo rodava. Eu tinha adivinhado o que ela ia falar, ou ela falou o que eu pensei?
- O que foi, cara? – Dimas estava assustado. – Você está branco, meu Deus...
- Olha isso, estão caindo de fome. – A velha se aproximou e passou a mão esquelética no meu rosto. – Devem estar viajando há dias, hein?
Minha vista ficou turva, multiplicada.
- Venham, antes que desmaiem todos – a velha convidou. – O que vocês precisam é de uma comida bem quentinha.
- Obrigado, senhora – Jon disse. – Desculpe, nem perguntamos seu nome...
Rhea, uma voz gritou no meu cérebro.
- Rhea – ela disse com um sorriso.
 E eu desmaiei.