quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Aquela coceira estranha

Ela chegou.
- Tá ouvindo o quê?
Ele olhou para cima, depois de fingir por dois segundos procurar alguma coisa na superfície da mesa de mármore gelado. Encarou os olhos dela. Eram azuis, tão azuis quanto os da garota daquele vídeo que dizia que queria matar os pais e o irmão mais novo. Tão azul que ele teve medo.
Ela fez uma cara de interrogação, impaciente, como se tivesse preguiça de fazer a pergunta de novo.
- The Drums – ele disse, tirando os fones dos ouvidos e se entregando aos sons diegéticos, que nada tinham a ver com as batidas abafadas e sonoridade pretensamente vintage onde estava mergulhado até então.
- Oi?
- The Drums. É o nome da banda. Conhece?
- Não.
- É boa.
Ela não fala nada por um segundo. Dois. Três. Quatro. Cinco.
Ele volta a olhar para o mármore. Sente-o gelado na palma da mão. Ela pinica fortemente. Ele sempre evoca a imagem de formigas percorrendo sua pele quando a coceira vem. Principalmente nas mãos. Ele passeia a palma da mão direita no tampo da mesa, sente um alívio, já não coça tanto. Mas aí as formigas começam atrás de sua orelha. Droga.
Depois de quinze segundos em silêncio:
- Por que cê tava olhando para mim? – ela pergunta.
- Não tava – ele diz, tirando a mão da mesa, tentando manter o frio em sua palma, percorrendo os dedos por trás da orelha, as unhas riscando sua pele, que começa a ficar avermelhada.
- Tava sim.
- Desculpa.
- Eu não te conheço.
- Não. – Os dedos agora percorrem o antebraço esquerdo. A coceira é tanta que ele pode jurar que se desviar seus olhos daqueles azuis de garota que quer matar os pais, ele verá sua pele eriçada como um lençol que esconde algo movente.
- Por que cê tá se coçando?
Ele não diz nada. Nunca sabe o que dizer nessas horas.

Mãe

Eu sabia que ele era diferente, com certeza. Não, desde criança, não. Quando ele era menorzinho era uma criança...bem, odeio colocar as coisas dessa forma, mas normal. Igual às outras. Eu percebi que tinha alguma coisa diferente quando ele tinha uns seis, sete anos. A pele dele começou a ficar vermelha, sabe? Como se fosse uma alergia, alguma coisa. E ele se coçava, de cima a baixo, uma agonia. Falei pro meu marido “tem que ver isso”, podia ser alguma coisa séria, tem tanta doença que a gente nem sabe. Aí levamos ele, né. Hospital, especialista, rezadeira, o diabo... Nada, nada. E ele se coçando, e ele se coçando. A escola começou a ficar preocupada, porque podia ser alguma coisa contagiosa, e eles não queriam expor os alunos, certo? Aí foi aquela loucura de saber o que é isso, como é isso, como é que acontece. Foi aí que a professora dele, Irís... alguma coisa, não vou lembrar, ela disse que as coceiras pioravam quando ele tava junto de uma menina. Uma tal de Ângela, colega de classe. Quando chegava perto dela, ele se lascava de tanto coçar. Mas e aí, sabe? Falamos com os pais da menina, ela não tinha nada, então não podia ter passado nada para ele. Foi uma loucura.  Na época, eu chorava de me acabar, sem saber o que fazer. Aí as coceiras foram diminuindo, certo? Foram parando, parando, até que pararam de vez. Tá certo. Não procurei saber muito, tava feliz que tudo tinha acabado. Aí foi, com doze anos, esse menino foi parar no hospital com a mesma coceira. Tava dez vezes pior. Dava agonia só de olhar. A pele vermelha, vermelha, e ele coçando, e ele coçando, chegava a tirar sangue. Eu falei “Meu Deus do céu, o que é isso agora”?. E o médico vendo e falando “ele não tem nada, ele não tem nada”, e eu “como não tem nada?”, foi um rebuceteiro. Desculpe, pode falar isso? Ah, desculpa. Foi uma confusão, certo? Uma confusão. E eu desesperada, sempre. E meu marido tentando tomar conta de tudo, conversava, tentava acalmar o garoto. E ele sempre perguntando sobre uma tal de Letícia, se ela vinha visitar, onde ela tava. E eu “quem diabo é Letícia?”, aí ele falou “é minha namorada”. Eu falei “pronto”. E não sei o que foi, uma inspiração divina alguma coisa, eu lembrei que da primeira vez que ele tinha tido essa crise foi quando ele ficava perto da outra menina, a Ângela. Eu falei com meu marido “gente, será que ele é alérgico a mulher?”, mas meu marido disse que era bobagem, claro que ele não era, ela vivia cercado de meninas no colégio, na família, cheio de primas e tal. Mas meu marido me disse que, na época lá da primeira crise, nosso filho tava apaixonado pela tal de Ângela, que ele mesmo tinha contado. Que tava gostando muito dela, bem assim, “eu gosto muito dela”. Eu falei “Minha gente, será que esse menino—

- Eu me coço – ele disse, conseguindo pela primeira vez desviar dos olhos azuis.
- Eu tô vendo. Mas por quê?
Ele gaguejou uma resposta baixa, envergonhada. Ela instintivamente se inclinou para ele, tentando ouvir. O cabelo dela deslizou pelos ombros e escorreu até o seio esquerdo. Ficou por ali um momento se rebolando até assentar-se em pequenas ondas no peito coberto por uma camisa de algodão, e só isso. Sem sutiã. Ele podia ver o bico, quase podia ver sua cor amarronzada, queria mais que tudo sentir o gosto em sua boca.
- Hey.
Ela estalou os dedos a dois centímetros do rosto dele. Ele piscou, constrangido, tanto por ter encarado o seio dela por tanto tempo, quanto por perceber que a coceira tinha chegado à sua virilha. E ele estava coçando.
- Você é tarado?
- Não.
- Han, e você ia me dizer se fosse?
- Ia.
Ela riu. Da cara de bobo dele.
- Por que cê tá se coçando, garoto? E me seguindo?
- É que eu me coço toda vez que eu tô apaixonado.
- É o quê?
- Desde pequeno. Toda vez que tô apaixonado, eu me coço.
- Mentira.
- É verdade.
- E por que cê tá me seguindo?
- É que eu tô apaixonado por você.
Ela abriu e fechou o sorriso num segundo.
- Cê me conhece?
- Conheço. Um pouco.
- De onde?
- A gente pegou uma matéria junto.
- Não lembro.
Ele levantou os ombros, constrangido. A coceira parecia fogo sob sua pele. Ele tinha que se controlar para não rolar no chão, arranhando sua pela até a sensação passar. Mas não passava, nunca passava.
- Qual seu nome? – ela quis saber.
- Rui.
- Rui?
- Nome de velho, eu sei.
- Você vai ser velho um dia.
- Tomara.
Desta vez, ela sorriu.
- Sabe meu nome?
- Pérola.
- Eu odeio.
- É lindo.
Pérola olhou para Rui como se não acreditasse. Apontou a cadeira vaga ao lado dele.
- Posso sentar?
Rui olhou para ela como se não acreditasse. Fez que sim com a cabeça, como se tentasse expulsar gafanhotos de seus cabelos.
Pérola sentou.
Rui coçou o braço direito, um sorriso de gente idiota no rosto.
- Dói? – Pérola perguntou vendo Rui se coçar.
- Não. – Pensou melhor. – Às vezes.
- Tá doendo agora?
Ele sorriu. Pérola não sabia se isso queria dizer sim ou não.
Pérola pegou o braço dele.
- É aqui?
Rui fez que sim com a cabeça. Pérola coçou o braço dele. Suas unhas percorreram a pele arranhada como se a conhecesse, e por isso mesmo, escolhendo caminhos que não aqueles já percorridos. Trazendo alívio em outros toques, novos toques. Rui achou que fosse morrer. E não achou nada ruim.
Eles se olharam por um minuto completo. É muito azul, Rui pensou, tanto azul.
Foi ela quem piscou primeiro, talvez com medo de sentir o que ele tava sentindo.
- Que é que cê tava ouvindo mesmo?
- The Drums.
- Vamo ver se é bom.
Eles dividiram o fone de ouvido pela primeira vez.