19.
Cabelos Grisalhos na verdade se chamava Joanatan, era um policial civil
aposentado e tomara para si a liderança do pequeno grupo que nos cercara. Eram cinco
pessoas diferentes entre si, o tipo de grupo que só se formaria em uma situação
adversa.
Eles se apresentaram, mas eu ouvia distraído e agitado. Corri para o
carro, tombando em árvores e galhos, a noite chegara completamente e a única
luminosidade na área eram os feixes das lanternas do grupo de Joanatan.
Encontrei Perla encostada na roda traseira da caminhonete, as pernas
dobradas na frente do corpo, chorando. Ajoelhei-me em frente a ela quando um
feixe de luz revelou seu rosto manchado e assustado. Ela me abraçou tremendo,
me apertou junto dela. Sua camiseta estava esticada, como se a tivessem puxado,
mas não rasgada.
Felizmente, os caras não tiveram tempo de fazer muita coisa além de
assustá-la, mas isso foi suficiente para desejá-los mortos, cruelmente mortos,
na floresta. A moça bonita que me escoltara durante o confronto minutos atrás,
novamente surgiu atrás de mim. Perla a encarou, confusa e nervosa, mas eu
acenei com a cabeça para mostrar que estava tudo bem.
- Oi – disse a moça numa voz baixa e gentil. – Você é a Perla, certo? Me
deixa te ajudar...
Perla me puxou mais para perto. Tremia de novo.
- Tudo bem, Perla – eu cochichei em seu ouvido. – Eles são legais.
Perla parecia perdida. Podia ser uma impressão inicial, mas aquele ataque
a tinha modificado mais do que eu poderia imaginar. Tremia de pensar em como
ela estaria se aqueles homens tivessem ido até o fim. Em seus olhos, onde havia
vivacidade e curiosidade, agora só existia medo e desconfiança. Bem vindos à selva, Joanatan dissera. A
ficha acabara de cair.
- Vamos só lavar esse rosto, colocar um agasalho. Está ficando frio.
A moça estendeu a mão para Perla e eu achei que ela ia ficar no vácuo, mas
Perla lhe estendeu a mão trêmula. Lançou-me um olhar de criança desamparada,
mas eu a encorajei com um sorriso. A moça a ajudou a se levantar e juntas
entraram no carro.
Uma estranha luminosidade me chamou a atenção e eu me virei para uma
fogueira. Dimas e Herick alimentavam o fogo com os galhos que conseguiram
recolher. Joanatan arrastara uma pedra, e se sentara nela, admirando o fogo.
Além da moça que cuidava de Perla no carro e Joanatan, a caravana ainda
contava com o que parecia um casal de namorados, pelo menos o rapaz gorducho
trazia a garota peituda segura em um abraço, e o garoto quase tão novo quanto
nós. Todos pareciam cansados e abatidos, mas acima de tudo, rudes e perigosos.
O rapaz gorducho largou a namorada quando Joanatan o chamou com um aceno
de mão. Tirou a mochila estufada das costas e a entregou ao líder.
- Obrigado, Marino.
Joanatan tirou de lá um pacote de
salsichas de cachorro-quente e meu estômago deu uma guinada, estava morrendo de
fome. Dimas e Herick me olharam esperançosos e eu fui me juntar a eles. Os
outros integrantes da caravana também se sentaram ao redor da fogueira, só
Perla e a moça bonita continuaram no carro.
- Podemos comer? – Joanatan nos perguntou, sorrindo, e abriu o pacote de
salsichas. – Liana, você conseguiu pegar...
Mas a namorada de Marino já estava dizendo que sim com a cabeça antes que
Joanatan terminasse. Foi sua vez de abrir a mochila e tirar alguns espetos de
madeira para churrasco.
- Aqui, Jon – ela disse estendendo os palitos de madeira. – Sabia que iam
ser úteis.
Jon fez um gesto de cabeça indicando o garoto mais novo da caravana e
Liana entregou os espetos para ele. O garoto os recebeu um tanto sem jeito.
- Gaspar – Jon resmungou. O garoto olhou para ele e Jon lhe jogou o
pacote de salsichas. – Pode começar.
A porta do carro se abriu e Perla e a moça saíram. Perla nos viu e correu
para sentar-se do nosso lado. Trocara a camisa esticada do uniforme por um
agasalho vermelho e folgado.
A moça sentou-se ao lado de Gaspar. Ele sorriu para ela, que lhe lançou
uma piscadela.
- Tudo bem?– ele perguntou, enquanto espetava as salsichas nos palitos.
Ela confirmou com a cabeça e colocou um sorriso cansado no rosto. Perla
não tirou os olhos dela um segundo, mas não disse nada.
- Obrigado – eu disse um tanto acanhado. – Por cuidar dela.
- Não foi nada – ela respondeu. – Tomamos conta uns dos outros agora. De
agora em diante tem que ser assim.
- Estamos com fome, Gaspar – Jon resmungou para o garoto que preparava as
salsichas. – Ainda vai demorar?
- Não, já está pronto – Gaspar disse, enquanto passava os espetos para a
moça que ajudara Perla, que por sua vez os passava para Jon.
Enquanto fazia isso, a moça lançava olhares significativos para nosso
grupo. Devíamos estar parecendo cachorrinhos assustados diante deles.
- Gostam de cachorro-quente? – ela perguntou com um sorriso.
- Na atual situação – Herick respondeu -, gostamos de qualquer coisa.
- Esse é o espírito – a moça disse, tentando achar um pedaço de chão
confortável. – Eu já sei o nome dela. Perla. Mas vocês...
Fiz as apresentações formais. A moça olhava atentamente o rosto de cada
um enquanto nossos nomes eram revelados.
- Eu sou Amanda – ela disse, por fim.
- Vocês se livraram de uma boa hoje, garotos – Joanatan disse enquanto
colocava os espetos de salsicha perto do fogo para torrarem.
Olhamo-nos pouco à vontade com tanta gente nova e concordamos com a
cabeça. É engraçado como tínhamos nos tornado um grupo desde o início de tudo
aquilo. Mesmo na confusão pós-terremoto, não deixamos ninguém se aproximar,
pelo menos não o suficiente para ser um
de nós. Não sei de onde viera a ideia de que nós bastávamos, mas ali,
rodeados de pessoas estranhas, e que tinham nos salvado, a consciência de que
éramos apenas garotos perdidos numa floresta infinita nos atingiu.
- Fomos pegos de surpresa – eu disse para quebrar o silêncio. – Tínhamos
decidido dormir por aqui, sabe, não queríamos encarar a floresta à noite.
- O perigo não está só na floresta – Amanda falou, soltando os cabelos do
coque. – Quando se sentem acuadas, as pessoas fazem coisas que machucam.
Perla abaixou a cabeça e se aninhou em meu peito. Coloquei meu braço em
seus ombros e a apertei junto de mim.
- A gente sabe – Herick rebateu. – Fomos atacados antes mesmo de a
floresta tomar conta de tudo. Foi um dos motivos pelos quais resolvemos ficar
aqui, montando guarda.
Joanatan balançou a cabeça, pensativo. Remexeu no churrasco de salsicha e
pareceu satisfeito com eles. Liana abriu novamente sua mochila e tirou de lá um
pacote de pães; pegou dois, um para ela e outro para o namorado, e passou o
pacote para o resto do grupo.
- Vocês devem estar com fome – Gaspar disse pegando seu pão e nos
passando o pacote. – Comeram alguma coisa hoje?
- Só jabuticabas. – Dimas pegou três pães e passou o pacote para
Joanatan. – Acho que ainda temos algumas se quiserem para a sobremesa.
- Pode ser. – Gaspar pegou um espeto de salsicha e colocou dentro do pão.
Apertou o pão e retirou o palito de madeira, deixando a salsicha segura lá
dentro.
- Guarde o palito, não podemos jogar nada fora por enquanto – Amanda
disse repetindo o gesto de Gaspar com o churrasco de salsicha. Ele balançou a
cabeça.
- Vocês estavam no colégio quando... – e Gaspar fez um gesto indistinto
com a mão mostrando as árvores.
Joanatan nos entregou nossas salsichas, e elas foram direto para o pão.
- No terremoto ainda estávamos no colégio – eu disse abocanhando um bom
pedaço do meu cachorro-quente. – Mas quando as árvores surgiram já estávamos na
rua. Você?
- Matando aula – Gaspar falou de boca cheia. – Provavelmente o que me
salvou.
Pela primeira vez pensei na galera que tinha ficado no colégio,
esperançosa, contando que os bombeiros e a polícia chegariam. Me perguntei se
alguém de lá conseguira sobreviver e isso me embrulhou o estômago, a morte
estava virando algo corriqueiro demais para o meu gosto.
Terminamos a refeição em silêncio, Perla mal tocou na comida. Todos estavam
perdidos em pensamentos, encarando o fogo, contemplativos. Os sons noturnos da
floresta tinham o poder de nos acalmar e intrigar. Trinados de aves, correnteza
de rio, farfalhar de folhas ao vento.
- Como vocês conseguiram as armas? – Herick perguntou.
Todos eles carregavam uma. Desconfiava que a mochila que Joanatan não
largava devia estar cheia de munição, ou de mais armas. Ele era o único que
parecia completamente à vontade com a situação.
- Esta aqui é minha mesmo. – Joanatan tirou o revólver do coldre e ele
cintilou com a luz da fogueira. – Do meu tempo de polícia. As outras também são
minhas, mas nunca usei. Eu tinha uma espécie de coleção. Estava em casa quando
tudo aconteceu. Depois do terremoto, saí juntando tudo que podia, metade da
minha casa tinha sido destruída. Coloquei as armas na mochila, e foi só isso
que eu consegui salvar.
- E vocês foram se achando pelo caminho... – eu falei.
Amanda balançou a cabeça em afirmativa e Gaspar sorriu.
- Em uma situação como essa, o melhor é se unir – Gaspar falou.
Em uma situação como essa, ele
disse. Mas que situação era aquela? Continuava perdido e atônito, faltava ali
uma explicação lógica, compatível. A pergunta chave continuava a se repetir em
minha cabeça: Como enfrentar uma situação que era indefinível?
- Vocês sabem o que foi que aconteceu?
Um silêncio temporário foi a resposta para minha pergunta. A caravana de
Joanatan trocou olhares cúmplices e assombrados, o que me fez ter certeza que
eles sabiam de alguma coisa. Ou pelo menos mais coisas do que nós.
Foi Joanatan quem voltou a falar:
- Sabemos o que aconteceu, mas não como ou por quê.
- Sabemos o que aconteceu também – Dimas disse cansado. – A floresta
tomou conta de tudo. Quer dizer que vocês não sabem mais do que a gente...
- Ninguém sabe – Marino tomou a palavra. – Depois do terremoto o mundo
virou de cabeça para baixo, porque o terremoto foi de escala global. Todas as
emissoras estavam noticiando, mostrando imagens... Até que saíram do ar.
- Ouvimos rumores logo depois do terremoto – Perla disse, a voz fraca, acanhada.
- Achamos que talvez fossem exageros...
- Provavelmente não eram – Marino continuou. – Muitos lugares já estavam
completamente destruídos antes de as árvores aparecerem. Todas as cidades costeiras
já estavam debaixo de água. Tsunamis. Parece impossível, mas olha em volta. O
impossível nos engoliu a todos.
Liana abraçou o namorado com força
e ele parou de falar para lhe afagar os cabelos. As notícias não eram novas ou
positivas, só confirmavam o que já sabíamos. Estávamos perdidos, sem esperança.
- Aonde vocês estão indo? – Dimas perguntou. – Agora que tudo parece
estar destruído...
- Acho que a única coisa que podemos fazer é nos juntar a outras pessoas
– Amanda disse. – Há muita gente como aqueles caras que botamos para correr,
mas também tem muita gente confusa, perdida, como nós. É juntar a galera e
tentar recomeçar.
Era um plano genérico demais. Eles estavam falando de reconstruir uma
sociedade, uma cidade, um mundo. Resolvi não falar nada, embora tivesse sérias
questões em relação àquele plano. Para começar, juntar as pessoas seria um
trabalho do cão, e sem garantia de recompensas. Todos estavam assustados e
fragilizados, uma combinação nada atraente.
- Vamos todos juntos? – Joanatan nos perguntou.
Não tinha o que pensar. Fazer parte daquela caravana podia ser nossa
salvação, não tínhamos ideia do que nos aguardava mais à frente e um grupo
armado e numeroso podia ser de grande ajuda. Trocamos um olhar de concordância
e estava decidido.
- Ok – eu disse.
- Bom – Joanatan se levantou. – Partimos amanhã cedo. Quem fica de guarda
primeiro?
20.
Gaspar e eu fomos os primeiros a ser escolhidos para a guarda. Como
estávamos em oito, decidimos que duplas se revezariam a cada três horas até que
todos pudessem ter alguns momentos de sono.
Herick, Dimas e Perla se instalaram no carro, o resto da caravana montou
acampamento perto da fogueira e adormeceram por lá. Gaspar e eu sentamos com as
costas apoiadas numa árvore nodosa e, pelo menos em aparência, centenária. A
fogueira dava sinais de exaustão e como estávamos sem madeira para alimentar o
fogo, resolvi sair para buscar mais.
- Fica no alcance da luz – Gaspar disse. – Se não encontrar muita madeira
não tem problema, se você se perder a confusão vai ser maior.
Fiz o que ele disse, e de fato, não consegui muita coisa para alimentar o
fogo. Catei alguns galhos secos do chão, descartando os que pareciam muito
novos. Não sabia quase nada de acampamento e estava completamente perdido
naquela situação toda. Confiava em alguns conhecimentos adquiridos em filmes de
aventura, mas tinha sérias dúvidas de que eles se aplicariam cem por cento na
vida real.
Ainda dentro da auréola de luz que marcava meus limites, encontrei uma
jabuticabeira, provavelmente tinha sido naquela árvore que Herick colhera os
frutos que nos alimentaram mais cedo. O cheiro das frutinhas pretas novamente
me fez lembrar de Jô.
Assim como minha mãe, não abrira mão da esperança de que ele ainda
estivesse vivo. Mas na atual situação, não sabia se aquela certeza fazia algum
sentido. O mundo destruído, a floresta engolindo tudo, e ele era só uma
criança.
Minha cabeça girou por um segundo e eu precisei segurar num galho da
jabuticabeira para não cair. Respirei fundo e tentei esvaziar minha mente, ou
pelo menos, expulsar os pensamentos sombrios e negativos que envolviam minha
família. Se era para ter esperança, a teria por completo. Pensaria em meus pais
vivos e em meu irmão também.
Voltei para o acampamento e coloquei os galhos secos perto da fogueira,
os usaríamos quando necessário.
Gaspar continuava alerta e
desperto, com o revólver na mão. Sentei-me ao lado dele, que me lançou um
sorriso de reconhecimento. Não falamos nada por um bom tempo, só ouvimos os
sons da floresta, e Joanatan, que roncava.
O céu explodia de estrelas, uma imagem linda que eu conhecia bem por
crescer afastado das luzes da cidade. Lembrei que minha mãe me dizia para não
contar estrelas, pois cresceriam verrugas em mim. Pareciam lembranças de um
tempo antigo, longínquo, assim como os gritos de desespero e morte de mais
cedo, que de alguma forma não pareciam casar com aquela tranquilidade rústica.
- Você saber mexer nisso? – eu perguntei, olhando para o revólver que
Gaspar mantinha seguro nas mãos.
- Não muito. Jon me ensinou o básico. É a primeira vez que eu pego numa
arma de fogo.
- É muito útil agora. Quer dizer, é só você apontar e, sei lá... Assusta.
Gaspar concordou com a cabeça e girou o revólver nas mãos. Era um modelo
antigo, com o cano longo e fino. Me fez lembrar os filmes de faroeste que meu
pai assistia nos canais a cabo.
- Tomara que só a visão disto assuste mesmo... Não sou o melhor atirador
do mundo.
- Talvez agora seja – eu disse, e Gaspar sorriu. – Deve estar pelo menos
entre os dez melhores.
Um uivo longo e tremeluzente chegou aos nossos ouvidos e os pelos de meus
braços se arrepiaram. Não pensei imediatamente em lobos, mas em lobisomens.
Pode parecer estranho, mas se tornara uma coisa comum eu pensar no mais
esdrúxulo antes de me voltar para as coisas mais naturais.
- Lobos? – Gaspar perguntou, mais pé no chão do que eu.
Não respondi nada e tentei ver através da cortina obscura que cobria a
floresta. Talvez fossem mesmo lobos.
- Onde você encontrou o resto do pessoal? – perguntei, desviando o
assunto para outro caminho.
- Minha noção espacial ficou seriamente comprometida depois da floresta –
ele disse pensativo. – Não sei dizer em que parte da cidade eu estava.
Balancei a cabeça, compreensivo, e Gaspar continuou.
- Encontrei o Jon e a Amanda
primeiro. Marino e Liana se juntaram a nós já aqui perto, no final do dia. Foi
aquilo que conversamos. Se é para ir para algum lugar, é melhor irmos todos
juntos.
- Então, vocês caminharam a tarde toda?
- Praticamente. Paramos aqui, ali. Descansamos, mas não ficamos parados
muito tempo.
- Vocês encontraram alguma coisa anormal pela floresta? Mais anormal do
que tudo isso...
Gaspar me encarou curioso e se aproximou. A arma cintilou à luz da
fogueira.
- Como assim?
Mordi o lábio inferior. Não queria parecer bobo ou impressionável, mas
não podia deixar passar aquela oportunidade.
- Essa tarde, por duas vezes, nós ouvimos um som. Um rugido, talvez, um
urro...
- Eu sei – Gaspar me cortou. – Nós ouvimos também. Não parecia com um
animal, não um animal comum, pelo menos.
Concordei com a cabeça, mudo. Não era parecido com nada do que eu conhecia
ou ouvira falar.
- Vocês viram animais, de qualquer tipo? – eu perguntei. – Quando vinham
para cá.
Gaspar parou para pensar um momento, parecia confuso, indeciso.
- Acho que vi alguma coisa – ele disse, por fim. – De relance, muito
rápido. Um animal de médio porte, mas foi muito rápido. Passou longe, atrás das
árvores, posso ter me confundido.
- Pensei... Toda a floresta tem uma fauna. Sem supermercados,
lanchonetes... Vamos ter arranjar um jeito de comer.
- Acho que você está certo. Toda floresta tem que ter uma fauna. Pelo
menos pássaros, sabemos que tem. Eu os ouvi cantando o dia todo.
- Certo.
O fogo crepitou baixinho e ameaçou se extinguir. Gaspar se levantou e foi
reavivá-lo com os galhos secos. A fogueira parecia que não ia reagir aos
estímulos, mas rapidamente os galhos incendiaram e o fogo levantou de novo.
- Você está com o quê? – Gaspar perguntou, sentando-se de novo ao meu
lado. – Dezesseis, dezessete?
- Dezessete. Você também?
- Dezoito. Desde ontem.
- Parabéns.
Gaspar sorriu e coçou a barba rala.
- Tem família? – eu continuei a conversa.
- Rezando para ainda ter.
- Eu sei.
Gaspar encostou-se no tronco da árvore e se perdeu em pensamentos,
encarando o fogo. Era difícil levantar o assunto família naquela situação,
quando não tínhamos como ter notícias ou esperanças. Mas por mais fantasioso e
ingênuo que fosse, não conseguia pensar em minha família morta. Aquela floresta
invadindo tudo fora algo tão desconcertante que parecia que tínhamos sido
enviados para outro mundo, outra dimensão, e que a Terra continuava segura,
salva. E todas as pessoas que amávamos estavam lá. Era um pensamento infantil,
quase como pensar que nossas pessoas queridas tinham ido tirar férias no céu.
- Eu tenho uma filha, sabia?
Gaspar tirou a carteira do bolso traseiro da calça e eu me aproximei,
surpreso com a revelação. Ele tirou de um dos compartimentos internos a foto de
uma garotinha bonita e morena. Tinha os cabelos cheios e crespos, assim como a
garota que a segurava.
- Que linda – eu disse, pegando a foto que ele me estendia. – Ela é
grande.
- É. Ia fazer... Vai fazer três anos.
- Uau, você começou cedo.
Gaspar sorriu, mas não pareceu embaraçado.
- E essa é a mãe dela... – eu concluí, olhando para a jovem que segurava
a criança.
- Minha namorada. É.
Pensei em mais alguma coisa para dizer, mas nada me veio à cabeça.
Perguntar onde elas estavam quando tudo aconteceu só traria más lembranças,
preferi ficar quieto e deixá-lo viajar nos pensamentos. Devolvi a foto para
ele, que guardou na carteira.
- E a sua família? – Gaspar quis saber.
- Pai, mãe e um irmão. Meus pais estão separados.
- E seu irmão estava no colégio?
- Eu não sei onde meu irmão está. Ele desapareceu já tem três anos.
- Que merda.
Levantei os ombros e foi minha vez de encarar o fogo, pensativo. De novo,
só conseguia pensar em Jô. Agora, mais do que nunca, tinha uma estranha
sensação de que ele estava vivo, esperando. Mas se não conseguimos achá-lo
quando tínhamos os recursos do mundo moderno, como encontrá-lo agora, no meio
de uma floresta estranha e hostil?
- Posso te perguntar uma coisa? - Gaspar falou. Voltei a olhar para ele.
– Aquele cara, o que estava te agredindo...
Me aprumei, desconfortável, já tendo uma ideia do que ele ia perguntar.
- Quando chegamos, ele estava dizendo que você tinha quebrado a perna
dele.
Sorri para mostrar que achava aquilo uma bobagem, mas Gaspar continuou.
- Eu iluminei a perna dele em um momento e... A coisa mais estranha. A
perna ia normal até chegar ao tornozelo. Ali, a calça murchava, está dando para
entender? Como se o tornozelo não estivesse mais ali, ou pelo menos não estivesse
inteiro. E o pé estava virado num ângulo completamente estranho, impossível...
Olhei para Gaspar constrangido, incomodado. Não sabia o que dizer, como
agir.
- Como é que você fez aquilo? Você fez mesmo aquilo?
Balancei a cabeça em uma negativa, mexendo a boca tentando encontrar as
palavras certas para encerrar aquele assunto, deixá-lo para trás. Gaspar me
encarava, curioso.
- Ei, garotos – era a voz de Jon. Ele acordara. – Acabou a ronda de
vocês?
Gaspar olhou seu relógio de pulso e disse que ainda faltava meia hora
para a troca de guardas. Joanatan se levantou e estalou as costas assim como
Dimas. Gaspar ainda olhava para mim interessado, mas não me perguntou nada.
- Não vou mais conseguir dormir – Jon disse, bocejando. – Se vocês
quiserem descansar, podem ir. Eu acordo a Amanda em meia hora, não vai ter
problemas.
Não dei chances para ele mudar de ideia e me levantei rápido. Gaspar
entregou para Jon o relógio e eu fui me deitar no carro, junto com meus amigos.
21.
Acordamos cedo, embora eu não soubesse exatamente a hora. Estava com o
corpo doído por dormir sentado, mas me sentia revigorado, ou tão revigorado
quanto se podia estar. Olhei para os bancos da frente e só vi Herick bocejando
e coçando a cabeça. Perla e Dimas já estavam acordados, fora deles o último
turno.
Herick e eu saímos do carro e o resto da caravana já se mexia. Marino e
Liana dobravam e guardavam os agasalhos que haviam lhes servido de travesseiros
durante a noite. Amanda estava sentada em uma pedra, as pernas abertas e os
joelhos dobrados, os cabelos jogados para um lado, limpando sua arma de um
jeito sexy e ameaçador. Olhei para o lado e percebi que não fora o único que a
notara, Herick também estava babando.
- Bom dia, vocês – Perla disse, se aproximando. Estava mais animada e
corada que na noite anterior, o que me deixou contente.
- Oi – eu respondi. Ela me abraçou com preguiça. – Como é que foi o
turno?
Ela levantou os ombros, descontraída.
- Tranquilo. Dimas e eu estamos aprendendo a atirar. Não é nada difícil,
a Amanda vai me deixar atirar mais tarde.
Um brilho intenso passou pelos olhos de Perla, um brilho que eu sabia que
não veria se voltasse dois dias. Ela podia ter melhorado, mas não esquecera, o
que talvez fosse bom.
Joanatan nos chamou para comer alguma coisa antes de partirmos. Gaspar
apareceu vindo da floresta, as mãos vazias. Disse que não encontrara árvores
frutíferas, com exceção, é claro, das jabuticabeiras.
- Podemos encontrar pelo caminho – disse Amanda, guardando a pistola no
coldre que envolvia sua cintura. – Me lembro de ter visto maracujás e mangas no
caminho para cá. Dei bobeira não pegando, achei que encontraríamos fácil.
Comemos só uns pedaços de pão e bebemos água. Marino carregava uma
garrafa térmica cheia, mas não mágica. Em algum momento, aquilo ia precisar ser
reabastecido.
Juntamos nossas coisas e partimos.
Jon nos liderava por todo o caminho. Ia à frente, calado, introspectivo.
Vez ou outra Amanda caminhava a seu lado. Eles conversavam baixo, sorriam e ele
voltava a ficar sozinho.
Nós, por outro lado, conversávamos por todo o caminho. Trocávamos
confidências, descobríamos coincidências, ríamos de histórias antigas. Em pouco
tempo, todos parecíamos velhos conhecidos, não um grupo que se conhecera há
menos de vinte e quatro horas. Podia parecer estranho que, estando onde
estávamos, vivendo o que vivíamos, ainda nos parecesse possível conversar
amenidades, rir e nos divertir. Mas não tinha outra coisa que podia ser feita,
ou era isso ou enlouquecíamos.
Era impressionante ver no que a cidade e - se estivéssemos certos em
nossas previsões - o mundo tinham se transformado. Até onde a vista alcançava,
só conseguíamos identificar árvores e mais árvores. Em alguns momentos, elas se
juntavam em um corredor estreito, em outras se espaçavam em um caminho
agradável. Nesses casos, ainda conseguíamos ver vestígios de nossa civilização.
Estruturas de metal, ruínas de casas ou estabelecimentos comerciais, produtos
dos mais diversos. Tudo o que parecia minimamente aproveitável levávamos
conosco. Nesse jogo de pique - esconde, encontramos as ruínas do que parecia ser
um mercadinho de bairro. Conseguimos salvar dos escombros poucos mantimentos,
biscoitos recheados e uma mina de ouro: um pacote com garrafas de água mineral.
Estavam quentes, mas pareceram perfeitas para nós.
A dúvida que eu levantara durante a madrugada, sobre a existência de
animais na floresta, foi respondida logo. Quando deixávamos o mercadinho, um
bando de cervos passou em nossa frente. Olhei admirado para os animais esguios
e majestosos, trotando tranquilos e altivos.
- Cervos – Joanatan disse, quando retomamos a caminhada. – Agora, podemos
ver de tudo.
Menos gente, eu pensei. Por
mais que andássemos, não vi nenhum grupo como o nosso, ou mesmo pessoas
sozinhas, o que era estranho, pois ouvíamos murmúrios e cochichos. As pessoas
estavam lá, mas não apareciam.
Comentei isso com Dimas e ele disse ter a mesma impressão.
- Talvez estejam assustados – Herick falou. – Não sabem o que esperar da
gente, e nem nós sabemos o que esperar deles.
- É – Perla disse. – Não tivemos boas experiências com essas pessoas.
Perla já nos dividira entre nós
e eles. Tentei não tornar isso uma
grande coisa, mas com certeza seria quando outras pessoas se juntassem ao nosso
grupo.
22.
Chegamos a uma área problemática da floresta por volta de onze horas da
manhã.
A primeira coisa que nos atingiu foi o cheiro, isso bem antes de
começarmos a andar em um terreno lamacento e instável. Era um odor forte,
desagradável, podre que nos fez tapar os narizes, o que não impediu o cheiro
pútrido de nos alcançar.
O pé de Joanatan foi o primeiro a afundar na lama. Sua perna foi engolida
pelo pântano até a altura do joelho, ele se desequilibrou e caiu com as mãos no
chão. Amanda o ajudou a se levantar, mas precisou de Marino e Dimas para
desatolar o pé de Jon.
- Vamos começar a ter cuidado por aqui – Jon disse, limpando as mãos na
camisa. – Esses pântanos podem ser mais perigosos do que parecem.
Só de ouvir a palavra pântano imaginei jacarés e crocodilos do tamanho de
dinossauros prontos para nos atacar. Tentei me livrar daquelas ideias, mas
aquela parte da floresta era perfeita para a proliferação de pensamentos
espúrios. As árvores ali eram estranhas, tortas e escuras, cresciam muito
juntas umas das outras e as perdíamos de vista de tão altas. Passamos diversas
vezes por troncos da largura de pernas de gigantes.
À medida que avançávamos, o dia parecia virar noite. As copas das árvores
impediam completamente a luz do sol de penetrar, mas ao invés de nos proporcionarem
uma sombra fresca, nos cobriam com uma sombra desagradável e estéril.
Jon indicava o caminho a seguir, desviando de montes de terra putrefatos
e molengas, onde provavelmente afundaríamos. Andávamos contíguos a um lago
escuro e espesso, que não corria, permanecia estático. A superfície borbulhava
lentamente, o estouro das bolhas ecoava no ar silencioso e pesado.
Mais de uma vez tive uma sensação estranha, um déjà vu. Era quase como se
já tivesse andado por aqueles pântanos, visitado aquele lugar. Por mais
impossível que pudesse parecer, não conseguia deixar de sentir uma estranha
familiaridade com aquilo tudo.
Um inseto, o maior que já vira, deu um rasante na cabeça de Dimas, nos
surpreendendo a todos. Meu amigo pulou de susto e, achando que o bicho ainda
estava em sua cabeça, não parou de mexer compulsivamente nos cabelos, até que
Herick segurou seus braços para que ele parasse.
- Droga de bichos – ele disse, ofegante. – Que merda era aquela?
Os insetos viraram parte da nossa viagem. Mosquitos, moscas, pernilongos
e outras criaturas maiores e desconhecidas por nós nos assediaram durante todo
o caminho, sugando nosso sangue, nos mordendo, incomodando. Era uma tortura.
- Droga – eu disse, estapeando minha testa e matando um borrachudo.
Os braços de Perla estavam vermelhos de tantas mordidas e picadas. Ela
prendeu os cabelos em um rabo de cavalo e se abanou com as mãos. O ar abafado,
o cheiro desagradável e os insetos tornavam impossível nossa permanência ali.
Continuamos perseverantes e silenciosos, buscando qualquer caminho
alternativo que nos tirasse daquele lugar o mais rápido possível. Escalamos a
raiz de uma árvore que emergira do solo e se erguia quase dois metros. Olhei
para cima e o caule tortuoso e grosso da árvore parecia subir até o céu, igual
o pé de feijão do João.
- É impressão minha ou está ficando mais fácil de respirar? – Liana perguntou.
Não era impressão. Um vento agradável circulava, soprando em nossos
rostos suados e vermelhos. As árvores estavam mais espaçadas e o sol já
conseguia entrar. Aquela parte da floresta estava ficando para trás.
Apressamos o passo, animados, deixando as árvores para trás, entrando em
um descampado onde a relva crescia verde, livre e fresca. Dimas se jogou no
chão, de barriga para cima, e respirou fundo.
- Graças a Deus – disse, explodindo numa gargalhada. – Achei que ia
morrer ali.
- Acham que devemos parar agora? – perguntei, tirando a camisa e
enxugando a testa suada.
Mas todos já estavam deixando as mochilas caírem e se sentado. Segui o
exemplo de Dimas e também me deitei na grama. Minhas pernas agradeceram o
descanso, se olhasse para elas poderia ver fumaça escapando.
- Comer – Jon chamou, mas não me levantei por um instante. Fiquei olhando
o céu azul, sentindo o vento em meu rosto e desejei, não pela primeira vez, que
tudo aquilo acabasse.
- Edie – Perla me gritou, e eu me levantei para me juntar ao grupo.
Como não tínhamos armado uma fogueira, comemos o básico e sem reclamar.
Devoramos o resto do pão, que começava a endurecer, algumas salsichas e miojo
cru. Amanda também abriu o pacote de biscoitos recheados e deu dois para cada
um de nós. O gosto de chocolate quase me fez gozar de tanto prazer.
- Onde será que a gente está? – perguntei, tentando me situar, colocando
um mapa imaginário da cidade em cima do percurso que tínhamos feito.
- Perto do centro, talvez – Marino disse. – O centro deve ser por aqui.
- Estou me lembrando do cara que encontramos, aquele que fumava direto –
Perla falou. – Ele disse que no centro a situação devia estar bem pior do que estava
no Porão.
Dimas concordou com a cabeça, uma sombra cobriu seus olhos. Ele estava
pensando no pai.
- Eu contava que íamos encontrar mais pessoas. – Jon parecia
decepcionado. – É impossível que tenha sobrado tão pouca gente.
- Passamos por algumas pessoas no caminho – Amanda disse. – Mas elas
estavam se escondendo, com medo, acho. – Ela levantou a arma para mostrar um
possível motivo para o pavor.
- Eu tive a mesma impressão – eu endossei. – Mas mesmo contando com esses
que se esconderam, é muito pouca gente, mesmo pensando nos que morreram.
Jon concordou com a cabeça, mas não se demorou muito no assunto.
Levantou-se espanando a sujeira da calça.
- Vou dar uma volta por aí – ele disse. – Vê se encontro um lago, rio,
qualquer coisa. Estou precisando jogar uma água no corpo.
Herick ficou de pé rapidamente e se voluntariou para ir junto. Marino fez
o mesmo, depois de dar um beijo na namorada. Os três seguiram em frente.
- Amanda – Perla chamou. – Você falou que me ensinava a atirar. Pode ser
agora?
Amanda se levantou disposta, e tirou a arma do coldre.
Liana pegou sua pistola, que descansava em cima da mochila, e a entregou
para Perla.
- Pode treinar com a minha.
Perla sorriu.
- Vem comigo – Amanda chamou Perla, e as duas desceram o caminho em
direção a uma árvore que já tínhamos deixando para trás.
Dimas as acompanhou com o olhar, mas não se interessou por muito tempo.
Deitou na relva e cobriu o rosto com a camisa.
- Vou tirar um cochilo – ele me disse, sem a mínima necessidade. Era
óbvio o que ele ia fazer.
Restamos Liana e eu. Ela estava mexendo em sua mochila, alheia a todos os
outros acontecimentos. Fiquei de pé e fui até ela que tirava o que parecia ser
um jogo de cartas da mochila. Parei na sua frente e ela me sorriu.
- Quer que eu leia sua sorte? – me ofereceu.
- Qual? – eu perguntei, sorrindo.
Liana riu e colocou as cartas no chão. Um baralho de tarô.
- Senta logo, menino – ela disse. – Você está bem na direção do sol, está
ferindo meus olhos.
Sentei na frente dela.
- Tarô – ela disse, embaralhando as cartas. – Já jogou?
Disse que não com a cabeça. Liana mexia as cartas com desenvoltura e
propriedade, parecia um jogador de pôquer profissional.
- Você joga isso faz tempo?
- Não é isso. – Ela pareceu um
pouco chateada. – O tarô é muito sério.
- Desculpe.
Liana se arrastou para trás, afastando-se
de mim. Achei que ela tivesse mesmo se chateado, mas ela continuou a falar.
- Divide em três – ela disse, colocando o tarô entre nós.
Fiz o que ela mandou. Liana juntou novamente os três montes de cartas em
um só, colocando um em cima do outro, da esquerda para direita.
- Eu não sou nenhuma profissional – ela disse. – Comprei o tarô não tem
muito tempo, ainda estou aprendendo.
Liana destacou a primeira carta e
a colocou no chão, virada para baixo. Logo após, dispôs sete cartas
horizontalmente embaixo da primeira, e mais sete embaixo daquelas, por fim mais
sete embaixo das anteriores.
Um tiro explodiu próximo, acabando com o silêncio. Perla segurava a
pistola e parecia satisfeita. Amanda sorria a seu lado.
- Pronto? – Liana me perguntou. Respondi que sim com a cabeça.
Ela virou a carta que estava no topo do jogo. Um esqueleto remando um
barco. A Morte.
- Isso não é bom, é?
Mas ela não me respondeu. Continuou abrindo as cartas, concentrada. O
Papa, A Roda da Fortuna, A Estrela, O Sol, As Sombras e por aí foi. Liana não
me falava nada durante o processo de revelação das cartas, e eu estava ficando
nervoso.
O Carro foi a última carta que ela virou. Esperei a conclusão, mas ela
não veio. Liana ficou encarando o jogo. Era enervante, quase a balancei pelos
ombros para ela falar alguma coisa.
- E então?
- O seu jogo começa bem coerente. – Ela apontou a carta da Morte. Senti
um arrepio. – A Morte significa mudança, o fim de alguma coisa, o início de uma
situação nova. – Ela abriu os braços abrangendo todo o cenário onde estávamos.
A floresta, certo.
- E termina como?
- Sua jornada parece muito perigosa – ela continuou. – Eu vejo muitas
ameaças.
- Parece coerente, também – eu disse, olhando as cartas, tentando
entender o jogo. – Todos corremos perigo, certo?
- Eu não nos vejo neste jogo – ela falou trepidante. –, esse grupo que
nós formamos agora. – Ela apontou para uma carta no centro do jogo. O Eremita.
– Vê? Você lidera aqui, ilumina o caminho. Não é a situação atual da caravana.
Não era mesmo. No grupo atual eu era apenas mais um que seguia o caminho
que Joanatan indicava, e não me sentia incomodado com isso. Preferia, até.
- Conflitos – Liana continuou. – O Imperador, uma figura masculina
importante.
- Meu pai? – perguntei afoito. – Ele está vivo?
- Ele está no jogo. Tem um embate aqui. Um confronto entre vocês dois?
Balancei a cabeça, atordoado.
- Isso não está fazendo sentido.
- Eu só estou dizendo o que está aqui.
Perla disparou mais um tiro contra a árvore, desta vez, seguido de um
grito eufórico. Dimas tirou a camisa do rosto e se sentou, com cara de sono.
- O que vocês estão fazendo? - ele nos perguntou.
Nós não respondemos.
- Minha mãe está viva? – perguntei à Liana. – Meu irmão? Você consegue
ver isso aí?
- Tem uma mulher muito poderosa no seu jogo. – Ela apontou a carta da
Imperatriz. - Tomando conta, protegendo. Ativa, viva.
Meus olhos se encheram de lágrimas. Aquela não parecia muito a minha mãe,
não como ela era agora. Mas eu sabia que era ela, tinha que ser. Eles estavam
vivos, minha mãe e meu pai estavam vivos.
Dimas estava atrás de mim, não sabia desde quando. Só o notei depois de
me convencer de que as cartas estavam certas, de que eu ainda tinha uma
família. Só faltava...
- Meu irmão?
Liana encarou as cartas de novo, passava os dedos por cada uma, uma
careta de absorção e entendimento dançando em seu rosto.
- Não tenho certeza. Não vou arriscar dizer que sim ou não.
Fechei os olhos e duas lágrimas grossas rolaram por minhas bochechas. Meu
estômago revirou de descontentamento. Só faltava ele para eu me agarrar na
certeza de que tudo ia dar certo.
- E no mais, vejo um caminho longo. Tortuoso, dolorido, com perdas,
vitórias temporárias, não vejo nada derradeiro.
- Do que é que ela está falando? – Dimas perguntou, perdido na conversa.
Liana juntou as cartas novamente, desfazendo meu jogo.
Fiquei um tempo fora do ar, tentando apreender tudo o que ela disse,
gravar cada detalhe na minha mente. Minha mãe e meu pai estavam vivos. Eu ia
liderar alguma coisa. Um embate com meu pai? Aquela parte não fazia sentido.
- Prontos para partimos? – Era a voz de Joanatan.
Ele, Herick e Marino tinham voltado. Dimas, Liana e eu nos levantamos.
- Vamos ter quer ralar um pouco para continuar.
23.
Jon nos guiou em frente, até o ponto onde o chão desaparecia. Chegamos
mais perto e vimos que, na verdade, estávamos no topo de um monte. Era como se
todo o resto do mundo tivesse decido para o andar térreo.
A vista dali era inacreditável. A massa verde que era a floresta se
espalhava para frente e para todos os lados. Um bando de pássaros levantou voo
do meio das árvores, dançando um balé aéreo hipnotizante.
Um rio, impossível de existir no meio da cidade, corria plácido, passando
pelo meio das árvores. As margens o estreitavam e depois alargavam, até levá-lo
para uma bacia grande e extensa, onde ele reluzia à luz do sol.
Mas o que me chamou mesmo a atenção, o suficiente para não reparar em
nada mais, foi um conjunto de prédios parcialmente destruído, a dois, três
quilômetros no máximo. O condomínio sobrevivera à floresta, pois se localizava
bem onde agora era uma vasta clareira.
Os prédios estavam dispostos em forma de ferradura. A maioria estava
demolido, perda total, mas alguns ainda conservavam alguma estrutura. Até nestes,
plantas trepadeiras haviam demarcado terreno, tingindo de verde o cimento e o
aço. De longe, pareciam uma estranha mistura de concreto e natureza. O conjunto
de edificações só conservava um prédio intacto, o que ficava ao fundo do
terreno do condomínio, bem no centro.
- É o condomínio do meu pai – eu disse, apontando o conjunto de
edifícios. – Meu pai morava aí.
Dimas também reconhecera o lugar, muitas vezes o visitara comigo. A
disposição dos prédios era inconfundível, e embora todos os pontos de
referência tivessem sumido, eu sabia que era ali que meu pai morara.
- Tem certeza? – Jon perguntou, reparando com mais atenção os prédios.
- Absoluta. Ele morava naquele ali, ó, o último. O que está de pé.
Todos olharam para o prédio. Meu coração batia mais forte. Se o prédio
não tinha caído, meu pai ainda podia estar vivo.
- Vamos dar uma passada lá – Amanda disse para Jon. – Podemos encontrar
algumas coisas úteis nos apartamentos.
Jon concordou com a cabeça, mas eu pouco estava me importando com coisas
úteis. Queria chegar lá o mais rápido possível para tentar encontrar vestígios
do meu pai.
- Vamos, então – Jon disse, e nós começamos a descer o declive.
Jon se referira a isso quando falou que íamos precisar ralar. O morro
tinha um declive, que embora não fosse íngreme, não era nenhum passeio no
parque. Era uma descida em terra vermelha, com pedras soltas e pontas de raízes
nos espetando. Descemos com cuidado, pois qualquer deslize de terra podia nos
soterrar, e qualquer passo em falso podia nos fazer enfiar o pé em um buraco.
Não demoramos muito para completar a descida, mas quando a terminamos, estávamos
exaustos e suados, o que já virara uma constante. Resolvemos dar um tempo no
sopé do monte para recuperarmos o fôlego.
- Seu pai – Dimas me disse. – Acha que ele ainda está lá?
Eu respondi que sim com a cabeça, mas não tinha certeza. Não acho que meu
pai ficaria num prédio condenado, a não ser que estivesse ferido, incapacitado.
Mas mesmo não estando lá, o prédio de pé me dava a esperança de que ele estava
vivo, e isso era o mais importante.
- É melhor irmos em frente – Amanda chamou. – Vamos chegar ao condomínio
antes do escurecer.
24.
Depois de cruzarmos uma área descampada e estéril, a floresta voltou a
nos envolver com toda sua abundância e estranheza.
Parecemos entrar num mundo de contos de fadas, um contraste tão grande
com o pântano que enfrentamos mais cedo que por um momento achei que entráramos
em outro planeta. Uma trilha na relva nos guiava floresta adentro, que parecia
cheia de cor e vida. Um coelho branco e roliço colocou a cabeça para fora da
toca, que ficava às margens da trilha, e nos encarou por um segundo, antes de
correr e sumir de vista.
As árvores, mais espaçadas ali, eram bonitas, quase desenhadas de tão
perfeitas, com os caules grossos que se ramificavam em galhos simétricos, que
seguravam folhas verdes e saudáveis. Algumas flores de cores berrantes
despontavam do solo, e um agradável canto de pássaro nos acalmava e animava.
- Olha lá, gente. – Amanda apontou para um grupo de árvores frutíferas
mais adiante. – Hora de abastecer.
Corremos para lá como crianças buscando ovos de páscoa escondidos, e logo
fomos atingidos pelo cheiro de frutas frescas e suculentas. Colhemos maças,
maracujás, cajus, tangerinas e goiabas. Ainda encontramos as já conhecidas
jabuticabeiras, que achávamos em qualquer parte, pés de jaca, e melancias
esparramadas pelo chão.
- Despensa cheia – disse Herick, tentando enfiar uma melancia em uma das
mochilas, sem sucesso. – Quem dera ser assim em todo lugar.
- Esquece essa melancia, Herick. – Marino colocou sua mochila nas costas.
– Deixa tudo que é muito pesado para trás, senão vamos começar a diminuir nosso
tempo.
Não vi grande problema nisso, afinal nem sabíamos aonde estávamos indo e
não tínhamos prazo nenhum, mas concordei que carregar pesos extras não era uma
boa ideia. Herick largou a melancia, mas ainda olhou para ela com cobiça.
- Ei – Amanda chamou por ele.
Tirou uma faca do bolso e a jogou para Herick. Ele a pegou no ar e abriu
a melancia com habilidade.
- Servidos?
Herick deu um pedaço para cada um. Estava doce e deliciosa, um refresco
bem vindo naquele calor de inferno. Herick pegou o resto da melancia e seguimos
em frente.
Não sei quanto tempo andamos, mas o céu começava a ficar alaranjado
quando encontramos os pedaços de carne secando ao sol. Foi Dimas quem os
avistou primeiro e chamou nossa atenção.
- O que é aquilo? – ele perguntou.
Chegáramos a uma parte da floresta onde as árvores eram estranhamente
tortas e baixas, e os galhos das árvores pareciam se alongar e se unir uns aos
outros, formando um grande varal de madeira. Era para esses galhos que Dimas
apontava, mais precisamente, para o que estava pendurado neles.
- Isso é carne? – Liana perguntou.
Moscas rodeavam os nacos de carne, pedaços grandes, cortados em forma de
bife. A cor avermelhada era chamativa e eu imaginei um churrasco completo com
arroz e vinagrete. Mesmo com a barriga cheia de melancia, minha boca encheu de
água.
- Carne vermelha – Jon falou. – Não vimos nenhum animal desde que
chegamos, certo? Vocês viram algum?
- Só o coelho – eu lembrei. – Mas esses pedaços de carne são muito
grandes para serem de coelhos.
- Com certeza deve ser cervo – Marino disse, querendo encerrar a
conversa. – Passamos por um bando deles lá atrás, e essa parte da floresta é
muito chamativa para animais. O que temos que fazer é procurar a galera que
está aqui por perto. Se eles deixaram essa carne para secar, planejam ficar por
um tempo.
Siga a trilha de pedaços de carne,
pensei enquanto avançávamos pela floresta, nos guiando pelo frigorífico ao ar
livre. Era carne demais, daria para servir um batalhão, se existisse algum
instalado na floresta. Não tinha um pedaço de galho livre das carnes, e isso de
alguma maneira me arrepiava.
A sensação de déjà vu voltou a me atingir, dessa vez com força suficiente
para me deixar tonto. Tive certeza de já
ter visitado aquele lugar, não era uma impressão, era um fato. As árvores
nanicas e tortas, os galhos, as flores, tudo era conhecido, nada me
surpreendia.
Era um lugar lindo e fresco,
perfeito para brincar, acampar, colher frutas. Mas era bem ali, onde era mais
bonito, que era mais perigoso...
As palavras explodiram na minha cabeça como fogos de artifício. Eu
lembrava daquilo. De onde?
- Uma mulher... – Jon falou. – É uma mulher?
Alguém estava caído no meio da trilha.
- É sim – Jon confirmou e saiu correndo para acudir.
Não fosse pelo fato da senhora estar usando um vestido ultrapassado e
puído seria impossível definir seu sexo. O rosto era tão velho e enrugado, que
traços femininos ou masculinos eram irreconhecíveis. Os cabelos brancos e finos
paravam nos ombros e começavam a rarear no topo da cabeça. Era a mulher mais
velha que eu já vira.
- Será que ela morreu? – Amanda perguntou.
A velha estava desacordada, as costas no chão, os braços abertos.
Jon se ajoelhou ao lado dela e tomou seu pulso. A velha se mexeu um
pouco, como se o toque de Jon a tivesse trazido de volta à vida. Jon pareceu
ter pensado isso também, pois soltou o pulso dela como se tivesse tocado fogo.
As pálpebras da velha se mexeram, mas não abriram. Ela levantou os
braços, buscando algo no ar. Jon lhe ofereceu o braço e a velha agarrou com
firmeza, puxando-o para junto de seu corpo. Ela balbuciou alguma coisa. Ninguém
entendeu.
- Senhora? – Jon chamou.
A velha abriu os olhos de repente, eram de um verde hipnotizante. Soltou
um gemido de dor e segurou com mais força o braço de Jon. Ela nos olhou,
desnorteada, perdida.
- Quem são vocês? – ela perguntou, a voz rouca, baixa, falha.
- Não vamos machucar a senhora – Jon respondeu. – Só queremos ajudar.
Ela soltou outro gemido de dor. Seu rosto se fechou numa careta.
- Me ajuda a levantar, por favor.
Dimas, Herick e eu nos unimos a Jon e levantamos a velha. Seu corpo era
magro e frágil ao toque, quase como se fosse feito apenas de ossos. O vestido
que ela usava a cobria do pescoço aos pés, mas mesmo naquele calor abafado ela
não suava ou ofegava. Só suas mãos e rosto estavam descobertos.
A velha era pequena, de pé alcançava meus ombros. Ela tentou ajeitar os
cabelos, as mãos tremendo. Apoiou-se no meu ombro para não cair. Por um momento
tive vontade de empurrá-la, me livrar dela. Mas foi um ímpeto que foi embora
tão rápido quanto veio.
- Obrigada, meus filhos – ela disse.
- O que aconteceu com a senhora? – eu perguntei.
- Eu estou muito velha, eu acho. Essa droga de sol me derrubou. Eu estava
voltando para casa, devo ter desmaiado.
- Casa? – Jon se aproximou intrigado. – Ela continua de pé?
A velha olhou para ele como se, de repente, Jon estivesse falando
japonês. Suas sobrancelhas ralas e grisalhas se juntaram num tique de
incompreensão.
- Minha casa é muito forte, rapaz – ela disse. – Nunca tive problema
nenhum.
- Sim, mas... – Amanda estranhou. – A senhora está sozinha? Como é que
está se virando?
- Como sempre - a velha respondeu com simplicidade. – Eu sempre morei na
floresta.
A declaração da velha me pegara de jeito. Não entendi muito bem o que ela
quis dizer, e pelo olhar de meus companheiros, eles estavam no mesmo barco que
eu.
A velha largou meu ombro e endireitou a coluna enferrujada. Cambaleou um segundo,
mas se firmou sem ajuda. Olhava para todos nós com uma curiosidade simpática e
amena, como se fôssemos seres espaciais vindos em missão de paz.
- Quando a senhora diz sempre morei
na floresta – Dimas perguntou, confuso. –, quer dizer que sempre morou nesta
floresta?
A velha sorriu com a pergunta de meu amigo, mostrando as gengivas rosadas
e os dentes pequenos e brancos.
- Isso mesmo – ela respondeu. – Vocês é que não são daqui, não é? Igual
aos outros.
- Que outros? – Gaspar se aproximou.
- Uns rapazes vieram bater ontem na minha porta, tarde da noite. Estavam
sujinhos e cansados como vocês. Não sou mulher de recusar comida, enquanto eu
tiver um pão, eu divido. Foi isso que eu disse enquanto botava eles para dentro
e preparava uma sopa.
A velha parou para recuperar o fôlego e limpar a boca, que se enchera de
saliva, com a manga do vestido.
- É uma pena, não me lembro dos nomes deles. – Ela levantou os ombros. –
Não ficaram muito tempo; comeram e saíram. Viajantes errantes. Embrenham-se
pela floresta atrás de aventura, dinheiro. Já vi muitos deles por aí.
- Nesta floresta? – Jon ainda parecia aturdido.
- Sempre os vi por aí, desde que eu era pequena. Um deles tentou se
aproveitar da minha irmã... Hump.
Papai cuidou dele, eu pensei,
sem razão aparente.
- Papai cuidou dele – a velha disse, para depois limpar a boca de novo.
Foi como se tivessem atingido minha cabeça com uma marreta. Me segurei em
Dimas para não cair, tudo rodava. Eu tinha adivinhado o que ela ia falar, ou
ela falou o que eu pensei?
- O que foi, cara? – Dimas estava assustado. – Você está branco, meu
Deus...
- Olha isso, estão caindo de fome. – A velha se aproximou e passou a mão
esquelética no meu rosto. – Devem estar viajando há dias, hein?
Minha vista ficou turva, multiplicada.
- Venham, antes que desmaiem todos – a velha convidou. – O que vocês
precisam é de uma comida bem quentinha.
- Obrigado, senhora – Jon disse. – Desculpe, nem perguntamos seu nome...
Rhea, uma voz gritou no meu
cérebro.
- Rhea – ela disse com um sorriso.
E eu desmaiei.
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