terça-feira, 21 de agosto de 2012

Livro: A Floresta (Cont.)


3.
Quando desci do ônibus, já não estava pensando na minha mãe. Isso não fazia de mim um filho insensível ou alheio aos problemas dela, mas um filho calejado, experiente. Mesmo tendo trazido Jô à tona, minha mãe ainda estava em um bom dia.  Ela disse que ia cuidar da horta e era isso que faria durante a manhã. Pularia o almoço, como normalmente faz, e depois iria assistir ao Vale a Pena Ver de Novo ou o A Tarde é Sua. Não tinha motivos reais para me preocupar.
Seria desnecessário e doloroso relembrar as vezes em que me senti culpado por sair de casa, temeroso de voltar e encontrá-la caída no chão com os pulsos cortados, ou deitada na cama, a boca babosa, após uma overdose de pílulas para dormir. Mas eram tudo suposições, coisas que passavam pela minha cabeça, já que eu vivia em constante estado de alerta. Não acreditava realmente que minha mãe pudesse tentar se matar, não enquanto houvesse esperança de encontrar Jô com vida.
Meu colégio ficava numa área perigosa, um pouco afastada do centro de Albuquerque. Era um bairro de comércio quase decadente com muitas distribuidoras de bebidas, bares e lojas de ponta de estoque. O local era conhecido como Porão. A princípio podia parecer um ambiente meio hostil, e minha mãe fez de um tudo para me dissuadir da ideia de estudar lá.
Ela preferia um colégio mais próximo do centro, que tinha se valorizado com o término das obras do metrô. Já eu, bati o pé para ser mandado para a ETA (Escola Tradicional de Albuquerque), intrigado e estranhamente atraído por sua fama de ser violenta. Diziam que alunos iam para o colégio armados, que brigas rolavam direto, soube até de caso de alunos que vandalizaram carros de professores. Mas, no fim, duas coisas pesaram na minha determinação de estudar na ETA.
Primeira, meu amigo de toda a vida, Dimas, ia estudar lá, pois era mais perto de sua casa na época em que começamos o segundo grau, três anos atrás. Agora, seu pai conseguira um apartamento no centro, que fora dividido em tantas prestações que até os filhos de Dimas iam ter que pagar. Segunda, a ETA era enorme, com quadra de esportes, lanchonete, alas separadas para os alunos do primeiro, segundo e terceiro anos, e para a realização de meus sonhos patéticos e simplórios, o bloco do terceiro ano era de dois andares.
É impressionante a capacidade da mente infantil de fantasiar bobamente com coisas tão insignificantes. Meu sonho sempre fora estudar na ETA porque era o único colégio público da cidade que tinha uma ala com dois andares. Para mim, no meu intelecto infantil, subir e descer escadas xingando professores era a confirmação máxima de que eu tinha me tornado um adolescente.
Minhas argumentações para estudar na ETA não eram as melhores, mas meu pai ficou do meu lado nessa questão. Disse que não via problemas com o colégio, que apesar dos pesares o ensino na ETA era considerado bom e que me colocar em um colégio do centro significaria desembolsar uma mensalidade, já que a única escola pública por lá tinha sido desapropriada para a construção da estação central do metrô. Minha mãe acabou aceitando a ETA, não sem antes me fazer milhares de recomendações sobre não procurar confusão e evitar as más companhias. Mal sabia ela que não era eu o filho que corria perigo.
Saltei do ônibus na Praça da Tartaruga, uma tentativa da prefeitura de embelezar um pouco o Porão que tinha dado muito errado. As árvores altas e robustas eram as únicas coisas que se mantiveram intactas ao vandalismo generalizado. A escultura de uma grande tartaruga em um laguinho artificial no meio da praça estava sem cabeça, seu casco todo pichado. Os encostos dos bancos de concreto tinham sido arrancados, os ladrilhos estavam quebrados e os jardins esquecidos, ressequidos e feios.
À noite, a praça se transformava em área livre para as prostitutas e seus clientes. Não tinha em Albuquerque ponto de prostituição mais conhecido do que a Praça da Tartaruga. Pode parecer estranho um lugar como esse ter uma escola por perto, mas claro que esses vizinhos devassos não estavam nos planos da prefeitura. Mas a fama da praça foi crescendo rapidamente, o que foi atraindo cada vez mais e mais prostitutas, o que trouxe mais clientes, e de repente tornou-se impossível tirá-los dali.
Esperei o sinal de trânsito ficar vermelho para os carros para poder atravessar a rua. Um mendigo sujo e seminu - estava só de cueca - passou na minha frente, fedendo como um buraco cheio de lixo. Ele começou a dançar como se estivesse em um transe louco e assustador. Mais um ponto negativo da praça, os bancos tinham se tornado camas para mendigos e viciados em drogas. Eles se multiplicavam ali como formigas perto de açucareiro. Esses, sim, eram enxotados quando a polícia se lembrava de fazer ronda pelo Porão, mas sem uma fiscalização mais eficaz, sempre voltavam. Do jeito que estava, não demoraria nada para o Porão também virar uma boca de fumo. Aí sim, seria a vizinhança perfeita.
O mendigo imundo continuou dançando na minha frente, seu cheiro quase me fez vomitar. Lancei a ele um olhar intrigado e desviei o rosto imediatamente. Lembrei do conselho que Dimas tinha me dado na primeira vez que fomos ao Porão, e que se tornara quase um mandamento na Praça da Tartaruga. Se perceber uma movimentação estranha ou incomum, não olhe. No caso do mendigo, era um conselho dispensável, ele era obviamente um pobre coitado que não atacaria ninguém.
Um ônibus parou. A porta traseira se abriu e os passageiros começaram a descer, deixando o coletivo menos parecido com uma lata de sardinha. O sinal ficou vermelho e eu ia atravessar a rua quando reconheci Dimas dentro do ônibus. Ele estava dormindo, a cabeça apoiada no vidro da janela, indiferente ao barulho e as reclamações dos outros passageiros.
Como ele não deu sinais de que ia se levantar, bati com força no vidro, acordando-o de supetão. Ele olhou de um lado para o outro, parecendo desnorteado e assustado. Bati no vidro de novo e ele me viu.
Dimas arregalou os olhos quando se deu conta de que já estava em seu ponto. Levantou-se com rapidez e, lá de fora, eu pude ouvi-lo gritando para o motorista esperar. Ele abriu seu caminho pelo meio da galera espremida no ônibus. Foi empurrado e xingado, mas conseguiu descer. Tropeçou e quase caiu no chão.
- Cara, você quase ia ficando. – Eu peguei a mochila dele que caíra na calçada. – Qual foi?
Dimas bocejou com vontade e tentou pentear os cabelos para trás com os dedos. Entreguei-lhe a mochila, mas ele quase deixou que ela caísse de novo.
- Minha namorada – balbuciou o mendigo seminu, dando voltas ao nosso redor. – Minha namorada.
- Cai fora, seu idiota. – Dimas, mal-humorado, empurrou o mendigo e se virou para atravessar a rua.
Corremos para pegar o sinal, que já ia ficar vermelho para os pedestres. Colocamos os pés na calçada no momento em que os carros dispararam. Dimas jogou a mochila nas costas e bocejou, estava vendo a hora de ele cair e dormir no chão. Eu podia perguntar o que tinha acontecido, mas já sabia.
- Ele já chegou em casa? – perguntei, e Dimas parou para me olhar.
- Já. Deixei ele dormindo.
- E você?
- Cansado. Demais.
Dimas tinha os olhos vermelhos e olheiras que mais pareciam buracos negros prestes a engolir seu rosto. Não era a primeira vez que eu o via assim, mas geralmente ele aparecia naquele estado nas segundas, às vezes nas sextas-feiras. Se a coisa já estava avançando para o meio da semana, eu podia só imaginar o inferno que ia virar a vida dele.
- Te pago um café. Ainda tem um tempo antes da aula.

4.
Dimas engoliu seu café antes mesmo que eu pudesse esfriar o meu. Tomou tudo num só gole, como uma dose de uísque ou um remédio amargo. Colocou o copo de vidro vagabundo na mesa e o empurrou para longe. Olhei fundo nos seus olhos tentando identificar alguma expressão de dor, sua língua devia estar queimando, assim como seu esôfago. Mas ele não se traiu, o café quente não o machucara. Duvidava que existissem muitas coisas que pudessem machucá-lo, embora, numa discrepância absurda, visse Dimas como uma das pessoas mais frágeis e necessitadas de ajuda que eu conhecia.
- O quê? – ele me perguntou, enquanto eu ainda o encarava.
Balancei a cabeça em negativa. Entreguei meu copo de café para ele, que claramente precisava mais. Dimas aceitou com um olhar surpreso, e o tomou com a mesma rapidez. Na mesa atrás da nossa, um homem tossiu viscosa e compulsivamente. Por um momento pensei que ele fosse se virar e cuspir no chão do Boteco.
Era assim que Dimas e eu chamávamos a lanchonete espremida entre uma loja de móveis populares e uma farmácia, na rua atrás da ETA. O Boteco. Íamos sempre lá depois do colégio para comer e conversar besteira. Era um lugarzinho modesto com espelhos encardidos nas paredes, mesas e cadeiras pregadas no chão, e um balcão recheado de salgados fritos e máquinas de suco. Dois salgados e um suco saíam por um real e cinquenta centavos. Bom demais para os dias em que a comida era só um pretexto para uma reunião.
- O café está horrível – Dimas disse. – Pelo menos me deu um tapa na cara.
- O que foi dessa vez? Parece que você não dormiu nada.
- Dormi um pouco. Quase nada.
- Onde é que ele estava?
Dimas não gostou muito da minha pergunta, talvez eu tenha carregado um pouco no tom de acusação, mas não tinha como não fazê-lo. O ele a quem me referia era o pai de Dimas, o senhor Tião de Alencar, o honorável beberrão dos infernos. Era por ele que meu amigo perdia o sono.
- Não é como você está pensando – Dimas me respondeu, na defensiva.
- Ele estava bêbado?
De novo, eu quis acrescentar, mas preferi não.
- Ele estava perdido.
- Por que estava bêbado?
- O que é isso agora? – Dimas levantou-se, colocando a mochila nas costas. – Pega leve, ainda nem são oito horas da manhã.
- Só estou perguntando...
- E já sabe a resposta. Pode deixar que eu pago o café.
Ele tirou a carteira do bolso traseiro do jeans e foi acertar a conta no balcão. Dimas andava curvado, arrastando os pés, como se carregasse nos ombros todo o peso do mundo. Como se não, ele carregava todo o peso de seu mundo nos ombros.
Lembro de certa vez, quando tínhamos doze ou treze anos, e tudo parecia normal conosco e nossas famílias. Dimas foi passar uns dias lá em casa, e saímos para andar de bicicleta no bosque. Enquanto apostávamos uma corrida, minha roda dianteira se chocou contra uma raiz e eu fui arremessado para fora da bicicleta. Luxei a perna e abri um corte feio no braço. O rosto de Dimas ao me ver machucado foi tão impressionante que, por um momento, eu pensei que ele estava sentindo mais dor do que eu.
Meus ferimentos não eram dignos de cuidados extremos, mas Dimas me tratou nos dias seguintes como se eu tivesse sofrido um acidente de carro quase fatal. Me trazia revistas, livros, comida; fazia as tarefas que eu estava impossibilitado de fazer, tarefas domésticas até. E o mais surpreendente para mim foi ter descoberto que durante o período que durou minha recuperação, Dimas nem chegou perto de uma bicicleta. Só voltou a pedalar quando eu fiquei bom.
- Ele é um bom amigo – minha mãe me disse certa vez, logo após eu ter tirado os pontos do braço. – Ele toma conta.
Mas tinha algo mais. Ele não só tomava conta, a mim parecia que ele achava que precisava tomar conta, como se tomasse para si responsabilidades que não eram dele. Quando ele ia me visitar enquanto eu me recuperava, falava de um jeito tão dolorido e subserviente que eu chegava a pensar que ele se culpava pelo que tinha acontecido, por mais despropositada que essa ideia fosse.
Dimas pegou o troco da mão do atendente e o guardou na carteira, que foi parar em seu bolso. Sinalizou com a cabeça que já podíamos ir, e eu o acompanhei para fora do Boteco.
A rua já estava pipocando de gente àquela hora e um sol gostoso diluía os últimos vestígios do tempo frio que durara toda a madrugada, indicando que mais tarde o dia ia esquentar. Seguimos pela calçada que já se enchia de camelôs vendendo brinquedos, flores, guarda-chuvas, óculos escuros e mais uma porrada de produtos, e paramos no amontoado de gente que esperava o sinal dos pedestres ficar verde.
- Olha, não quis ser mal-educado lá no Boteco – Dimas disse, sem olhar para mim. – É que minha cabeça está cheia, eu dormi pouco, você sabe como é.
Na verdade eu não sabia. Entendia de crises e de pais complicados e depressivos, mas achava que ter um bêbado em casa era a fase dois no jogo que era nossas vidas. Não sei onde ouvi que ter um alcoólatra na família era como sofrer um acidente de carro toda semana. E acompanhar as desventuras de Dimas ao longo dos últimos anos me fez ter certeza disso.
- Tudo bem, cara. Não foi nada.
- Eu tenho que cuidar dele – Dimas falou vacilante. – Você entende isso, né?
O homenzinho verde começou a piscar no semáforo à frente e um zumbido incômodo se fez ouvir por toda a rua informando que o sinal fora aberto para os pedestres. Aproveitei a deixa para não responder e me deixei levar pela galera que atravessava a rua, apressada e calada.
Estava chegando à calçada quando esbarram em meu ombro, quase levando minha mochila. Vi uma cabeleira negra balançar na minha frente, seguindo o gingado de uma garota que, de tão apressada, quase chegava a correr.
- Perla – eu gritei, e apressei o passo.
A garota parou confusa, tentando identificar a origem da voz que a chamava, mas não olhou para trás. Chamei seu nome de novo, já praticamente do seu lado, e ela abriu um sorriso.
- Edie. – Ela me abraçou, um pouco ofegante. – Estava aqui procurando quem é que... Dimas, e aí?
Dimas sorriu para ela, juntando-se a nós.
- Atrasados também? – ela perguntou. – Eu estava quase correndo...
- Atrasados? – Dimas a cortou. – Que horas são?
- Oito e cinco já – Perla respondeu. – Meu ônibus atrasou.
- Não vão deixar a gente entrar.
Sem nos esperar, Dimas correu como louco rua abaixo, desviando e pulando qualquer obstáculo que estivesse no caminho. A ETA tinha adotado uma nova regra que vetava a entrada dos alunos que chegassem atrasados, não era nem permitido que os retardatários entrassem para a segunda aula. Para Dimas, e para mim também, era um mau negócio, principalmente naquele dia, em que tínhamos aulas de Educação Física e Geografia. Só era permitido ter vinte por cento de faltas em qualquer matéria por bimestre, Dimas e eu estávamos quase extrapolando esse limite.
Foi isso que eu expliquei a Perla enquanto corríamos para acompanhar Dimas, mas foi desnecessário dizer. Ela já estava tão por dento do esquema de faltas quanto nós. Também estivera matando aula, e já estava com a corda no pescoço em pelo menos três matérias.
- Droga! – Dimas reclamou já no portão de ferro da entrada, que estava fechado.
Outros alunos, atrasados como nós, conversavam em frente ao colégio, encostados nas paredes grafitadas ou sentados no meio fio. Despreocupados, decidiam o que iam fazer na manhã livre. Nenhum deles estava prestes a ser reprovado por faltas como Dimas, Perla ou eu.
- Vamos ter que pular o muro – Perla falou, tomando a frente. – Vamos rápido lá para trás.
A ETA ocupava um terreno imenso o suficiente para conter suas três alas, uma para cada ano do ensino médio, as duas quadras de esportes, a lanchonete e um grande pátio comum para todos os alunos. Ao entrar no colégio, pelo portão de ferro que estávamos deixando para trás, passávamos por dentro da ala reservada para os alunos do terceiro ano, onde Dimas, Perla e eu estudávamos, que era a maior da ETA. As salas da diretoria e do corpo docente, assim como a biblioteca e a coordenação ficavam no andar térreo do bloco, já as salas de aula ocupavam todo o primeiro andar.
Saindo dessa ala, dávamos direto no pátio com seus bancos de madeira e seus montinhos cobertos de grama. Os que iam para as alas do primeiro ano precisavam seguir para baixo, os alunos do segundo ano precisavam ir para cima, suas alas correspondentes ficavam nos extremos da escola. As quadras de esportes, uma coberta e outra descoberta, ficavam no caminho para a ala do primeiro ano, e a lanchonete bem ao lado dela.
Mas não estávamos fazendo nenhum desses caminhos. Corríamos atrás de Perla que nos levava para os fundos da ETA e para isso precisávamos contornar o terreno murado, que parecia infinito. Os murais grafitados – ideia da nova diretora para barrar as pichações – iam mudando à medida que passávamos por eles. Era uma explosão de cores e desenhos, citações bíblicas e odes à leitura.
Sabíamos bem para onde estávamos indo. Atrás da lanchonete, o muro era um pouco mais baixo por conta de um desnível do solo, e era por ali que muitos de nós escapávamos das aulas que achávamos desinteressantes ou aborrecidas.
- Vamos rápido ou não vamos conseguir pegar a segunda chamada – Perla disse, quando deslizamos em frente ao muro baixo tão conhecido por nós.
Verdade que nunca o tínhamos usado para entrar na ETA, mas a técnica era mesma. Pular, se agarrar no muro e se impulsionar, usando os pés para escalar. A diretoria já estava ciente do muro e se preocupava, não tanto pelos alunos o estarem usando para matar aula, mas porque podia ser um caminho para qualquer pessoa entrar nos domínios da escola. Segundo sabíamos, a ideia para acabar com aquela facilidade era aumentar o muro, ou torná-lo mortal com cercas de arame farpado eletrificadas. Mas o dinheiro para a reforma nunca saía, e a nova previsão era de que até o início das aulas do próximo ano letivo as obras já estivessem concluídas.
- Precisa de ajuda? – eu perguntei para Perla.
Ela me respondeu com um sorriso e começou a escalar o muro, aparentemente sem esforço, e sumiu para o outro lado em um piscar de olhos, mesmo estando com uma calça jeans tão apertada que me fez ter pensamentos impuros. Dimas me cutucou com o braço e me lançou um sorriso, com certeza percebendo meu estado de transe. Dei de ombros e o empurrei. Ele começou a escalar, e antes que ele pulasse para o outro lado, eu já estava escalando o muro.
Quando caímos dentro do terreno da escola, Perla nos esperava ainda ansiosa e com pressa. Andando rápido, passamos pela lanchonete e vimos a quadra coberta fervilhando de gente, um jogo de futebol em andamento. A aula já estava rolando.
Corremos e nos infiltramos discretamente entre os alunos que esperavam nas arquibancadas a sua vez de jogar. Na quadra, uma falta feia paralisou o jogo por um momento e um urro escapou da galera que estava assistindo.
Alonzo, nosso professor de Educação Física, correu para o meio da quadra, a prancheta nas mãos. Ordenou que o garoto machucado fosse levado para a arquibancada. Alonzo passou os olhos pelos alunos sentados e se deteve em Dimas, Perla e eu, vermelhos, ofegantes, suados. De nos três, Perla era a única que ainda participava efetivamente das aulas. Dimas e eu éramos uma negação em qualquer tipo de esporte e vivíamos inventando desculpas para escapar das aulas. No momento, tínhamos conseguido atestados médicos falsos que nos proibiam de fazer esforços. Dispensável dizer que não éramos os alunos preferidos de Alonzo.
- Ele está olhando como se pudesse matar vocês – Perla cochichou, olhando para todos os lados para não ter que encarar o professor.
Era verdade, mas não havia nada que ele pudesse fazer. Tínhamos conseguido chegar, responderíamos a segunda chamada, o que nos livraria de um estouro nas faltas no bimestre. A etapa um do desafio estava vencida, e eu não consegui evitar um sorriso quando, balançando a cabeça, Alonzo voltou sua atenção novamente para a quadra e recomeçou o jogo.

5.
Passamos o resto da aula de Educação Física mais discretos e cordatos. Ficamos conversando despreocupados, ou para ser mais exato, Dimas conversava com Perla, eu estava muito ocupado babando por ela.
Acho que Perla percebeu meu estado de letargia, e foi logo colocando o namorado novo na conversa, como se isso me impedisse de continuar admirando-a com toda a animação de um garoto bobo de dezessete anos. Dimas olhou para mim na primeira menção ao namorado de Perla, ser discreto não era sua maior virtude, mas eu fingi que nem era comigo.
Perla e eu tivemos um rápido caso, se posso falar isso. Chegamos a namorar, nos dávamos bem, mas não foi para frente. Assim que estávamos prontos para investir em uma coisa mais séria, o mundo se despedaçou a minha volta com o sumiço do meu irmão e a separação dos meus pais. Eu não tinha cabeça para mais nada que não meus problemas e acabamos nos afastando.
Entre fragmentos de conversa, fiquei sabendo o nome do namorado de Perla (Antônio), que ele não estudava no colégio, era mais velho que ela e bem bonito, tudo isso segundo ela, claro. Deixei o resto da conversa mole para Dimas, e retornei à época em que Perla e eu estávamos juntos, e surpreendentemente, não consegui lembrar muita coisa. Só tinha sensações, como aquelas que se tem depois de um sonho. Não nos lembramos do sonho exatamente, mas sabemos se foi bom ou ruim. E meus sentidos diziam que apesar de rápido, aquele tempo fora bom.
O sinal tocou. Dimas e Perla cortaram a conversa. Ela deu um beijo no rosto de cada um e foi se reunir a um grupo de amigas que deixava a quadra de esportes. Alonzo nos lançou mais um olhar severo e demos o fora das arquibancadas.
- Ela é linda, hein – Dimas me disse enquanto caminhávamos despreocupados para nossa próxima aula. – A Perla. Já tinha um tempo que não encontrava com ela. Linda.
 Balancei a cabeça sem querer concordar efusivamente.
- Você não falou muita coisa – Dimas continuou. – Achei que teriam muita coisa para conversar. Relembrar os bons tempos, eu quero dizer.
Olhei de cara feia para ele, que sorriu. Dimas estava querendo me perturbar, e era bom naquilo.
 - Ela disse que tem um namorado novo. Você ouviu, não foi? – ele continuou.
- Ahã.
- O nome dele é Antônio, ela falou. Percebeu que existem muitos Antônios hoje em dia? É um nome bem comum, mas ficou em desuso por um tempo. Estavam preferindo colocar Wendel, William, Matheo, igual naquela novela...
- Nomes mais estranhos, eu sei.
- É. Nomes bem estranhos. Sabe o filho do Nicolas Cage? Se chama Kal-El. Eu acho uma crueldade.
- É um nome forte.
- Claro, se você for um super-herói. Mas já pensou se o garoto vira, sei lá, contador ou professor, uma profissão mais corriqueira. Kal-El não é legal para esse tipo de profissão. E isso acaba colocando muita responsabilidade no garoto. Agora ele vai ter que ser ou surfista ou vocalista de uma banda de rock ou...
- Integrante do Hell´s Angels – completei, e Dimas balançou a cabeça concordando.
- Agora Antônio, pode ser qualquer coisa – ele retomou fio da meada. – Protagonista da novela das nove, gerente de banco, web designer, gari...
- Meu Deus do Céu, que tanto de besteira – eu falei.
- Só estou falando, tentando montar o perfil do novo namorado da Perla.
- Ele deve ser um babaca – disse sem pensar, e revirei os olhos ao perceber que dera munição a Dimas.
- Não devia ficar com ciúme, Edie – Dimas disse, com um sorriso. – Vocês não são mais um casal.
Decidi que a melhor estratégia era ignorar Dimas. Não queria ficar conversando sobre aquilo, e sabia que quando Dimas se empolgava podia ir longe. Mas ele, claro, não tinha intenção de me deixar em paz.
- Sabe, dizem por aí que os Antônios são muito bons de cama. Acho que é a força do nome.
- Por que você não transa com um e descobre se é verdade?
Dimas sorriu antes de responder.
- Pode ser. Ou eu posso perguntar para a Perla, ela deve saber.
Não respondi nada, apressei o passo e deixei Dimas para trás, falando sozinho.
- Qual é, Edie? É brincadeira - Dimas gritou lá de trás, mas eu não diminuí o passo.
Cheguei ao prédio principal do colégio, a ala do terceiro ano, soltando fumaça pelo corpo. Os alunos todos já tinham corrido para as salas. Subi as escadas dois degraus por vez, ainda perturbado com a ideia de Perla estar namorando um Antônio bom de cama, e por Dimas ter colocado aquilo na minha cabeça.
- Deixa de ser babaca, Edie. Eu estava brincando. – Dimas me alcançou no segundo andar. – É claro que a Perla não sabe nada sobre o Antônio ser bom de cama – ele disse sem conseguir segurar um sorriso, para deixar claro que pensava exatamente o contrário.
- Você é muito idiota, Dimas. Eu devia...
Mas fui distraído por uma estranha aglomeração na porta do banheiro masculino. Os corredores estavam vazios, o que tornou ainda mais evidente a pequena reunião de garotos, que pareciam se acotovelar para ver alguma coisa. Não era incomum ou raro ver adolescentes empreendendo comportamentos estranhos ou curiosos nos corredores da ETA, por isso não demos muito atenção àquela galera, e depois de uma olhada, seguimos nosso caminho.
- Vai, vai. – Ouvimos um grito. – Vai!
Um garoto saiu correndo do banheiro e os outros cinco que o esperavam na porta avançaram em nossa direção. Eu não conhecia nenhum deles, nem de vista. Deviam estudar na ala do primeiro ou segundo ano. Eles passaram nos empurrando, rápidos como se estivessem fugindo do diabo. Eu caí de costas no chão, tentando amortecer a queda com as mãos. Xinguei as mães de todos eles, que não pareceram se importar e voaram escada abaixo.
- Mas que droga – eu disse enquanto Dimas me ajudava a levantar.
- Você está sangrando – Dimas percebeu.
Olhei para a palma da minha mão e vi um corte fino que começava a sangrar. Com certeza tinha me cortado em alguma lasca de piso quebrado.
- Droga – praguejei de novo.
Entramos no banheiro e eu fui direto para a pia colocar a mão embaixo da água. Senti o corte arder um pouco, mas não era nada insuportável. Dimas percorreu as cabines sanitárias lendo os recados deixados nas portas.
- Se quiser um boquete ligue para... Olha, Edie, é o seu número. – E riu.
- Vai pro inferno, Di...
Foi quando ouvimos o primeiro estrondo. Longínquo mas audível, uma pequena explosão. Algumas pessoas gritaram, gaiatas, nas salas de aula.
- Que será que foi...
Mas antes de eu completar a frase, uma bomba explodiu bem ali, no banheiro. A tampa de um dos vasos sanitários voou longe e uma enxurrada de água se seguiu a ela. Como um vulcão molhado, a água foi expelida para cima e caiu sobre nós. Dimas se jogou no chão por reflexo, mas banheiros masculinos de colégios públicos não são o melhor lugar para se deitar, e ele berrou ao cair em cima de uma poça de mijo.                    
Arregalei os olhos e caí contra a parede, os ouvidos zunindo assustadoramente, como se anunciando que aquele estrondo era a última coisa que eu ia ouvir pelo resto da vida.
Dimas tentou se levantar, mas acabou caindo de joelhos. Tentou falar alguma coisa, mas eu só ouvi um ruído ininteligível. E antes que pudéssemos entender o que estava acontecendo, o banheiro se encheu de gente e algazarra. Piadinhas e aplausos ribombaram na minha cabeça como se tivessem zilhões de decibéis.
E abrindo caminho entre a multidão de engraçadinhos, estava a última pessoa que eu queria ver naquele dia. Jackie arregalou os olhos ao sentir o cheiro de queimado, e ver o vaso sanitário destruído e o chão encharcado. Quando sua atenção voltou a se centrar em nós, vi um brilho de perversa satisfação em seus olhos miúdos. O dia ia ser longo.

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