terça-feira, 14 de agosto de 2012

Conto: A Filha do Salvador


O pai de Sara começou a ser chamado de O Salvador em maio de 2007. Quem lhe deu o apelido foi um jornalista desleixado e pouco sensível chamado Érico Rodrigues. Ele estava escrevendo a terceira matéria sobre os assassinatos que estavam vitimando jovens mulheres no Distrito Federal e entorno quando digitou a alcunha em seu laptop.

Não pensou, claro, no que as mães, os pais, os irmãos, os namorados das vítimas iam sentir ao ver o carrasco das moças sendo apelidado de O Salvador, nem tinha noção de que depois da divulgação de sua matéria todos os outros jornalistas – na televisão, no rádio, na internet e nos jornais – chamariam o assassino por aquele nome. Ninguém admitiria que fora Érico o responsável pelo batismo, primeiro porque jornais importantes não iriam assumir que pegaram alguma coisa emprestada de um jornaleco imundo como aquele em que Érico trabalhava. Segundo, porque não se importavam mesmo de onde viera o nome. O importante é que batizar o assassino o transformava em uma entidade, um verdadeiro serial killer, uma fonte de matérias constantes, até sua captura, é claro. E ficou assim, então, apesar dos protestos e ultrajes. O Salvador.
Érico o batizara daquele modo, pois ficou sabendo por fonte fidedigna - que ele não revelava qual era nem sob tortura - que duas cartas haviam chegado à delegacia que estava investigando o caso, e que elas continham detalhes que não tinham sido divulgados pela imprensa, logo deviam ser do próprio assassino. Segundo ficou sabendo, era um emaranhado de besteiras, garranchos quase ilegíveis e citações bíblicas. No final, no lugar da assinatura, o assassino escrevera: Eu Salvei Elas. A ideia veio daí.

A primeira vítima do Salvador foi uma prostituta conhecida como Letícia e ninguém ligou muito para isso. A jovem foi vista pela última vez na Praça do Relógio, em Taguatinga, quando estava encerrando sua noite de trabalho. Uma puta velha e ressecada contara à polícia que Letícia tinha acabado de despachar um cliente e avisou que ia descer para pegar mais um para fechar a noite. Um viciado em crack dissera que a moça rondou pela Praça por alguns minutos, mas saiu de lá desacompanhada. As amigas de Letícia informaram que quando ela não estava na Praça, tentava alguma coisa em frente à escola que ficava ali perto, ou atrás da Igreja Universal que ficava mais para a entrada da cidade. Os travestis que faziam ponto atrás da Igreja afirmaram que ela não tinha passado por ali na noite do desaparecimento e tudo ficou por isso mesmo.
Os policias que trabalhavam no caso não comentavam, mas era claro na delegacia que eles não estavam muito empenhados em resolver o sumiço de Letícia. Nem sabiam, na verdade, se ela desaparecera. A moça não tinha família, o trabalho dela podia ser feito em qualquer lugar e – segundo alguns – ela estava começando a se viciar em crack. Até onde eles sabiam, Letícia podia ter simplesmente resolvido trocar de ares, ir rodar bolsinha em outra cidade. Era um direito dela.

Ninguém se interessou muito pelo caso da prostituta desaparecida, a não ser o jornal de Érico Rodrigues, que reservou um bom espaço nas páginas centrais para falar do assunto. A puta velha reclamou da falta de segurança com que ela e suas amigas tinham que conviver, os travestis que faziam ponto atrás da Igreja foram mostrados como figuras ameaçadoras, e o administrador da cidade foi cutucado, já que A Praça do Relógio, onde a moça fazia ponto, ficava bem em frente à sede da Administração de Taguatinga.
Uma semana se passou, e quando todos já estavam esquecendo a moça, a polícia saiu desabalada após receber uma carta anônima que informava a localização do corpo dela. O remetente se mostrava indignado pelo fato da polícia não ter se esforçado para encontrar a garota e dar a ela um enterro digno. Foi a primeira vez que a assinatura Eu Salvei Ela apareceu.

Letícia estava jogada num córrego do Parque Saburo Onoyama, perto da área de cooper. O corpo estava um tanto embrenhado no mato alto, que a Administração prometera cortar no jornal local para dar segurança à população, mas até então não o fizera. A moça já estava apodrecendo quando foi levada pelo rabecão para o IML, onde não foram achado indícios de violência sexual. O legista apontou enforcamento como causa da morte, a vítima tinha os dedos comprimidos, indicando que tentara se defender, e tinha resíduos de urina em sua boca.

Érico Rodrigues fez uma matéria de três páginas sobre o assassino de prostitutas. Contou com detalhes – alguns inventados, outros conseguidos por meio de seu informante – o crime incomum e colocou em polvorosa o centro de Taguatinga. Pelo menos foi isso que ele achou. O telejornal local de maior audiência do Distrito Federal ignorou o caso, os jornais de maior circulação da Capital trataram o assassinato de Letícia com descaso, com uma nota no fim do caderno Cidades. Os clientes de Letícia logo acharam outra moça entre A Praça do Relógio e Avenida das Palmeiras. E tudo foi deixado para lá, até Ticiane ser encontrada sem os seios.

O pai de Sara começou a matar porque as vozes o mandaram.
Começou como um sussurro inaudível, um zumbido de mosca, quase. Ele estava estacionando seu caminhão próximo ao meio-fio quando algo penetrou em sua orelha e percorreu rapidamente o caminho até cérebro. Ele não entendeu nada, era só um barulho muito baixo, talvez o resultado de horas acordado comandando um monstro de oito rodas. Deixou para lá.

Ele desceu do caminhão, entrou em casa, atacou a geladeira, e quando estava misturando o feijão gelado com o macarrão que tinha acabado de fazer, o barulho deixou de ser barulho e se transformou numa voz. Distante, bem distante, como se quem falasse com ele estivesse em outro mundo. Ele parou para escutar. Ouviu coros de anjos, quando prestava atenção conseguiu entender uma palavra ou outra. Era bonito, era transcendental. Ele passou o resto da noite ouvindo aquela sinfonia de sons invisíveis, e nos outros dias, ouviria a mesma coisa, no mesmo horário. Não demorou a achar que Deus estava falando com ele; não demorou a achar que tinha uma missão; não demorou a quebrar as paredes de sua casa para que assim, a comunicação com o outro mundo se desse sem interferências. E quando se deu conta, tinha feito sua primeira vítima.

Sara não sabia de nada. Nas poucas ocasiões em que ficava com pai, ele mantinha a distância, era prestativo, mas não amoroso. A garota estava acostumada com isso e não percebia nada de estranho, recebia amor e atenção de tia Zuleica. Era com ela que Sara morava desde que a mãe tinha morrido. Tia Zuleica aceitou de bom grado que ela fosse morar em sua casa, em parte porque o trabalho do pai de Sara era ficar rodando o país num caminhão, em parte porque não confiava muito nele, uma impressão que a acompanhava desde que ele resolvera se casar com sua irmã.

O tempo mostrou que Zuleica estava enganada. Seus temores de que ele batesse em sua irmã, e posteriormente, se aproveitasse de Sara, se mostraram infundados. Mas isso não a impediu de perceber, de uns tempos para cá, o quanto ele estava ficando esquisito. Mais esquisito.

Quando foi levar Sara para passar o fim de semana na casa dele, percebeu com estranheza a amplidão da sala. Como não visitava o pai da sobrinha com frequência, ficou matutando, tentando descobrir o que estava errado, já que alguma coisa estava errada – disso ela tinha certeza. Foi só quando estava dirigindo de volta para casa que percebeu que as paredes que separavam a sala da cozinha tinham sido derrubadas.

Tentou achar alguma lógica naquilo. Talvez ele estivesse apenas renovando a casa, deixando-a mais moderna e atrativa. Mas tinha alguma coisa que a incomodava. Talvez tenha sido o olhar dele, que parecia um tanto alterado.

“Ou talvez seja só implicância sua” – uma vozinha falou em sua cabeça. “Pelo amor de Deus, Zuleica, deixe de ser chata. Ele só mudou um pouco a casa, até isso você vai querer controlar?”
Como não queria começar uma discussão mental consigo mesma, Zuleica tratou de esquecer o assunto. Quando fosse buscar Sara na segunda-feira, perguntaria algumas coisas para a sobrinha.

Érico Rodrigues ficou sabendo da segunda vítima do Salvador quando o jogo de domingo estava acabando. Seu informante ligou para seu celular e o mandou correr até o Parque Olhos D’água, onde o corpo de uma garota tinha sido encontrado.

- É domingo, cara – Rodrigues desdenhou. – Amanhã eu passo no IML ou no velório da coitada.

Ah, o informante disse, mas você vai quere ver isso, ah se vai.  Perguntou a Rodrigues se ele lembrava do assassinato da prostituta lá em Taguatinga. Rodrigues disse que lembrava. Então, o informante falou, o cara deve ter atacado de novo, ou alguém matou igualzinho ele tinha matado a prostituta lá em Taguá. Enforcada? Sim. Sem sinais de violência sexual? É. Mijada? Sim. E desta vez, mutilada.
 Érico Rodrigues correu para lá.

 Sara ficou sabendo do assassinato de Ticiane das Graças no programa da Sônia Abrão. Tia Zuleica a tinha deixado assistindo aos desenhos, mas em algum momento, Sara se cansou de bigornadas, pianadas e ratoeiras e zapeou pelos canais. Sônia Abrão debatia com mais duas pessoas (Sara não sabia quem eram) sobre os assassinatos que estavam ocorrendo no Distrito Federal.
Sônia Abrão achava que os crimes tinham cunho sexista, uma vez que as duas vítimas eram mulheres e o assassino tinha urinado em cima delas, colocando-se assim numa posição superior. Um dos convidados alteou a voz e disse que o assassino era um vagabundo, um safado, o que ele merecia era ir logo para cadeia, e cadê a polícia de Brasília que não fazia nada para apurar os fatos e devolver a segurança para as mulheres? Sara pensou em mudar de canal, não tinha gostado do homem que estava falando alto, mas esperou mais um pouco.

O outro convidado, um psicólogo pelo que Sara entendeu, disse que as características do crime indicavam que eles tinham sido cometidos por um psicopata. Matar por enforcamento demonstrava um total descaso com a vida humana, ele continuou dizendo que matar de tal modo exige muita proximidade, é quase como sentir a vida da pessoa esvaindo por suas mãos. É um homem que precisava sim de um acompanhamento...

O homem de quem Sara não gostou cortou o psicólogo rudemente. Pediu para ele não vir com esse papinho, que não precisava de acompanhamento nada, o que precisava era prender esse safado e deixar ele na cadeia pelo resto da vida...

Sônia Abrão remendou o pequeno conflito que surgiu entre os dois e jogou na roda o fato do assassino, no último crime, ter arrancado os seios da vítima. Uma estudante de apenas vinte e três anos, ela lembrou para os telespectadores. Não é uma crueldade?, ela se perguntou. Meu Deus do Céu, já não bastava pegar essa garota, aterrorizar a coitada, tinha que ter esse requinte de crueldade, arrancar um dos símbolos da sexualidade feminina...

O psicólogo lembrou que em nenhum dos casos tinha ocorrido violência sexual. Isso pode indicar um caso de impotência, ele diagnosticou, um homem que está tão irado e insatisfeito com sua própria condição que ataca as mulheres, ataca o objeto do desejo dele, como se isso pudesse acabar de vez com as vontades que ele não pode realizar. Na verdade...

Mas tia Zuleica entrou na sala, e trocou de canal sem que Sara percebesse. O Pica-Pau voltou a atormentar o Zeca Urubu, e Sara logo esqueceu toda aquela história que não era para a idade dela.

O pai de Sara viajou logo após ter estrangulado e mutilado Ticiane das Graças. Ele devia ter ido antes, mas as vozes o mandaram fazer mais um serviço, livrar uma garota que estava sofrendo, sendo queimada por dentro por suas urgências sexuais. Ao chegar perto de Ticiane, o pai de Sara pôde ver o quanto a garota se esforçava para chamar a atenção dos homens, que a usavam e depois jogavam fora. Ele presenciou num delírio vívido o quanto ela cultuava o próprio corpo, tendo acabado de colocar próteses de silicone para poder usar camisetas justas e chamativas. Se continuasse naquele caminho, ela com certeza iria para o inferno, as vozes lhe gritaram isso. Ele precisava salvá-la e assim o fez.

O salvamento de Ticiane o atrasou um pouco em sua viagem, mas ele compensaria na madrugada. Comprou energéticos e pílulas que o manteriam acordado por horas a fio. Sairia de Brasília e chegaria a São Paulo em tempo hábil, depois retornaria para pegar sua filha para passarem o fim de semana juntos.

Sara estava crescendo muito nos últimos tempos, virando uma mocinha. O Salvador começara a tecer dúvidas em relação a deixar Sara sob os cuidados de Zuleica. Os dois tinham chegado a um acordo amigável, a Justiça não teve participação nisso. Tinha decidido que não seria má ideia Sara morar com a tia. O Salvador não parava em casa, vivia rodando para cima e para baixo, não poderia mesmo cuidar de Sara do jeito que a filha merecia.

Mas tudo tinha mudado. As vozes tinham mostrado ao Salvador situações que ele antes negligenciava. Tantas moças perdidas, tantas moças se vendendo, tantas moças fazendo um caminho sem volta para as tormentas eternas do inferno. Ele não queria que o mesmo acontecesse com Sara. Precisava tê-la ao seu lado, só ele poderia ensiná-la a se portar, a ser uma boa garota. Só ele podia evitar que ela tivesse o mesmo fim trágico daquelas pobres moças que precisaram da salvação derradeira.

Ainda estava pensando nisso quando parou em um posto de gasolina às moscas àquela hora da noite. Já estava em Goiás e nem vira o tempo passar, os remédios estavam mesmo fazendo o que prometiam.
Foi usar o banheiro e entrou na loja de conveniência para comprar mais energéticos. Uma senhora esbarrou nele enquanto saía, ele a olhou de soslaio e viu uma luz iluminá-la. Algo foi cochichado em seu ouvido, algo que só ele ouviu.

Quando saiu da loja, viu a senhora parada à beira da estrada, pedindo carona. As vozes estavam certas. Ela precisava ser salva.

 O Salvador só apareceu no Jornal Nacional depois que o corpo de Marluce de Assis foi encontrado em uma ribanceira na estrada Goiânia-São Paulo. Era uma mulher desgarrada, sem filhos, sem marido e sem família. Os poucos conhecidos que se pronunciaram disseram que ela estava sempre viajando, pedindo carona, tentando a sorte em postos de gasolina. Os atendentes do posto confirmaram que ela tinha passado por lá, e alguns lembravam vagamente de ela ter entrado em um caminhão, mas aquela era uma cena tão comum, que ninguém se sentiu plenamente seguro para corroborar qualquer coisa.

Quando Fátima Bernardes apareceu de volta na tela, depois de toda a reportagem ser exibida, ela afirmou que o maníaco conhecido como O Salvador estava expandindo sua zona de atuação. Complementou dizendo que as polícias do Distrito Federal, de Goiânia e de São Paulo estavam trabalhando em conjunto para resolver o caso, e chamou o intervalo comercial.

O Salvador deixou de ser assunto para o sangrento pasquim de Érico Rodrigues e virou um terror nacional. Em São Paulo, as mulheres estavam em polvorosa. Como o corpo de Marluce tinha sido encontrado às margens de uma estrada que levava ao estado, a ideia de que O Salvador estava a caminho se proliferou perigosamente. Programas vespertinos alertavam para o perigo, relembravam casos de assassinos em série conhecidos, entrevistavam insistentemente familiares e amigos das primeiras vítimas.

O pai de Sara não via nada disso. Depois de desovar o corpo de Marluce, seguiu para São Paulo, mandou mais uma carta para a polícia (Eu Salvei Ela), entregou sua carga, pernoitou num hotel vagabundo e pegou a estrada de volta para Brasília. Queria chegar a tempo de pegar Sara na sexta-feira para poder aproveitar todo o fim de semana com ela.

Nos dois dias de viagem, as vozes não falaram com ele.

Zuleica já não se importava de Sara assistir ao programa de Sônia Abrão. Com todo o frenesi em torno do Salvador, Zuleica não desgrudava da televisão, pulando de canal em canal em busca de novas informações. Menos no horário da tarde, que era destinado a Sônia Abrão e seus convidados. Mesmo que novas notícias não fossem divulgadas por ela, Zuleica sempre tinha a impressão de que Sônia Abrão sabia mais que os outros e não negligenciava fatos que outros poderiam achar insignificantes.

Sara ficava brincando no tapete com suas bonecas, vez ou outra levantava a cabeça e prestava atenção ao que os convidados falavam. Mas na maioria das vezes não se importava muito, saía para brincar com os amigos na calçada, corria pela casa, brincava de ser apresentadora de televisão.

O pai de Sara apareceu na sexta-feira à tarde quando Zuleica estava especialmente envolvida no debate que Sônia Abrão mediava entre um advogado criminalista e um bispo moderado de São Paulo. Sara abriu a porta e deixou o pai entrar. Ele trocou duas ou três palavras com Zuleica, que não desgrudava os olhos da TV, enquanto Sara correu para buscar suas coisas.

O pai de Sara sentou-se no sofá para esperar e assistiu ao programa. Uma onda estranha e incômoda o percorreu quando ele se deu conta que aquelas pessoas estavam falando sobre ele. E estavam falando tudo errado. Diziam que ele era cruel, desumano, psicopata. Zuleica, que parecia concordar com tudo, balançava a cabeça amistosamente.

Sara voltou para a sala, uma mochila rosa agarrada às suas costas. Zuleica deixou a TV de lado por um minuto e abraçou a sobrinha com pressa, deu dezenas de instruções para o pai de Sara e voltou a se sentar para continuar a assistir Sônia Abrão.

O pai de Sara pousou gentilmente a mão nas costas da filha e a conduziu até a porta, e antes de sair, olhou para a televisão mais uma vez. Sônia Abrão estava com a palavra, mas interrompeu seu raciocínio, olhou diretamente para ele e lhe deu uma piscada. O pai de Sara estacou, incrédulo. Olhou para Zuleica, mas ela não tinha percebido a comunicação entre ele e a apresentadora.
O pai de Sara fechou a porta com cuidado, e foi se reunir à filha no carro.

Ingrid Sampaio estava brigando com os pais no momento em que O Salvador entrou na casa de Zuleica e sentou no sofá para esperar a filha. Não era a primeira discussão que Ingrid travava com os pais. Ela não conseguia entender a vida chata que eles levavam, tendo que acordar cedo, pegar ônibus, trabalhar no serviço público e depois voltar para casa para dormir.

Ingrid entedia menos ainda por que seus pais insistiam que ela seguisse a mesma vida deles. Ela não queria aquilo, e com certeza não o faria. Estava pouco se ferrando para a estabilidade, queria mais é sair pelo mundo, conhecer gente interessante, pular de emprego em emprego se fosse preciso. Queria viver, não apenas esperar o próximo dia. Podia ser ímpeto adolescente. Sua mãe lhe dissera certa vez que também pensava daquele jeito quando tinha dezessete anos, que mais cedo ou mais tarde ela ia se conscientizar de que a segurança era a melhor política.

Na verdade, era isso que a mãe de Ingrid repetia para ela quando a garota soltou um grito histérico e correu para seu quarto. Colocou algumas roupas em sua mochila e correu para fora de casa, dizendo que não mais voltaria, que estava cansada daquilo tudo. Os pais de Ingrid ainda falaram uma coisa ou outra, mas deixaram que ela fosse sem grandes impedimentos. Era isso que Ingrid fazia mesmo, fugia de casa. Depois voltava, quando percebia que o mundo não era tão romântico e excitante quanto ela imaginava.
Ingrid embrenhou-se pelas vielas e campos de Samambaia, saiu da quadra 406 e correu para pegar um ônibus que ia para o centro de Taguatinga.  Só quando estava prestes a passar pela roleta percebeu que esquecera sua carteira na gaveta da cômoda e foi enxotada do coletivo pelo motorista e pelo cobrador. Indignada, ela começou a andar – adorava andar – pensando em sua vida e no que faria dali para frente. 
Estava tão imersa em sua própria mente que deixou passar outros dois ônibus que iam aonde ela queria chegar, e só parou para reparar alguma coisa à sua volta quase quarenta minutos depois, quando já tinha passado do Hospital Regional.

Suas pernas protestaram cansadas e ela desabou no chão. O suor que pingava de sua testa escorreu para seus olhos, e ela piscou forte para não sentir nenhuma ardência. Começou a pedir carona depois de um fervoroso debate consigo mesma, e não teve sorte por uns bons vinte minutos. Foi aí que o caminhão monstro parou ruidoso no acostamento, silvando e espocando.

Ingrid lançou um olhar para a boleia, mas não conseguiu enxergar tão alto. Seu corpo gritou primitivamente, como gritaria se ele vivesse milhões de anos atrás e desse de cara com um mastodonte, ou um búfalo ou qualquer outro bicho que pudesse estraçalhá-la.  Levantou a mão para dispensar a caminhão com o máximo de polidez que podia quando a janela do carona se abriu e o rosto lindo de uma menininha apareceu sorridente.

O vento despenteou os cabelos de Sara por um minuto, e ela fez uma careta de incômodo ao tentar domá-lo e guardá-lo atrás das orelhas. As ondas primitivas de medo deixaram o corpo de Ingrid sem que ela percebesse, a garotinha tivera o poder de tranquilizá-la.  Caminhou até o caminhão, e o rosto de um homem (uns trinta, trinta cinco anos, Ingrid calculou) apareceu sobre a cabeça da menininha. Juntos assim, a semelhança entre os dois era chocante. Pai e filha, com certeza, Ingrid determinou.

O homem ajudou a menininha a abrir a porta do caminhão com um sorriso simpático. Ingrid subiu as escadinhas.

- Tá indo para onde? – foi a primeira coisa que o homem perguntou antes de Ingrid entrar no carro.
- O senhor está indo para onde?
- Taguatinga.
- Tá bom pra mim.

O homem fez um sinal rápido com a mão, convidando-a a entrar. Sara pulou para perto do pai, que segurava firme o volante daquele carro gigantesco como se esperasse que ele pudesse escapar. Ingrid sentou ao lado de Sara e as duas sorriram uma para outra.
Ingrid foi morta sete horas depois.

O pai de Sara não viajou depois de matar Ingrid. Ele ficou em casa, acabando de curtir o fim de semana com a filha. Sara ainda perguntou para ele o que tinha acontecido com a moça bonita a quem eles tinham dado carona, levado ao supermercado e convidado para jantar e passar a noite, mas seu pai lhe disse que ela tinha ido embora logo cedo. Transmitiu à filha os beijos e abraços que Ingrid tinha supostamente lhe mandado, e a garota deixou o assunto de lado.

A quarta carta do Salvador chegou à delegacia na terça-feira, e a essa altura, os pais de Ingrid já haviam acionado a polícia. No domingo à tarde eles reportaram que ela estava desaparecida. Disseram que esperaram tanto tempo para comunicar porque era do feitio da filha ficar longe por um ou dois dias, mas que ela sempre voltava. Dessa vez, no entanto, ela não fora pedir abrigo na casa de nenhuma amiga ou conhecida, não ligara e não dera sinais de que ia voltar.

O corpo de Ingrid foi encontrado no Parque Três Meninas, bem perto da casa da moça, em Samambaia. 
Como acontecera das outras vezes, o Salvador tinha enforcado a vítima e urinado em cima dela. Os pais de Ingrid foram informados ainda na terça-feira e fizeram o reconhecimento do corpo em meio a muitos gritos e choro. Todos os telejornais noturnos noticiaram o fato, mas Zuleica ficou sabendo pelo programa de Sônia Abrão, que interrompera uma entrevista banal e iniciara um plantão com as ainda esparsas informações sobre o caso.

O pai de Sara também estava assistindo ao programa. Desde que Sônia Abrão piscara para ele, percebeu que as vozes estavam alterando um pouco suas vias de comunicação. Quando viu Ingrid pedindo carona, por exemplo, um murmúrio quase inaudível o incomodou por um segundo e depois calou-se. Quando viu, já tinha estacionado o caminhão e a moça já estava subindo na boleia.

Mais tarde, quando eles estavam jantando, a TV saiu do ar por um segundo, e a tela foi tomada por chuviscos e estática. Sara e Ingrid taparam os ouvidos para escaparem daquele ruído, mas o pai de Sara ouviu, entre a estática, a voz de Sônia Abrão chegando até ele. Arrastou-se para perto da televisão, colou o ouvido na tela e ouviu mais alto. Ele tinha que matar Ingrid.

Passou os dias seguintes atento à programação, talvez as vozes escolhessem outras pessoas da televisão para passar-lhe uma mensagem. Durante alguns programas ainda conseguiu ouvir uma coisa ou outra, mas vinham de muito longe. Achava que o problema se resolveria sozinho, que ele só tinha que se acostumar com essa nova forma de comunicação. Estava enganado.

A terça-feira chegou, e enquanto Sônia Abrão falava na TV, ele não conseguia entender a mensagem que ela queria lhe passar. Num momento, Sônia Abrão voltou a olhar diretamente para ele, mexeu os lábios formando palavras, mas nenhum som saía. O rosto da apresentadora se contorceu em espasmos e o som da TV se encheu de chiados e estáticas. Tinha alguma coisa ali, alguma mensagem que ele não conseguia decifrar.

Acordou de madrugada certo de que eram as árvores. As árvores é que estavam causando interferência, impedindo que as vozes se comunicassem com ele, mostrassem a ele suas novas missões. Saiu de casa de cuecas e com uma serra elétrica e acordou toda a vizinhança começando a demolir as árvores que há anos enfeitavam a praça.

Choveram ligações para a polícia, os mais corajosos saíram de casa, indignados, berrando para que ele parasse com aquela loucura. O pai de Sara conseguiu derrubar a primeira árvore, e ela caiu em cima de um Parati estacionado ali perto. Algumas pessoas gritaram.

O pai de Sara passou para a próxima árvore, ao longe as sirenes policias podiam ser ouvidas, assim como as vozes que falavam única e exclusivamente com o Salvador. O pai de Sara forçou a serra contra o caule da árvore. Lascas de madeira voaram para todos os lados, atingindo seus olhos, e seu corpo seminu. Um gorducho de bigode não pôde ficar parado muito tempo. Sua mulher ainda tentou puxá-lo pelo braço, mas ele se desvencilhou e partiu berrando para cima do pai de Sara, o dedo balançando de um lado para o outro, passando um sermão irado.

O homem de bigode colocou a mão no ombro do pai de Sara, e ele virou-se rapidamente, os olhos vertendo sangue, pois algumas lascas de madeira os tinham ferido. A serra elétrica afundou-se na barriga excedente do homem, que arregalou os olhos e cuspiu sangue. A mulher do homem gritou lá trás enquanto a serra cortava seu marido ao meio. O bigodudo levou as mãos à barriga, como se tentando conter o sangue e as tripas que escapavam pelo rasgão recém-aberto. Caiu de joelhos e cada metade sua desabou para um lado.

Quando a polícia chegou, minutos depois, o pai de Sara continuava cortando as árvores. E sorria. Já estava ouvindo muito melhor.

Érico Rodrigues nunca contou isso a ninguém, mas quando sentou para escrever sobre a prisão do Salvador, estava um tanto triste. Vinha acompanhando o caso do assassino há alguns meses, dera-lhe o nome que o fizera conhecido no país todo, e tudo acabava daquele jeito: uma briga entre vizinhos.
Claro que a imagem do gorducho partido ao meio seria um chamariz e tanto para a capa de seu jornal, e a conclusão da história tinha todos os ingredientes que fariam os leitores salivarem. Podia até dividir a trama em duas partes. Primeiro, as mortes das moças. Segundo, como a filha do Salvador fora essencial para a resolução dos fatos e a fatídica confusão que vitimou o gordo bigodudo.

Até tentou entrevistar a garota, a filha do assassino, mas a velhaca histérica da tia dela impediu veementemente. Érico não pretendia colocar o rosto da menina no jornal, nem podia, mas seria apoteótico tê-la narrando os fatos. Como ela falara displicentemente para a tia que conhecia a moça que fora assassinada, como a tia pediu mais detalhes, como ela falou que a moça – a tal Ingrid – tinha aceitado a carona que o Salvador tinha oferecido e tudo o mais.

Sara não vira o crime, disso Érico tinha certeza, mas sabia dos bastidores dele, o que era tão ou mais interessante. Mas nada feito, a tia da menina não o deixara se aproximar, um abuso, já que foi com a ajuda dele que o caso do Salvador ganhou repercussão nacional. Ele foi o primeiro a apostar na história. Não fosse por ele, sabe-se lá quantas moças teriam padecido nas mãos daquele biruta que ouvia vozes, pensava que a Sônia Abrão mandava mensagens para ele pela televisão e urinava em cimas da vítimas pois achava que o líquido que saia dele era santificado. Érico merecia aquela entrevista exclusiva, era a paga perfeita para seus serviços incansáveis para colocar o Salvador atrás das grades.

Continuou escrevendo a matéria derradeira sobre o Salvador. Deixou subentendido que a garota, a filha do Salvador, talvez soubesse mais do que revelara. Deixou nas entrelinhas que a loucura do pai podia se hereditária, que Sara precisava de acompanhamento, afinal, teria que conviver para sempre com o fato de o pai ser um assassino em série.  Não fez isso por maldade ou vingança pela garota não ter lhe concedido a entrevista, realmente acreditava naquilo.

Tentou imaginar como seria a vida daquela garota em alguns anos, quando ela pudesse entender o que o pai causara. Tentou imaginar como aquela tia idiota dela lidaria com a situação, o que diria se Sara resolvesse visitar o pai na prisão. Pôs-se a imaginar o reencontro dos dois. O Salvador contaria sobre sua missão, contaria que fez tudo aquilo porque achava que era o certo. Contaria à filha o que contou a ele, que a última vítima só entrara no caminhão porque se sentira segura pela presença de Sara. O Salvador era assertivo em relação a isso, mas Érico não sabia de onde vinha tamanha certeza. Talvez Sara se sentisse culpada, enojada. Mas talvez fosse tão louca quanto o pai e veria naquilo um sinal. Ela voltaria para casa ouvindo vozes no ônibus, poderia ligar a TV e delirar que o Faustão, a Marília Gabriela ou qualquer outra pessoa estava tentando lhe passar mensagens, enviá-la em missões.

Ele pensou em outra coisa, mas essa também ele não contaria para ninguém. Esperava estar vivo e ainda na ativa quando a filha do Salvador retomasse o trabalho do pai. E o furo novamente seria dele.
As hipóteses ainda rondavam sua cabeça quando Érico Rodrigues colocou um ponto final na matéria sobre o Salvador. Estava boa. Venderia muito.

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