J.C.
15.
Meus olhos viam, mas meu cérebro não conseguia compreender aquelas
imagens. Estava a centenas de metros de altura, e algumas árvores iam mais
alto. À minha volta, copas de árvores, galhos retorcidos e grosseiros, caules
grossos como as vigas de sustentação do templo que Sansão destruiu.
O cheiro de natureza, que antes me alcançava de leve, agora preenchia
todo o ar a nossa volta, chegando a ser enjoativo. Alguns gritos distantes e
agudos soavam estranhos naquela paisagem e eram engolidos pelas árvores
rapidamente. No lugar do som do desespero, pássaros faziam a festa, as folhas
farfalhavam ao vento calmo e ululante, e eu podia jurar que ouvia o rumorejo de
uma queda d’água.
- Edie – Dimas me chamou. Estava sentado no galho, as pernas penduradas
para baixo. Seu rosto estava tão atônito quanto o meu. – Será que é seguro
descer?
Com certeza não, eu pensei, mas
não podíamos ficar ali para sempre. Balancei a cabeça em uma afirmativa, não
sabia o quanto aquele galho ia aguentar o peso de nós dois juntos, então era
melhor sair dali rápido.
- E como fazemos? – Dimas perguntou.
Não tinha outra alternativa que não ir descendo aquela árvore colossal
pelos galhos. Estávamos na parte mais alta, quase na copa bojuda e extensa. Ali
em cima, os galhos eram mais numerosos, mas ficavam mais raros ao longo do
caule e eram quase inexistentes na parte de baixo. Não conseguia ver até onde
eles iam, mas com certeza teríamos que pular em algum momento; e a altura não
seria pouca coisa.
Dimas também estava absorto em pensamentos, mas com uma expressão perdida
e distante, como se o entendimento daquela situação absurda o tivesse levado
para o mundo do faz-de-conta. Ele tirou a camisa e enxugou o rosto suado e
manchado de sangue. Tinha um corte fundo na testa, com certeza, conseguido na
nossa subida. Olhei para o corte na minha mão, que reabrira e crescera, ganhando
bordas arroxeadas.
Medi a distância entre nós e as árvores mais próximas. Talvez
conseguíssemos pular até elas, algumas tinham galhos maiores e melhor
distribuídos. Mas uma olhada foi suficiente para ver que nem em sonhos as
alcançaríamos, eram quase três metros de separação entre a nossa árvore e a que
estava ao lado, e esta tinha o caule mais liso e escorregadio.
- De quanto você acha que é a queda? – Dimas perguntou.
- O suficiente para nos matar – eu disse, começando a ficar desanimado
com o esgotamento de opções. – Dez, quinze metros.
Dimas se levantou e o galho balançou assustadoramente. Tentei ouvir um
estalo, o som de algo quebrando, mas nada. Ainda estávamos seguros.
Dimas abriu os braços e soltou um berro raivoso. O farfalhar de asas me
avisou que pássaros tinham voado para longe daquele barulho. Ele continuou
berrando por quase um minuto, liberando tudo o que estava guardado desde o
começo de tudo aquilo: raiva, frustração, surpresa, desespero. Quando parou,
voltou-se para mim, cansado, destruído, não gostava de vê-lo assim.
- A gente tem que sai daqui.
Concordei com a cabeça e também tirei minha camisa, enrolando-a em minha
mão ferida. Afastei os cabelos suados do meu rosto e me aproximei do tronco da
árvore. Tínhamos que descer, e aquele era o único jeito. Deixaria para me
preocupar com a altura do salto quando chegasse lá embaixo.
- Vamos começar, então – eu falei para Dimas, que seguindo meu exemplo,
também enrolara a camisa na mão. – Ainda temos que achar a Perla e o Herick.
Começamos nossa escalada ao contrário. Os galhos estavam firmes e
sustentaram nosso peso sem problemas, a primeira metade da descida foi tranquila,
quase fácil demais. Dimas tinha mais habilidade do que eu, e instantaneamente tomou
a frente da aventura, se pendurando e pulando nos galhos com uma animação
juvenil.
- Íamos sempre para uma chácara nas férias – ele disse quando paramos um
pouco, já na metade do caminho. Sabia que ele se referia aos pais e aos irmãos.
– Eu vivia subindo em árvores com o Felipe, atrás de frutas.
Um rugido abissal interrompeu as lembranças de Dimas e nos fez encolher
os ombros de susto. Ouvimos uma nova revoada de pássaros e eu senti um suor
gelado brotar da minha testa.
- E isso agora? – eu perguntei, menos surpreso do que estaria em uma
situação daquelas. Mas depois de ter passado por tudo o que passamos em menos
de duas horas, não me assustava mais com qualquer coisa.
- Um bicho. – Dimas enxugou a testa e o lábio inferior com as costas do
braço, e se levantou. – Um bicho grande.
Quando passamos da metade do caule, os problemas começaram como eu tinha
previsto. Os galhos já não ficavam tão próximos e muitas vezes tivemos que nos
pendurar nos galhos de cima e nos deixar cair para poder chegar aos galhos de
baixo. Qualquer passo em falso ou erro de cálculo e cairíamos no lugar errado.
Outra dificuldade é que os galhos ficavam mais fracos e quebradiços conforme
descíamos, o que nos impossibilitava de dividir o mesmo espaço.
Nos metros derradeiros que nos separavam do solo, ficamos cada um de um
lado do caule, suados, machucados e famintos. Quando, enfim, os galhos
terminaram ainda faltavam uns bons cinco metros para chegarmos ao chão. Se
caíssemos de mau jeito, quebraríamos uma perna ou um braço.
- Acha que a gente pula? – Dimas me perguntou, ofegante.
- Não – eu disse. – Tive uma ideia. Mas você tem que vir para cá.
- O quê?
Mas nem respondi. Fiz força no galho para ver o quanto ele aguentava, e o
senti balancear perigosamente, mas não teria outro jeito. Se fôssemos rápidos,
daria certo.
- Edie, o galho não aguenta com nós dois – Dimas tentou de novo.
- Vem logo – eu disse, impaciente. – Vamos descer daqui.
Sentei, arrumei a camisa na minha mão e me preparei. Segurei o galho
quebradiço com as duas mãos e me pendurei nele. Minhas pernas dançaram no
vazio, apontando para o chão coberto de folhas secas, musgo e terra. Desviei
meus olhos da queda, mas olhar para cima me dava vertigem, então resolvi fechar
os olhos. O galho estalou de novo.
- Rápido, Dimas.
O galho vergou um pouco e ouvi um novo estalo. Ele já estava lá em cima.
Dimas colocou os pés nos meus ombros e começou a descer por mim. O galho em que
me segurava cedeu um pouco e ficamos os dois balançando no ar. Dimas respirava
ruidosamente, mas continuou. Passou pela minha cintura e ficou agarrado às
minhas pernas, a distância entre ele e o chão, com certeza, estava
consideravelmente pequena.
- Eu vou pular – Dimas avisou e eu balancei a cabeça, os olhos ainda
fechados.
O galho cedeu mais um pouco, na próxima iria quebrar de vez. Dimas largou
meus tornozelos e eu abri os olhos. Ele caiu em pé como um gato e se levantou
de pronto.
- Dimas! – ouvi alguém chamar por ele.
Dimas se virou instintivamente para atender o chamado, e com um novo
estalo, o galho cedeu de vez.
Eu caí.
Mas caí em cima de Dimas e Herick.
Era Herick quem estava chamando por Dimas. Quando ele me viu desabar, correu para
me amparar, trombando em Dimas que se virou para fazer a mesma, e eu acabei
caindo em cima dos dois.
Levantei com cuidado, com medo de ter machucado alguma coisa, mas tudo
parecia normal. Levantei os braços para Dimas e Herick e os dois me ergueram,
também ilesos.
- Que bom que vocês estão bem – Herick disse, espanando a sujeira das
roupas com as mãos.
Um olhar foi suficiente para ver que ele estava pior do que nós dois.
Tinha um feio hematoma que lhe inchava o olho direito e seus braços estavam
cobertos de cortes. Também tirara a camisa, mas ela estava enrolada no
antebraço esquerdo estacando um corte mais profundo.
Em breves palavras, Herick nos contou o que tinha acontecido a ele e
Perla. Eles não conseguiram se agarrar aos galhos da árvore como Dimas e eu, e
tiveram que correr para fugir da floresta emergente e do chão implosivo.
- Uma pedra acertou meu olho – ele disse, levando a mão à face inchada. –
Mas isso não foi nada.
Herick contou que viu pessoas sendo decapitadas por galhos que mesmos não
sendo tão grossos pareciam chicotes de fogo; cortadas por estilhaços de
asfalto, lançadas a centenas metros pelas explosões, sendo engolidas pelo chão.
- E a Perla? – eu perguntei com medo da resposta.
- Ela está bem. Descansando.
Herick nos levou por uma trilha no meio das árvores. Era a primeira vez
que observava a floresta com mais calma. Seria ultrajante dizer que era um
lugar bonito, depois de tudo o que eu tinha presenciado, mas não tinha outro
jeito de descrever. As árvores se dividiam pelo espaço de forma tão harmônica e
agradável que parecia que quem as plantara tinha o Feng Shui em mente.
Como o carvalho que Dimas e eu
tivemos que descer, as árvores eram imensas, grandes de perder de vista.
Algumas eram finas e de aparência frágil, outras pareciam centenárias, com
raízes grossas que saíam do solo com brutalidade. As copas bojudas impediam a
luz solar de penetrar livremente, deixando o dia mais escuro.
- Cara, eu ainda não estou acreditando – Dimas disse olhando para cima,
abismado. – De onde é que veio isso?
Sem saber como responder, Herick e eu ficamos calados e continuamos
andando, mas não por muito tempo. Paramos em frente a uma caminhonete prateada
imprensada entre duas árvores, o capô e a traseira completamente destruídos.
Herick abriu a porta do motorista e nos convidou a sentar no banco de
trás. Perla estava deitada no banco do carona, que estava completamente
reclinado. Ela também estava bem machucada, a camisa branca do uniforme escolar
com vários pontos vermelhos. Eu sorri feliz ao vê-la viva e segura.
Herick sentou-se no banco do motorista. Perla se remexeu quando ele
fechou a porta e acordou com ímpeto. Olhou assustada para nós, até o
reconhecimento a atingir. Ela sorriu e seus olhos marejaram. Estávamos juntos
de novo.
- Vocês estão bem. – Perla se virou para o banco de trás e estendeu as
mãos para nós
Seguramos as mãos dela com um sorriso de reencontro, felizes por estarmos
ali, deixando para lá, pelo menos por um minuto, a floresta surgida do nada, o
calor úmido e insuportável e as dores por todo o corpo.
- Que ideia foi aquela de se agarrar na árvore? – ela perguntou sorrindo,
e eu beijei sua mão antes de ela recolhê-la para junto de si.
- A gente está bem melhor do que vocês, pelo menos. – Dimas se recostou
no banco confortável e se espreguiçou com vontade.
- É, mas sumiram um tempão –
Herick disse, nos olhando pelo espelho retrovisor. – Achamos que vocês
talvez... – E se calou. Tínhamos entendido.
- Não – eu respondi. – Ainda estamos aqui.
Perla sorriu ao me ouvir dizer isso e se aconchegou em seu banco. Dimas,
ao meu lado, fechou os olhos, entrando no mundo dos cochilos. E eu senti que
estava indo pelo mesmo caminho. Mas antes, precisava saber.
- Cadê todo mundo? – eu perguntei, agora só para Herick. Dimas e Perla já
ronronavam baixinho.
Herick demorou a se virar para mim, mas quando o fez tinha o olhar carregado
e enigmático. O para-brisa mostrava o capô amassado e a árvore à nossa frente,
e além dela a floresta eterna e misteriosa. Vi vultos passando por entre as
árvores, correndo, se arrastando. Isso de alguma forma respondia minha
pergunta, mas meus olhos estavam pesados e podiam muito bem estar me pregando
peças.
- Eu não vi muitas pessoas depois de... tudo isso – Herick disse
baixinho. – É claro que muitos morreram, como eu falei, estão embaixo das
árvores. Mas quando eu me lembro da multidão de antes... As pessoas sumiram.
- É impossível, Herick – eu disse. – Tudo isso é impossível.
- Eu não sei, Edie. E aquele buraco no chão que estava sugando todo
mundo...
Herick se virou novamente para frente, para encarar a árvore que
destruíra o capô do carro.
Eu me senti escorregar no banco, fechar os olhos, ser derrotado pelo
cansaço. Mas ainda ouvia Herick falando.
- Vi pessoas depois de tudo, claro. Muitas até, mas poucas comparadas à
multidão de antes. As que eu vi, andavam em grupos. Acho que vai ter que ser
assim agora.
Ele se voltou para mim abruptamente. Sentei-me reto no banco de pronto,
atento.
- E não foram só as pessoas – Herick continuou em tom baixo. – Olhe em
volta, é quase como se a cidade não tivesse existido.
Fui até a janela e observei a floresta. Embora aqui e ali montes de
entulho e concreto revelassem as construções destruídas, realmente era pouca
coisa. Não vi as estruturas dos prédios, metais retorcidos, os carros. Aquele
em que estávamos era o único à vista.
- É mesmo muito estranho – foi só o que conseguir dizer. Meu cérebro
estava cansado demais para arquitetar teorias para tudo aquilo.
- Estranho – tornou Herick, voltando a se virar para frente.
E eu adormeci com isso ecoando em minha cabeça.
16.
Acordei em meu quarto, enrolado em meus lençóis.
Sentia um bem-estar absoluto, daqueles que se sente nos domingos pela
manhã depois de uma revigorante noite de sono. Virei para o lado, na minha cama,
e me encolhi embaixo das cobertas. Desejei não sair dali o dia todo, ficar
curtindo a preguiça, pensando em qualquer coisa.
A porta do meu quarto se abriu de uma vez e minha mãe entrou enérgica.
Tinha acordado tão bem, com sensação de domingo, que nem tinha cogitado a
possibilidade de aquele dia ser um dia útil. Se fosse, a vontade de curtir a
preguiça ia ser categoricamente negada e minha mãe estava ali para fazer isso
acontecer.
- Está na hora, Edgard – ouvi a voz dela, mas tinha algo de diferente que
eu não conseguia identificar. – Ou melhor, já passou da hora.
Cobri a cabeça com o edredom e grunhi algo ininteligível. Minha mãe
cruzou o quarto com passos apressados e abriu as janelas. A luminosidade
atravessou as cobertas e minhas pálpebras.
- Vamos, Edgard – ela de novo. – Deixa de besteira, você prometeu me
ajudar.
Quanto mais minha mãe falava, mais eu notava algo diferente em sua voz,
sua entonação. Era como se não fosse ela, como se uma mudança tivesse ocorrido,
embora eu não pudesse identificar precisamente qual.
- Edgard – minha mãe disse, me dando uma palmada e puxando o cobertor.
Tentei puxá-lo de volta, mas foi inútil. Sentei na cama, a cara amassada.
Esfreguei os olhos e meus lábios se abriram involuntariamente ao ver minha mãe.
Estava com os cabelos soltos e penteados, bem diferente do rabo de cavalo
desleixado que ela adotara nos últimos anos. Também não estava usando as roupas
folgadas e velhas, mas uma calça jeans com uma lavagem mais clara e uma
camiseta regata estampada com uma foto da Madonna.
- Achei que ia me deixar na mão – ela disse, jogando o edredom de volta
na cama. E eu percebi o que tinha de diferente na voz dela. Era alegria. –
Levanta e me encontra na cozinha.
Minha mãe saiu do quarto com energia e sorrisos, e eu fiquei na cama,
abismado e incrédulo. Reconhecia as alterações de humor dela, os altos e baixos
desde o desaparecimento de Jô, mas aquela situação era completamente nova para
mim. Em seus melhores dias, minha mãe cuidava da horta e do jardim, no muito
escutava uma música, ligava para uma amiga. Não ficava esfuziante daquele jeito.
Nunca.
Saltei da cama e me enfiei em uma calça de moletom. Calcei os chinelos e
saí para o corredor que ligava meu quarto à sala, passando pelo banheiro e pelo
quarto de meu irmão. A porta estava aberta, o que me fez ter certeza de que
algo estava errado.
O quarto de Jô se transformara quase em solo sagrado. Minha mãe o
trancava à chave e não dava permissão a ninguém para entrar. Nos seus péssimos
dias se trancava ali dentro, e eu podia ouvir seu choro do outro lado da porta.
Empurrei a porta entreaberta e por um momento pareceu que nada tinha
mudado. Vi a bola de futebol de Jô aos pés da cama – ele, sim, gostava de
esportes -, seus bonecos dos Power Rangers colocados em posição de batalha em
cima de uma prateleira, uma pilha de revistas da Turma da Mônica perto da mesa,
que estava lotada de desenhos e pinturas.
Jô era um grande artista, ou como as outras pessoas gostavam de dizer, um garoto muito sensível. Era ligado às
artes, todas elas. Lembro que ele começou a tocar gaita com quatro anos de
idade. Eu tinha comprado uma depois de ouvir umas músicas do primeiro CD da
Alanis Morissette e me meti a tocar gaita, sem sucesso nenhum. Jô por outro
lado, só de ouvir Head Over Feet – um
montão de vezes, claro – conseguiu tocar o solo depois de dois ou três dias.
Peguei um dos desenhos recentes dele e senti um formigamento na mão. Era
uma floresta, ou pelo menos a representação de uma. Jô pintara toda a página de
verde, e depois rabiscara alguns traços marrons, que eu entendi como os caules
das árvores. Outra folha estendida na mesa trazia o mesmo desenho.
- Mamãe está chamando, Edie.
Deixei os desenhos caírem ao som daquela voz. Me virei para encontrar meu
irmão caçula, parado no umbral da porta. Eu crescera nos últimos três anos, mas
ele continuava o mesmo garoto de seis anos com os cabelos encaracolados, o
corpo rechonchudo e as bochechas rosadas.
- Jô – eu o chamei, abismado. – Você está em casa.
- Mamãe está chamando na cozinha – ele continuou. – Você não vem?
Balancei a cabeça em concordância e me abaixei para pegar os desenhos
caídos no chão. Mas quando me levantei, Jô não estava mais lá.
- Jô?
Coloquei os desenhos na mesa e uma sensação estranha me tomou de assalto.
O quarto de meu irmão pareceu esticar, aumentar. A porta que estava bem na
minha frente, pareceu viajar para o outro lado do mundo.
- Edgard, você não vem? – era minha mãe chamando. Sua voz vinha de longe.
- Edie! – ouvi a voz de Jô por todo o quarto, magicamente amplificada. –
Edie!
- Edgard, traz seu irmão – minha mãe de novo. – Rápido, já estou servindo
o café.
-Edie! Ediiiieee! – Jô começou a chorar, gritar, espernear.
- Jô – tentei chamar, mas da minha boca só saiu um grito agudo e
histérico.
A porta do quarto se fechou com o estrondo de um trovão e eu estava de
volta. De volta ao carro espremido entre duas árvores. De volta à floresta.
17.
Herick estava inclinado sobre Perla, que gritava e se debatia loucamente.
Dimas também acordara e saíra correndo do carro, indo se colar à janela do
banco do carona. Com a cabeça doendo me aproximei de Perla, que aos poucos se
acalmava.
- Tudo bem, Perla – Herick sussurrava. – Calma.
Perla abraçou Herick com força, o rosto vermelho de tanto chorar. Invejei
aquele momento e tentei imaginar o que teria acontecido entre eles dois
enquanto Dimas e eu estávamos tentando descer daquela árvore. Os momentos de
terror e pânico, com certeza, os tinham unido mais do eu poderia pensar. Saí do
carro com raiva e bati a porta com força.
Dimas se afastou do carro e tentou ver através da copa das árvores. O dia
escurecera consideravelmente, mas a noite ainda não chegara. Os pedaços de céu
que podíamos ver eram de uma coloração alaranjada berrante, o sol estava se
pondo.
- Precisamos de um plano. – Dimas cruzou os braços e encarou as árvores à
frente. – Não acho que seja bom ficarmos por aqui.
- Eu sei.
A porta do carona se abriu e Perla saiu. Ainda estava abatida, mas tinha parado de chorar e parecia recomposta. Herick saiu do outro lado do carro e se juntou
a nós, as mãos carregadas de pequenas frutas pretas.
- Me ajuda aqui, galera.
Dimas tomou a frente, desamarrou a camisa da mão e a estendeu no chão.
Herick despejou as frutas na camisa e correu para o carro, na certa para buscar
mais. Eram jabuticabas, eu vi quando sentei ao lado da duvidosa toalha de
piquenique que era a camisa de Dimas. Herick voltou trazendo mais uma braçada
de jabuticabas e se sentou no chão ao nosso lado.
- Quando você conseguiu? – Dimas perguntou pegando uma das jabuticabas e
a examinando desconfiado.
- Não são venenosas. São jabuticabas mesmo. – Herick pegou uma e colocou
na boca. – Peguei enquanto vocês estavam dormindo. Elas estão por todo o canto.
Dimas colocou a jabuticaba que tinha nas mãos na boca, Perla e eu
seguimos o exemplo sem perder tempo. Nossos estômagos famintos agradeceram a
ingestão de um pouco de comida.
- Mas é bom não comer muito – eu avisei. – Jabuticaba demais dá dor de
barriga, e não precisamos disso agora.
- Como é que você sabe? – Perla perguntou chupando mais uma jabuticaba e
cuspindo o caroço fora.
- Jabuticaba era a fruta favorita do meu irmão – eu disse. – Aconteceu
com a gente mais de uma vez. É sério, não é nada divertido
-E também temos que guardar um pouco. – Herick cuspiu um caroço. – Talvez
a gente só tenha isso para comer até amanhã.
A luz do dia foi sumindo aos poucos. Dimas estalou os dedos das mãos e
esticou as pernas. Ninguém mais tocou nas jabuticabas. Um farfalhar de folhas
nos fez virar, mas não vimos nada, o que não queria dizer que não tinha nada
lá.
- Eu estava falando com o Edie - Dimas começou -, e nós precisamos de
um...
- Plano – Herick completou. – Precisamos.
-É difícil saber como agir a partir de agora – Perla falou firme. -
Porque, sinceramente, o que é que se faz numa situação dessas? Gente, o mundo
acabou. Vocês conseguiram assimilar isso? É literalmente o fim do mundo. O que
é que se faz no fim do mundo?
Ficamos calados, sem resposta. Perla, enfim, falara. Não adiantava ficar
de rodeios ou elucidações elaboradas. O mundo tinha acabado, ponto. E nós
estávamos no meio daquilo, sem a menor ideia de como agir. A única certeza era
que não podíamos viver de jabuticabas.
- Acho melhor irmos por partes, senão enlouquecemos – eu tomei a palavra.
– Dimas estava falando, e eu concordo, que não seria uma boa ficar aqui por
muito tempo. Mas eu acho que hoje não temos alternativa. Já está escurecendo, e
pode não ser a melhor das ideias enfrentar a floresta à noite.
Todos concordaram com a cabeça.
- Aqui pelo menos vamos ter um lugar confortável para dormir – Herick
disse. – Mas é bom montarmos guarda durante a noite. Não temos visto muita
gente, mas eles estão por aí. A gente viu como a galera estava ficando louca, e
olha que só tinha acontecido o terremoto.
- Certo – Perla retomou a palavra. – Mas e amanhã?
- Começamos a andar – eu disse. – Precisamos encontrar gente, se unir com
a galera que sobreviveu. O mundo não acaba enquanto estivermos vivos. E acho
que todo mundo aqui está preocupado com a família, eu pelos menos estou.
Um silêncio incômodo pairou sobre nosso grupo. Sabia que estávamos
evitando pensar no pior, mas em algum momento tínhamos que tocar nesse assunto.
Pelo cenário que tínhamos ao nosso redor, o normal era pensar que nossos
familiares já eram. Mas o simples fato de estarmos vivos significava que eles
também podiam estar, e o próprio carro em que nos abrigávamos era uma prova de
que nem tudo estava destruído.
O rugido bestial que nos assombrou no início da tarde ecoou pela floresta
de novo. Dessa vez veio acompanhado de um derrubar de árvores abrupto e uma
violenta revoada de aves.
Olhamo-nos intrigados, escondendo uma pitada de pânico. No fim de tarde,
aquele som parecia mais amedrontador, e eu rezei silenciosamente para que ele
não se repetisse à noite.
- Se vamos ficar por aqui, é melhor acendermos uma fogueira – Dimas
quebrou o silêncio entre nós. – Quem vem comigo pegar a madeira?
Herick se levantou esfregando as mãos.
- Vamos antes que escureça.
18.
Herick e Dimas tinham se embrenhado na floresta há dez minutos quando um
farfalhar de folhas me fez virar abruptamente. Estava limpando um pedaço de
solo para instalarmos a fogueira e Perla estava dentro carro. O dia escurecera
totalmente e qualquer barulho me deixava desconfiado e alerta.
Me aproximei de onde o barulho parecia vir e o ouvi novamente. Eram pisadas fortes esmagando as
folhas ressecadas no chão. Apurei os ouvidos e ouvi sussurros, cochichos.
Desejei ter algo pesado nas mãos, algo que me desse uma sensação de segurança.
Foi quando os arbustos próximos se moveram violentamente. Dei passos
incertos para trás e uma luz foi jogada em meu rosto com uma velocidade
desnorteante. Tentei proteger meus olhos com as mãos, mas tropecei em meus
próprios pés e caí. Bati as costas com violência no chão e ouvi o murmúrio de
vozes explodir em um coro desenfreado e desconexo. Estava cercado.
Coloquei os joelhos no chão e, enquanto tentava me levantar, fui atingido
por um chute no meio das costas. Caí novamente, e dessa vez bati o rosto no
chão. Cortei a boca em uma pedra e senti gosto de sangue.
- Que porra é essa? – ouvi um rosnado em algum lugar acima de mim.
Levantei os olhos, mas no escuro só conseguia ver vultos indefinidos. – É um
pirralho.
- Sozinho? – um homem perguntou.
Rezei para Perla não sair da caminhonete. Algo se revirava dentro de mim
sabendo que nenhum deles seria cavalheiro com ela. Tentei me levantar de novo,
mas recebi um chute no rosto. Meu nariz explodiu num jato de sangue e eu caí de
barriga para cima.
Gargalhadas explodiram no ar da noite, e eu pude distinguir muito mal
cinco sombras me rodeando. Um flash de lanterna dançava de um lado para o
outro, mas não revelava o rosto de ninguém. Um dos homens se ajoelhou e
aproximou o rosto do meu. Senti cheiro forte de álcool. Ele babou em cima de
mim e tombou bêbado para o lado. Os outros riram.
- Edie? – Era Perla chamando. Ouvi a porta do carro se abrindo e meu
coração parou por um segundo. Um clima de excitação deixou os homens
silenciosos, mas eu sabia no que eles pensavam.
- Corre, Perla – eu gritei, rouco. – Sai daqui!
Outro chute no rosto quase me fez desmaiar. Os homens correram para
longe, só ficou o que me deixava imprensado no chão. Perla gritou no escuro,
mas os berros de êxtase dos trogloditas abafaram todos os outros sons. O homem
que me segurava riu com prazer e eu tentei me soltar. Ele me deu chutou no
estômago e forçou o pé contra meu pescoço. O ar fugiu de mim e não conseguia
retornar, minha cabeça doía, meus olhos saltavam.
- Ela é gostosa, amigo – meu carrasco disse, e ouvi Perla gritar de novo.
– Você não se importa de dividir ela com a gente, né amigo? É isso que os
amigos fazem...
Comecei a me contorcer no chão, mas o homem só intensificava o aperto.
Desesperado por ar e vida, agarrei o tornozelo dele e tentei removê-lo. Não
adiantou. E Perla gritou de novo, berrou, chorou.
- Pegaram ela, amigo – o homem falou, quase babando. – Ela é gostosa,
amigo. É gostosa.
Tomado por uma fúria que não conhecia, apertei o tornozelo do homem que me
aprisionava, apertei com toda a minha força. E o que aconteceu em seguida,
aconteceu de repente, num espasmo. Em um segundo, eu sentia o tornozelo dele em
minhas mãos, no outro, não. Minhas mãos trituraram os ossos da perna do sujeito
com a facilidade com que triturariam uma bolacha de água e sal. Um grito de dor
penetrante agrediu meus ouvidos, e o homem que me prendia desabou para trás.
Levantei a cabeça, sugando todo o ar que meus pulmões podiam aguentar, e vi o
homem caído no chão, se contorcendo em desespero.
O feixe de luz da lanterna se voltou para mim e os comparsas do sujeito
correram em minha direção. Como se estivesse esperando aquele momento o tempo
todo, me pus de pé num segundo, e me esquivei do soco desferido por um deles.
Agarrei seu braço com força e, na escuridão reinante, vi os pequenos holofotes
brancos que eram seus olhos se arregalarem. Levantei-o do ar com um impulso e o
joguei contra um de seus companheiros que corria para lhe dar cobertura. Os
dois se chocaram com um som oco e feio e caíram duros no chão.
Antes que eu pudesse me sentir maravilhado ou, o que era mais provável,
aterrorizado, um soco me atingiu no estômago, de surpresa, e eu caí sentado. Os
agressores avançavam contra mim quando Dimas e Herick surgiram das árvores
brandindo tocos de madeira e berrando. Os homens se viraram, e meus amigos
tentaram atingi-los com os pedaços de pau, mas não com habilidade suficiente. Os
crápulas se esquivaram e se livraram, embora Dimas tenha acertado um nas
costas.
- Malditos moleques – um deles berrou enquanto empurrava Herick no chão e
pegava seu pedaço de madeira.
Me levantei a tempo de ver Dimas atacando seu oponente, mas errando
novamente. O homem o chutou no estômago fazendo seu corpo se dobrar. O agressor
se voltou para mim e eu senti a estranha força que me fizera triturar o
tornozelo do outro cara me invadir de novo.
Foi quando um tiro foi disparado, inesperado, ruidoso. Ficamos em
silêncio após aquilo, todos nós, e com um novo farfalhar de folhas secas, um
grupo surgiu das árvores, feixes de lanternas nos iluminaram.
Os dois homens que eu nocauteara se restabeleceram e levantaram tontos. O
do tornozelo quebrado continuava gritando, histérico. Alguém se postou atrás de
mim, e eu senti um inebriante cheiro de suor e perfume. Arrisquei uma olhada
para trás e vi, à luz parca e tremeluzente, uma mulher linda. Os olhos verdes e
os cabelos pretos presos em um coque chamaram mais minha atenção, além do fato
de ela segurar uma arma.
- Solte o garoto! – um senhor de cabelos grisalhos, mas disposição
incontestável berrou. A arma em riste.
Um dos canalhas, o que estava às vias de atacar Herick, levantou as mãos
e se afastou. Sob os olhares atentos dos recém-chegados, os bandidos se
reuniram em um grupo acuado. Agora, sim, indefesos.
- Calma, meu velho – disse o que parecia o líder do bando, um sujeito
magricelo e asqueroso.
- Vão embora daqui – disse Cabelos Grisalhos com voz firme, sem abaixar o
revólver.
Herick levantou e se aproximou de Dimas. Um rapaz, que não parecia mais
velho do que nós, se postou atrás deles. Ele também estava armado.
- As coisas não são assim por aqui... – o magricelo disse, mas se calou
quando Cabelos Grisalhos atirou no chão, a menos de dez centímetros deles. Os
homens pularam de susto e lançaram um olhar raivoso para Cabelos Grisalhos, mas
ele não se intimidou.
Sem dizer mais nada, os homens nos deram as costas e se embrenharam na
floresta escura. Cabelos Grisalhos relaxou um pouco, mas não muito. Caminhou
até o homem caído, com o calcanhar estraçalhado. Ele ainda gritava.
- Minha perna – o homem gritou em agonia e apontou para mim. – Ele
quebrou minha perna. O desgraçado do garoto estraçalhou minha perna!
Cabelos Grisalhos olhou para mim por um momento. Seu olhar irradiava
tamanha força e paixão que quase me deixou tonto. Sem quebrar o contato visual,
ele apontou o revólver para o homem caído no chão. Ele gritou de surpresa e
Cabelos Grisalhos atirou. Arregalei os olhos ante o clarão azulado que se
seguiu ao estouro do revólver.
O homem já não gritava mais.
- Bem vindos à selva, garotos – disse Cabelos Grisalhos, guardando o
revólver em seu coldre.
Continua...
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