quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Livro: A Floresta (Cont.)

Então, os personagens principais estão aí. Outros mais vão aparecer ao longo da trama, mas Edie, Dimas, Perla e Herick são os que fazem A Floresta andar para frente. E já que eles já estão em cena, é hora do reflorestamento começar, o evento que vai mudar os rumos da história. Curtam.

J.C.

6.
Chamávamos a diretora da ETA de Jackie. Não era o nome dela, mas passou a ser, pelo menos entre os alunos. A origem do apelido não era conhecida, mas diziam que era uma alusão a Jack, o Estripador. Assim como o assassino inglês, nossa Jackie também era sedenta por sangue e miséria, deliciava-se com sofrimento e pesar. Podia ser exagero adolescente, mas Jackie era o mais próximo que tínhamos de um monstro real.
Jackie chegara à ETA com a missão de colocar ordem na bagunça generalizada que a escola tinha se tornado. Em outros tempos, encontrar os corredores vazios em horário de aula era quase impossível. A anarquia estava ganhando contornos reais entre os alunos de Albuquerque que se sentiam no direito de vandalizar, desobedecer e até bater. Tinha se tornado antológica a briga de socos entre um professor de Biologia e um aluno do segundo ano que o havia desrespeitado em sala de aula. Os dois tiveram ferimentos sérios, mas o secundarista levou a pior. O professor enfrentou um processo e ainda caiu em uma emboscada preparada pelo aluno perdedor, que junto com outros três amigos, o espancaram até deixá-lo quase morto. Tudo isso no estacionamento da ETA.
Quando Jackie chegou, até mesmo os mais revoltados sentiram um pouco de pena dela. Baixinha, era menor que a maioria dos alunos do primeiro ano, com um corpo quadrado e cabelos marrons e sem-graça. Todos acharam que ela ia ser engolida como aperitivo pelos alunos. Mas o que ninguém sabia era que Jackie tinha a mesma característica que faz os kamikazes serem tão perigosos: ela não tinha medo.
Gritava mais alto quando gritavam com ela, ameaçava com mais veemência. As palavras de Jackie doíam mais do que socos ou facas afiadas. Corriam pelos corredores casos de alunos que tinham deixando a sala dela aos prantos. Diziam que ela andava armada e não hesitava em atirar em qualquer um que tentasse lhe fazer mal. Ninguém sabia o que havia de verdade naquelas histórias, mas tamanha era a aura de terror que Jackie criara ao seu redor que todos acreditavam.
Dimas e eu não tínhamos muitas experiências com Jackie e estávamos mais do que satisfeitos com isso. Jackie nunca perdeu muito tempo conosco, se concentrava nos verdadeiros garotos-problemas da ETA, aqueles que pareciam caminhar ao som de Bad to the Bone. Mas aquilo estava prestes a mudar.
 Tínhamos sido levados para a sala dela sem nem saber o que estava acontecendo. Meus ouvidos ainda zuniam e minha cabeça parecia prestes a explodir. Lancei um olhar a Dimas, e vi que ele coçava insistentemente a orelha, como se para desentupi-la.
Não falamos nada, pois nada podia ser dito. Jackie não pareceu se importar. Permaneceu sentada, em silêncio, as mãozinhas quase infantis deitadas na mesa, como se estivesse querendo nos mostrar seu esmalte vermelho, as costas retas contra o encosto da cadeira dura e metálica.
Dimas se mexeu desconfortável, ele queria dizer alguma. Se eu o conhecia bem, sua língua devia estar coçando, suas cordas vocais vibrando em agonia. Dimas odiava silêncio, precisava desesperadamente de som. Não sei se Jackie tinha conhecimento disso, era impossível que tivesse, mas ela estava alongando aquele silêncio desnecessário com um sorriso paciente nos lábios. Esperava que um de nós explodisse. E antes que Dimas o fizesse da maneira errada, eu resolvi falar.
- Eu preciso que alguém veja minha mão – falei a primeira coisa que me veio à cabeça. – Eu me feri.
Mostrei a palma da minha mão esperando que o mísero corte que eu conseguira com minha queda pudesse impressionar. Um tiro no pé. Sem o filete de sangue que me fizera correr para o banheiro, o corte não era mais do que uma linha vermelha que parecia feita com lápis de cor.
- Você quer ir a um hospital por causa disso? – Jackie perguntou depois de uns segundos encarando minha mão.
- Pode infeccionar – eu forcei a barra, sabendo que estava me enrolando cada vez mais.
- Pode – ela disse. – Você pode perder a mão.
E sorriu como se gostasse da ideia. Escondi minha mão embaixo da mesa, tomado pela estranha sensação de que ela podia estar me jogando uma maldição.
- Como foi que você conseguiu esse corte? – Jackie olhava diretamente para Dimas, mas a pergunta foi dirigida a mim.
- Quando o vaso explodiu – menti de novo.
- Quando vocês explodiram o vaso – ela falou friamente.
- Não fomos nós – Dimas não conseguiu mais ficar calado. – A gente só estava lá, e foi sorte não ter acontecido nada mais grave. A gente podia ter se machucado, podíamos ter morrido.
- E o mundo ia ser um lugar mais triste sem vocês dois por perto, eu sei.
Jackie voltou a ficar em silêncio. Dimas olhou para mim como se para perguntar o que faríamos em seguida. Eu não tinha ideia. Balancei a cabeça de modo discreto, querendo sair imediatamente daquela sala.
- Eu vou expulsar vocês – Jackie falou por fim. – Os dois.
Arregalei os olhos e por um segundo pensei que tinha ouvido mal. Dimas permaneceu imóvel na cadeira ao lado, uma expressão árdua no rosto, como se entender aquelas palavras demandassem um tremendo esforço.
- Você não pode fazer isso – eu disse, gaguejando.
- Posso sim. E é o que eu vou fazer agora. Não tenho o menor interesse em ter vândalos entre os alunos da ETA.
- Mas a gente não fez nada – Dimas quase berrou. – Eu não posso ser expulso...
Um tom de medo se destacava na fala de Dimas, embora eu não soubesse por quê. Eu estava surpreso com aquilo tudo, mas medo era uma reação exagerada.
 - É realmente uma pena – Jackie disse. – Mas eu não posso dizer que vou me sentir mal quando os vir pelas costas. Indo embora, indo arrumar confusão em qualquer outro lugar que não aqui. Sabe, vocês são aquele tipo de aluno que se esforça para piorar. A progressão é sempre a mesma: atrasos, faltas, desrespeito, vandalismo, violência e, se tiver alguém que dê corda, assassinato.
 - Você está exagerando – eu gaguejei. – Nós não somos assim.
- São – ela respondeu impassível. – Vocês só estão esperando uma oportunidade, mas eu não vou dá-la a vocês.
- Eu não posso ser expulso. – Dimas recuperou a calma. – Por favor, eu vou perder o ano se eu sair daqui agora...
- É. É isso mesmo que eu quero.
- Desgraçada!
 Dimas deu um soco na mesa e por um momento eu pensei que as coisas fossem sair do controle. Jackie, que começara a escrever alguma coisa em um formulário, parou. Dimas a encarou com mais medo do que altivez.
– Eu não posso ser mandado embora...
- Calma, Dimas – eu comecei, mas ele me cortou.
- Eu não posso, não posso – ele berrou, suando em bicas. – Meu pai... Ele não vai gostar... Eu não posso estragar tudo... Ele vai ficar nervoso e...
- Seu pai nem vai perceber – Jackie interrompeu Dimas. – Ele está jogado na sarjeta a maior parte do tempo. Com certeza só se dá conta que tem um filho quando você limpa o vômito das roupas dele.
Dimas ficou de pé em um piscar de olhos. Sua cadeira deslizou para trás e caiu no chão com um estrondo que casou com baque do soco que ele deu na mesa. Tinha o diabo nos olhos, a musculatura do pescoço rígida.
- Você não pode falar assim comigo – Dimas berrava. – O que acontece na minha casa não é da sua conta, o que acontece com meu pai não é da sua conta!
Jackie não se moveu um centímetro ante a explosão de Dimas, apenas o encarou com desdém e frieza. Se ela sentiu medo ou mesmo surpresa em algum momento, não deixou transparecer. Quando voltou a falar, sua voz se manteve fria e ameaçadora.
- Eu falei o que não devia? – Jackie levantou-se, sem tirar os olhos de Dimas. – Os maus hábitos de seu pai eram segredo? Quer dizer, as bebedeiras, os espancamentos, os vexames...
- Cala a boca! – Dimas berrou, descontrolado. – Você não sabe nada sobre minha família.
Jackie sorriu cinicamente e um vento frio gelou minha espinha. A coisa ia ficar mais feia ainda.
- Que família? – ela perguntou. – A sua, que seu pai matou?
Dimas se lançou sobre a mesa, um rugido animalesco saindo de sua boca. Pulei de pé e consegui segurá-lo, mas ele já tinha batido o joelho na borda da mesa com força suficiente para derrubar alguns papéis e livros no chão.
- Eu acabo com você! – Dimas rugiu, apontando o dedo para Jackie.
- Cala a boca, Dimas – eu pedi. Os problemas já estavam sérios o suficiente.
Dimas estava com o rosto vermelho, eu sentia seu corpo queimar. Nunca o vira tão transtornado e não soube o que fazer. Ao mesmo tempo em que tentava acalmá-lo, ouvia repetidas vezes na minha mente o que Jackie acabara de dizer. Bebedeiras, vexames, nada daquilo era novidade para mim, mas espancamentos... Não, aquilo não podia ser verdade.
- Eu vou denunciar você! – Dimas berrou. – Para a Regional de Ensino, para o Ministério da Educação, para o Inferno que for. Você é quem vai sair desta escola.
- É incrível. – Jackie levantou-se calmamente. – Você pode mesmo ficar mais patético a cada minuto que passa. Duvido que você viva num mundo de virtudes, principalmente tendo o pai que tem, mas no mundo em que eu vivo existe uma coisa chamada mentira. E é isso que eu vou dizer que vocês estão fazendo: mentindo. Me caluniando pelo simples fato de eu tê-los castigado por um ato de vandalismo.
- Não... – Dimas balbuciou perdendo as forças e caindo sentado na cadeira. – Você não pode...
- Fazer isso – Jackie completou para ele, já perdendo a paciência. – Blá, blá, blá. Você pode repetir isso quantas vezes quiser, mas não vai mudar o fato de que eu posso, sim, fazer isso. Não só isso, mas o que eu quiser.
Dimas respirava ruidosamente, e eu percebi que permanecia de pé. Sentei-me um tanto constrangido. Meu coração parecia batucar uma canção do Olodum. Era estranho pensar que tudo aquilo tinha começado com uma ida ao banheiro para lavar um corte na mão.   
- Então, Dimas – Jackie continuou -, você já implorou, gritou, me ameaçou. Chorar é o próximo item da lista?
- Você está indo longe demais – eu falei, sentindo minha cabeça rodar.
Jackie sorriu e me encarou como se eu fosse um panaca interrompendo um valentão que estava importunando um CDF. 
- Você não pode falar assim com a gente.
- E como é que devo falar com vocês? – Jackie perguntou. – Com cautela? Com medo? O mesmo medo que eu vi nos olhos do professor que foi ameaçado por um aluno durante a aula? Com respeito? Respeito por vocês, que não respeitam ninguém, que não respeitam sequer as instalações da escola?
 - A gente não fez nada – Dimas começou. – Somos as vítimas aqui.
Jackie balançou a cabeça lentamente, não querendo acreditar no que ele dizia.
- Mas vocês são sempre vítimas. Vocês da Geração Buá Buá me dão nos nervos, sabia? 
- Não fomos nós – eu disse.
- Não foram vocês. Quem foi, então?
- Vimos uns caras saindo do banheiro – Dimas falou.
Jackie o encarou.
- Que caras?
- Eu não sei. Quer dizer, não reconheci nenhum.
- Droga. Vocês não odeiam quando isso acontece?
- É verdade – Dimas arrematou. – Não fizemos nada.
Jackie olhou para cima e suspirou como se estivesse cansada daquilo.
- Está bem.
Olhei para Dimas sem saber como reagir àquilo. Jackie fechou os olhos e jogou a cabeça para trás. Não precisava ser advinha para saber que Dimas estava louco para pular sobre a mesa e rasgar o pescoço da diretora.
- Certo – Jackie continuou. – Vocês venceram. Querem uma chance, eu vou dar essa chance.
- Chance? – perguntei, tão cauteloso como se estivesse andando num terreno cheio de cascavéis.
  - Com certeza vocês me acham cruel e intransigente, mas no fundo eu sou uma boa pessoa. Eu não quero ser responsável por um bêbado espancar o próprio filho por conta de divergências escolares.
Dimas se pôs de pé num segundo, mas eu o segurei pelo braço. Não era hora de retroceder.
Jackie não se deu conta da indignação de Dimas e levantou-se, sorridente. Agachou-se para pegar duas pastas que haviam caído durante a confusão. Li meu nome em uma delas. Eram nossos históricos escolares.
- Sintam-se honrados, eu vou fazer um favor para vocês. Eu podia jogar os dois para fora deste colégio ainda hoje depois de tudo o que aconteceu aqui. E seria um ano perdido, porque vocês não iam achar vaga em nenhum outro lugar, podem acreditar, eu ia cuidar disso. Mas estou pensando em reconsiderar.
Consegui sentar Dimas na cadeira. O corpo dele tremia violentamente, ele literalmente estava em ponto de ebulição. Seus punhos estavam cerrados e ele olhava fixamente para baixo, mantendo Jackie fora de seu campo de visão.
- Acabou o espetáculo? – ela perguntou. – Então vocês já podem me acompanhar.

7.
Jackie nos levou até a biblioteca, que ficava bem em frente à sua sala. A biblioteca estivera fechada para reformas por quase todo o ano. Fora um transtorno, principalmente para as salas que ficavam diretamente em cima dela, todo aquele barulho e confusão.
A obra fora concluída há dois meses, mas a biblioteca continuava fechada. Jackie pegou uma chave do molho que carregava no pescoço e abriu as portas de vidro, que estavam bloqueadas com folhas de jornal. Poeira, serragem e um cheiro de tinta fresca impregnaram o ar. Dimas espirrou.
- Entrem – convidou Jackie.
Entrei primeiro. A biblioteca tinha ganhado uma agradável pintura azul nas paredes, mas as janelas fechadas escureciam o local, tornando-o pouco convidativo. Um espirro atrás de mim avisou que Dimas entrara.
As prateleiras de livros estavam todas juntas em um canto, mas vazias. Os livros, com certeza, estavam nas caixas de papelão que se amontoavam por todo o chão. As cadeiras e mesas que usávamos para estudar foram substituídas por novas, que ainda estavam embaladas esperando para serem colocadas em seus lugares. Percebi instantaneamente que esse prazer seria nosso.
- A situação é a seguinte, rapazes – Jackie disse da porta. – Fora a explosão no banheiro deste bloco, houve outra, no banheiro perto da lanchonete.
Então foi esse o estampido que tínhamos ouvido antes. Um ataque simultâneo, a galera estava ficando profissional.
- Me digam quem mais está envolvido nessa palhaçada, e desconsidero a expulsão como castigo.
Não sabíamos se ela podia nos expulsar realmente por conta daquilo. Jackie não tinha provas  contra nós, ainda que estivéssemos no banheiro na hora da explosão. De qualquer jeito, nossa ficha na escola não estava tão limpa, e isso era um agravante.
- Mas a gente não fez nada, não sabe de nada – Dimas tentou de novo.
- Então vocês serão expulsos ainda hoje, e eu vou acabar descobrindo quem mais está envolvido, querendo vocês ou não.
Tentei me lembrar do rosto dos garotos que tinham passado por nós, mas foi inútil. Realmente não tinha prestado atenção em nenhum neles, e com certeza não os reconheceria se os visse de novo.
- Vocês podem pensar a respeito – Jackie continuou. – Vão ter muito tempo aqui.
Ela abriu os braços como se para apresentar o espaço da biblioteca e sorriu.
- Vamos reabrir a biblioteca na próxima semana, mas ainda tem muita coisa para fazer. – Ela apontou para as caixas de papelão. – Ali vocês vão encontrar livros, revistas, cadernos, enfim, um vasto material. Infelizmente, completamente desorganizado.
Suspiramos prevendo o que vinha a seguir.
- Separem os livros em ficção, não-ficção e didáticos. Depois por ordem alfabética, e por fim por autor. E claro, deixem em uma pilha separada os livros muito velhos, rasgados, sem capa, para que nós possamos restaurá-los.
Dimas olhou para as caixas espalhadas pelo chão da biblioteca, e com certeza pensou o mesmo que eu. Aquilo não era trabalho para uma manhã, se não fôssemos expulsos, Jackie ia nos escravizar por pelo menos uma semana.
- Não é ótimo? – ela caçoou. – As novas vertentes da educação chamam isso de Medida Sócio-educativa. Eu chamo de besteira. Rezo e espero pelo dia em que as palmatórias vão voltar a ter lugar de destaque nas salas de aula. Mas enquanto isso não acontece, ninguém pode me acusar de não tentar me adaptar aos novos tempos.
O sinal tocou indicando o final daquele horário. Ouvimos o rebuliço dos alunos no andar de cima, o arrastar das cadeiras. Pela porta aberta da biblioteca, vimos alguns alunos descendo as escadas, se dirigindo para a próxima sala ou para a quadra de esportes. Jackie fechou a porta, para voltar a ter nossa atenção.
- Comecem a fazer o trabalho de vocês – ela disse. – E nem pensem em sair.
- E se precisarmos ir ao banheiro? – Dimas perguntou, fazendo-se de engraçadinho.
Jackie fechou a cara e apontou para as caixas de papelão. Dimas sentou em uma das cadeiras novas e puxou uma caixa para si.
- Podemos, pelo menos, abrir uma das janelas? – perguntei.
- Fiquem à vontade – Jackie respondeu, abrindo a porta novamente e se virando para sair. - Eu volto no fim da manhã para saber a decisão de vocês. Bom trabalho.
Ela sorriu e saiu, fechando a porta ao passar. Dimas ergueu o dedo médio para ela e empurrou a caixa de papelão para o lado. Corri para abrir a janela e deixar correr um pouco de ar por aquele lugar abafado. O barulho dos alunos foi morrendo enquanto eles entravam nas salas. Voltei-me para as caixas de papelão, tinha trabalho a fazer.
 
8.
Dimas e eu começamos a separar os livros. Contamos ao menos trinta caixas, todas elas cheias até a boca. Pensamos em um jeito de agilizar o trabalho, acreditando que os livros já teriam, mesmo nas caixas, algum tipo de organização. Mas estávamos errados. O que Jackie dissera era a mais pura verdade, tudo estava na mais completa desorganização. Decidimos, então, trabalhar um de cada lado da biblioteca. Dimas ficou responsável pelas caixas que estavam perto da porta e do balcão, e eu peguei as demais.
- Essa mulher devia era ter vergonha de deixar os livros desse jeito – reclamou Dimas entre um espirro e outro. – Deixem em uma pilha separada os livros muito velhos. É melhor colocar tudo para restaurar.
Ele jogou um antigo livro de Monteiro Lobato na pilha dos livros danificados. Estava sem capa e com as folhas soltando. Eu também encontrara muitos livros naquela situação, sem falar nos que estavam riscados, com folhas faltando ou simplesmente sujos.
Terminei com uma caixa e a joguei em cima das outras vazias, que graças a Deus começavam a se amontoar, mas ainda eram poucas para a quantidade que ainda nos aguardava. Dimas levantou com um resmungo e alongou as costas. Ouvi o estalo e me arrepiei. Dimas estalava todas as partes do corpo, e não era um estalido, era um som penetrante, parecia que ele estava quebrando alguma coisa. Ele pegou uma pilha de livros do chão e levou para cima do balcão, onde estávamos separando temporariamente as edições por ordem alfabética.
- Que horas são, hein? – ele me perguntou, encostando-se ao balcão.
Peguei o celular no bolso e vi que eram dez e vinte da manhã. Disse isso para ele.
- E não acabamos nem metade dessa porcariada.
- Não fale assim dos livros – eu disse, professoral - Eles são pérolas de sabedoria.
- Pois sim – ele disse. – O que eu sei é que não vamos acabar isso hoje, e aquela desgraçada vai fazer a gente voltar aqui. E o pior, à tarde. Ou você acha que ela vai deixar a gente continuar faltando às aulas?
Quase não ouvi o que ele disse, pois tinha acabado de abrir uma caixa com revistas e cadernos de exercícios. No geral, essas caixas eram boas, pois as deixávamos de lado para nos concentrarmos nas que tinham livros. Mas um rosto particular me chamou atenção na capa da revista que vinha em cima de todas as outras. Era meu pai.
Lembrava vagamente do dia em que ele fotografou para aquela capa. Foi uma festa lá no sitio, que começou como almoço, virou jantar, e ficou gente até para dormir. Ele foi entrevistado por ser o único brasileiro diretamente relacionado com a instalação de uma base americana de projetos experimentais no Brasil. Meu pai era um engenheiro eletrônico muito laureado, com pesquisas reconhecidas internacionalmente, e foi pessoalmente convidado pelo Governo americano para ser parte ativa do projeto.
- Ei, está me ouvindo? – Dimas me trouxe de volta.
- Não, desculpe – eu disse, e levantei a revista. Ele se aproximou e reconheceu meu pai.
- Caraca. Das antigas, hein? – ele falou, sentando do meu lado e pegando a revista.
- Nem tanto. Três anos, três anos e meio...
- É, eu me lembro...
Dimas folheou a revista, com descuido, até chegar à matéria de capa. A foto da base de testes, com suas construções encimadas por antenas e radares, ilustrava a reportagem sobre o começo das atividades do Projeto Canário. Meu pai aparecia na página seguinte, uma legenda embaixo da foto o identificava: Dalton Petrucelli, engenheiro eletrônico brasileiro que comandará equipe internacional.
- Nunca deu certo – disse Dimas baixinho.
- Ele chegou a trabalhar antes da base ser fechada. Trabalhava muito, quase não parava em casa. Mas depois que aquele cara abriu fogo contra os soldados, a base degringolou de vez.
- É, eu lembro – Dimas falou sério. – Ninguém nunca soube o que aconteceu. O cara só chegou lá com a arma e atirou em todo mundo. Matou quantos, mesmo?
- Seis. E depois se matou. Ele era soldado também.
- Tio Dalton estava lá no dia, né? – Dimas perguntou. Eu confirmei com a cabeça. – Ele nunca falou nada sobre esse cara? Por que ele saiu atirando em todo mundo?
- Ninguém nunca soube – falei. – O cara enlouqueceu, só isso. Mas a confusão foi tanta que eles acabaram fechando a base uns dois meses depois.
Meu pai ficou arrasado na época, até porque foi logo depois do desaparecimento de Jô. Parecia um encadeamento de desgraças. Primeiro, ele ficou de cama, depois passou a sumir sem dizer aonde ia, voltando cansado, sujo, um ar de desespero. Eu ficava lá, tentando segurar as pontas, mas de um lado minha mãe continuava inconformada com o sumiço de Jô, e do outro, meu pai estava a um passo de uma depressão pesada. Até que a corda rompeu, meu pai saiu de casa, minha mãe virou a melhor amiga dos remédios tarja preta e o resto é história.
- Acha que seria bom eu levar isso para ele? – perguntei para Dimas.
Ele não pareceu ter gostado da ideia. E acho que nem eu. Seria relembrar uma época que ele, até hoje, se lamenta de ter acabado. E no mais, duvidava que ele já não tivesse a reportagem guardada.
Resolvi levar a revista mesmo assim, se não desse para meu pai, ficaria com ela. Era legal ver Dalton Petrucelli numa capa de revista.
  - É melhor continuar com isso – eu disse a Dimas, puxando outra caixa para perto de mim.
Ele se levantou, concordando com a cabeça, e foi para seu lado da sala. Retirei os livros da caixa e já os estava separando quando a porta da biblioteca se abriu e Jackie entrou mais uma vez com ar triunfante. Vinha acompanhada de um rapaz cujo rosto não me era estranho, mas eu não conseguia me lembrar onde eu o tinha visto antes. Era um tipão comum, com uma barba rala e os cabelos cortados rentes ao crânio. Havia dobrado as mangas da camisa para mostrar os músculos do braço. E era só nos braços que ele tinha músculos, o corpo era magro e as pernas finas.
O que seria de mim sem as bombas – pensei – e ri. Me virei para Dimas para dizer alguma coisa, mas meu amigo encarava o novo garoto com interesse, muito concentrado.
 - Edgard, Dimas, companheiro novo – disse Jackie, já fechado a porta. – Ensinem para ele o trabalho. É sempre um prazer, Herick.
- O prazer é todo meu – retrucou o rapaz, com má vontade e ironia.
Herick se virou para nós com um sorriso simpático.
- Estamos todos de castigo, então – ele disse com um sorriso, se aproximando.
- Se você só está de castigo – eu falei -, está numa situação melhor do que a nossa.
- Duvido muito – o garoto respondeu, passeando os olhos pela biblioteca. – Então esse é o trabalho, arrumar livros? A Jackie está perdendo o jeito. Já foi pior.
- Ela ameaçou nos expulsar – eu comentei, enquanto voltava para meu lugar.
- Então, provavelmente, ela vai – o garoto respondeu sem parecer se importar.
- Não vai, não – Dimas falou de repente.
Ele tinha se afastado. Estava sentado no balcão, olhando diretamente para Herick.
- Bom para vocês, então – o garoto respondeu.
- Não tanto para você – Dimas rebateu.
Fui para perto de Dimas.
- Do que você está falando?
- Foi ele que te derrubou hoje mais cedo. É por causa dele que estamos presos nesta biblioteca a manhã inteira.

9.
Demorei um pouco para entender do que Dimas estava falando, mas uma olhada mais atenta no rosto de Herick me fez lembrar que ele era um dos garotos que eu vi saindo correndo do banheiro. Devia ter percebido antes que tinha visto o rosto de Herick recentemente, pois era péssimo em fisionomia. Se o visse no dia seguinte, até a sensação de familiaridade teria sumido.
Herick olhava para Dimas e depois para mim, a expressão confusa, como se estivéssemos falando em uma língua desconhecida.
- O que foi? – Herick perguntou, se voltando para Dimas enquanto eu me afastava para perto das caixas vazias.
Dimas pulou do balcão e foi em direção a Herick. Jackie tinha transformado Dimas numa bomba-relógio com toda a situação em sua sala, e como ele não explodira com ela, poderia explodir com qualquer um. E pelo rumo daquela conversa, seria com o garoto que acabara de chegar. Corri até eles para evitar que aquilo acontecesse.
- Foi que sua brincadeira idiota deixou nós dois presos nesta droga de biblioteca a manhã inteira.
Herick ainda parecia confuso, mas tinha algo mais naquela expressão. Desdém, graça.
- Eu não sei nem do que vocês estão falando. – disse Herick dando as costas para Dimas e indo em direção ao balcão.
Dimas me lançou um olhar cheio de significado, e eu tentei pedir que ele se acalmasse, mas não consegui falar nada, só balançar a cabeça em negativa.
- A gente estava no banheiro aqui de cima quando a sua bomba estourou - eu expliquei. – Para a Jackie, nós somos os culpados.
Herick colocou de novo o sorriso na cara e sentou em uma das caixas.
- Isso é clássico – disse ele. – Eu sinto por vocês, mas o mundo é assim. Alguns têm sorte, outros não têm.
- Então foi você mesmo? – Dimas quis saber.
Herick balançou a cabeça, negando.
- Não interessa. Se para ela foram vocês, paciência.
- Paciência? Você não ouviu o que o Edie disse? Ela ameaçou nos expulsar! – Dimas falou, o dedo em riste. – Disse que vai cuidar pessoalmente para que a gente não seja aceito em outro colégio, pelo menos até o ano que vem. Eu não duvido que ela faça isso. – E elevou a voz. – E mesmo que não faça, colocar todos esses livros em ordem é trabalho para mais de uma semana, e eu não vou ficar preso aqui dentro enquanto você fica passeando pelo colégio com essa cara de imbecil.
- Calma, Dimas – eu tentei.
- Não. Esse filho da mãe está rindo da nossa cara, nos fazendo de idiotas! Eu não vou ficar calmo!
Herick levantou-se, fingindo cara de surpreso, e deu passadas largas em direção a Dimas, que não recuou.
- E vai fazer o quê?
- A Jackie só está esperando um nome, amigo – Dimas disse. – É Herick, não é? Não vai ser difícil falar para ela.
- Ela não vai acreditar! No muito vai achar que vocês estão querendo jogar a culpa em cima de outra pessoa...
- A gente já está no fogo. E vai ser muito bom levar você com a gente.
- Eu digo que é mentira – Herick continuou. – Digo que nunca vi vocês.
- Será que uma pancada refresca sua memória? – Dimas deu um esbarrão no ombro de Herick. Ele cambaleou para trás e teve que apoiar as mãos no chão para não cair sentado.
Herick levantou com um impulso e partiu para cima de Dimas, que o estava esperando. Com o corpo curvado, Herick se jogou contra Dimas, atingindo-o no peito. Dimas recuou um pouco, mas já estava preparando um soco, quando eu o agarrei pelas costas e o joguei para trás. Dimas se chocou contra as caixas de papelão vazias e Herick soltou uma gargalhada.
- E você vai querer um pouco? – ele me perguntou.
- Cala a boca – eu rebati, nervoso. – E é melhor os dois pararem com essa palhaçada. Todo mundo aqui já está com problemas suficientes, não precisam arranjar mais.
Dimas levantou-se, deixando as caixas amassadas, algumas rasgadas, no chão. Arrumou o cabelo com os dedos e se juntou a mim. Agora estávamos os dois encarando Herick.
- O que foi que você fez? – eu perguntei para Herick. – Por que a Jackie te mandou pra cá?
- Não foi por causa da explosão nos banheiros, pode ter certeza – ele respondeu, cruzando os braços. – Ela nem sabe e nem vai saber.
- Não vai me dizer que você tem medo dela... – Dimas provocou.
- Eu não quero mais confusão, só isso. Pessoalmente, não vejo a hora de dar as costas para essa escola desgraçada, mas se vocês acham que eu vou entrar na sala da Jackie e entregar minha cabeça numa bandeja, vocês são mais burros do que aparentam. – Herick sorriu. – E olha que vocês aparentam muita burrice. Burrice suficiente para serem pegos por algo que nem fizeram.
- Já deu – disse Dimas, passando por Herick, o empurrando com o ombro.
- Aonde você vai? – perguntei, cansado.
Dimas continuou andando, e só parou para responder quando estava com a mão na porta.
- Vou falar para Jackie que a gente não precisa mais ficar aqui. Ela não queria o responsável? Pois nós já encontramos.
Herick se virou para correr atrás de Dimas, mas antes que ele pudesse mover um músculo, ou eu pudesse, ou mesmo Dimas, aconteceu. O chão da biblioteca tremeu sob nossos pés com uma violência inacreditável, era como se Deus tivesse agarrado o prédio nas mãos e o sacudido de um lado para outro.
Caí de costas sobre as caixas de livros e senti uma pontada nas costas. Gritos vinham de todos os lados, principalmente do andar de cima, das salas de aulas. Consegui ter um lampejo de Herick sendo arremessado para o outro lado da biblioteca, se chocando contra as prateleiras vazias, que desabaram.
Com mais um último tremor violento, o chão parou no lugar. Fiquei deitado, incapaz de me mexer, a incredulidade e o pânico tomando conta de mim. Os gritos histéricos e desesperados não haviam parado no andar de cima, nem em qualquer lugar. Da rua, dava para ouvir buzinas de carro e berros.
- Edie! – era Dimas me chamando, mas outro som se sobrepôs a sua voz. Observei o teto recém-pintado da biblioteca e vi uma enorme rachadura se formar, praticamente dividindo-o ao meio.
Fiquei surdo para todo resto, só conseguia ouvir o teto trincando, rachando, prestes a cair. O corre-corre no andar de cima só piorava a situação. Ouvi os tijolos estalarem mais uma vez, e uma parte do teto cedeu. Gritos no andar de cima.
- Vamos sair daqui – eu gritei, tentando me apoiar nas caixas para me levantar, mas sem ter sucesso. Outro pedaço do teto se soltou e quase atingiu minha cabeça. Eu berrei.
- Edie – ouvi de novo, e a mão de Dimas apareceu na minha frente. Eu me agarrei nela e me levantei.
Dimas tinha um corte na testa, e o rosto machado de sujeira. Olhava para mim com os olhos arregalados e confusos.
- O que foi isso?
- Não sei, mas a gente tem que sair daqui.
Mal acabei de falar e o teto cedeu mais um pouco. Um cano estourou e a água começou a inundar a biblioteca.
- Me tira daqui – Herick gritou. Tínhamos nos esquecido dele.
Corremos até ele. Herick estava com as pernas presas embaixo das prateleiras. Gritava de dor.
- Tira. Me tira daqui!
Com outro estalo ensurdecedor, a metade do teto que tanto ensaiava, cedeu de vez. Chocou-se contra o chão com um baque que nos fez tapar os ouvidos. Uma chuva de cadeiras e carteiras vindas da sala de aula que nos encimava caiu sobre nós.
Olhei para o buraco no teto e vi que o andar superior estava vazio, pelo menos a sala de aula que ficava em cima da biblioteca já tinha sido desocupada.
- Ajuda, Edie. Temos que sair logo daqui – Dimas gritou, já removendo uma das prateleiras que prendiam Herick.
Juntei-me a ele e removemos as outras, sempre de olho em mais desabamentos e já completamente molhados. Herick berrou de dor e alívio quando conseguiu se arrastar para longe das prateleiras, no mesmo momento em que ouvimos uma explosão ruidosa. Mais gritos vieram do lado de fora.
- A lanchonete? – Herick perguntou confuso enquanto o ajudávamos a se levantar. – Foi a lanchonete? O que é que está acontecendo?
- Vamos sair logo – eu disse.
Com Herick se apoiando em nós, andamos o mais rápido que podíamos para a porta, enquanto a parte que restava do teto trincava e desabava.
Dimas abriu a porta e, quando saímos, estávamos no meio de um mar de gente. Os alunos histéricos corriam para cima e para baixo nos corredores, falando ao celular, gritando pelos amigos, chorando.
- É melhor ir para o pátio – eu gritei para ser ouvido. – O prédio está desabando.
Como se para confirmar isso, o teto estalou com a força de um trovão e tudo começou a desmoronar. Aos berros, os alunos correram para o pátio, e nós praticamente fomos arrastados pela multidão. Vi pessoas sendo pisoteadas pelo caminho e ouvi gritos. O teto começou a cair em nossas cabeças.
Nem bem colocamos os pés no pátio e o prédio principal da escola estalou mais vez, como se dando seu último grito agonizante, e ruiu. O andar superior desabou, destruindo as estruturas do andar térreo. Caído no chão, junto com Herick, Dimas e outras tantas pessoas, eu ouvi impotente os gritos dos que não conseguiram sair.
E isso foi só o começo.

10.
O pátio do colégio parecia um campo de refugiados. Vi alunos e professores misturados e confusos, com as roupas rasgadas e os corpos sujos. Os gritos e lamentações eram pavorosos e patéticos, e eu via em flashes e passadas rápidas pessoas que eu conhecera no primeiro e no segundo ano. Mas de alguma forma eles pareciam diferentes, não mais velhos ou mais altos, mas diferentes. Eu os estava vendo em um momento de dor e perda, e isso mudava a percepção que temos das pessoas.
Com a ajuda de Dimas, levantei Herick do chão, não era seguro ficar deitado ali. Ainda não conseguia tirar da cabeça as pessoas sendo pisoteadas.
- Alguém liga para os bombeiros! – uma voz de garota gritou. – Tem gente embaixo dos escombros. Tem gente!
Alunos do segundo e terceiro anos se aproximaram do prédio destruído, mas não chegaram muito perto. Parecia que estavam com medo de cair de um precipício.
- Olha lá! – Herick apontou para a parte baixa do terreno da escola.
Labaredas de fogo descomunais crepitavam em direção ao céu, destruindo o lugar que, até meia hora atrás, era a lanchonete. Os estudantes da ala lá debaixo corriam frenéticos para se juntar a nós, no pátio. O fogo cercava os que ficavam para trás e já espreitava as salas de aula. As coisas no pátio não estavam melhores. Com a chegada de mais pessoas, o espaço ia ficar mais apertado e seria impossível conter toda aquela gente.
- Aconteceu em todo lugar! – gritou alguém, se sobrepondo à algazarra geral.
Tentei encontrar a pessoa com os olhos, mas era impossível, eu mal conseguia me mexer com tanta gente a meu lado. As buzinas e os gritos eram a música de fundo de toda aquela cena, como se para mostrar que a cidade estava pegando fogo.
- Ali! – gritou Dimas, e eu lancei o olhar para onde ele apontava.
Um rapaz subira em um dos bancos de concreto perto da quadra de esportes. Eu o conhecia. Sempre aparecia nas salas falando sobre o Grêmio Estudantil, as feiras de ciência e outras coisas. Mesmo de longe, vi que ele tinha uma feia mancha vermelha em uma parte do rosto, e me perguntei se ele teria se queimado no inferno lá de baixo.
Gritos pedindo silêncio e calma pipocaram da multidão, enquanto o rapaz estendia os braços pedindo calma. Aos poucos, o buchicho foi morrendo, mas não cessou.
- Eu consegui falar com o pessoal de casa – ele berrou para a multidão. – A cidade está um caos. O terremoto destruiu muita coisa.
Nova onda de rumores encheu o pátio, alguns gritos de desespero se elevaram. Terremoto, ele dissera. Era a ideia mais lógica, mas por que ela me parecia errada?
- Não foi só aqui – ele continuou. – Vários lugares do mundo foram atingidos por esses tremores, não se sabe ainda...
- É Deus! – uma voz se elevou da multidão.
Era Gustavo Sempra, o garoto mais religioso que eu já conheci na vida. Ele comandava um grupo de orações na hora do intervalo e no fim das aulas. Me convidara para algumas dessas sessões logo após o desaparecimento de Jô. Fui, mas não permaneci. E um dos motivos foi por ele ser tão passional.
- Deus manda os sinais faz tempo – ele continuou. – Ele já destruiu o mundo com água, e agora vai destruir com fogo. E só os que acreditam na palavra vão ser salvos.
As palavras de Gustavo incitaram a multidão, e começou um empurra-empurra generalizado. Olhei para Dimas, que parecia em estado catatônico com tudo aquilo e segurei Herick com mais força, já que ele era o mais propenso a cair.
Do alto do banco, o rapaz do Grêmio Estudantil tentou acalmar os ânimos, mas sua voz não era mais ouvida.
Um trovão estourou de repente, e um grito uníssono saiu da multidão. Senti os pelos dos meus braços arrepiarem.
Vai começar de novo, eu pensei.
Tentamos nos afastar da multidão, achar um lugar onde pudéssemos sentar, descansar, pensar naquilo tudo. O pátio do colégio ainda estava cheio, e achar um ponto deserto ou mesmo vago para nós três era tarefa quase impossível.
Mesmo com o desabamento e o terremoto, o que mais me preocupava no momento era minha mãe. O sítio ficava afastado da cidade, e ela não saberia lidar com aquela situação, não teria a quem recorrer.
Peguei meu celular no bolso e vi que o sinal estava fraco. Disquei o número de casa. Ninguém atendeu. Dimas estava fazendo a mesma coisa, ou pelo menos tentando. Mexia o celular de um lado para outro, mas parecia com problemas.
- Sem sinal – ele me disse, desanimado.
- Usa o meu – entreguei.
Ele discou o número e esperou. Encontramos um espaço vago no gramado central e nos sentamos. Alunos de todos os anos e turmas se espalhavam por ali, alguns deitados, outros sentados. Pegava fragmentos de conversas aqui e ali, mas nenhuma delas fazia eu me sentir melhor.
- É o aquecimento global. Tava para acontecer uma tragédia dessas...
- Terremoto aqui... Isso nunca aconteceu, gente...
- Cadê os bombeiros, eles deviam vir para cá....
- Tem a maior galera lá na lanchonete, tentando apagar o incêndio. Eu que não vou para lá, vai que tem outra explosão...
Descansei a cabeça nos joelhos e tentei pensar. Aquilo tudo parecia irreal. Em um momento, estávamos brigando na biblioteca, e no outro, o mundo tinha virado de cabeça para baixo. O cara do Grêmio Estudantil disse que outros lugares tinham sido afetados, mas nunca tinha ouvido falar de terremotos simultâneos. Com certeza era outra coisa.
- Nada – disse Dimas, me entregando o celular. – Caixa postal.
- Esse terremoto deve ter botado fogo na cidade – Herick falou. – Duvido que exista um plano para lidar esse tipo de tragédia.
Dimas concordou com a cabeça.
  - É melhor a gente se mandar. Não tem muito sentido ficar por aqui.
Olhamos ao redor e vimos muitas pessoas abandonando o pátio. Algumas iam para os fundos do terreno, onde ficava o muro que os alunos pulavam quando queriam matar aula, e que a essa altura já deviam estar no chão. Outros se aventuravam por cima dos escombros do prédio principal para saírem pela porta da frente.
Ir embora parecia ser mesmo a coisa mais lógica a se fazer. Não ficaríamos sabendo de nada parados ali, não sem celulares e internet. E ainda tinha o fogo na ala de baixo, alguns voluntários conseguiram controlar o incêndio momentaneamente, mas um sopro de vento mais forte reavivaria as chamas prontamente. Sem falar no risco de novas explosões.
- Mas iríamos para onde? – Herick perguntou.
- Tentar encontrar alguém. Polícia, bombeiros... Saber o que aconteceu, chegar em casa – eu disse. – Não conheço bem os procedimentos pós-terremoto, mas acho que temos que continuar vivendo.
- É – Dimas respondeu.
- Vocês vêm? – eu perguntei, me levantando.
Dimas levantou imediatamente, mas Herick pensou um pouco. Não sei por que o esperei tomar uma decisão se podia ir embora com Dimas. Mas esperei. Não só eu, Dimas também aguardava.
- Vocês me ajudam a levantar? – Herick pediu.

11.
Abrimos nosso caminho pela multidão que diminuía, mas continuava ruidosa. Herick já caminhava sozinho, mas reclamou de termos que andar até o outro lado do terreno para pular o muro, no lugar de simplesmente passarmos pelos escombros.
Seria mais rápido do jeito dele, sem falar que sairíamos direto na avenida principal. Mas a imagem dos alunos sendo pisoteados ainda não saíra da minha cabeça, e passar por cima dos escombros seria o mesmo que passar por cima deles, e isso eu não queria.
Conforme andávamos, percebíamos que os ânimos estavam se acalmando, mas eu ainda tinha o estranho pressentimento de que alguma coisa estava por vir.
Passamos pela quadra coberta, onde uma grande quantidade de alunos estava reunida. As arquibancadas já não tinham lugares vagos, e bem no topo de uma delas vi Gustavo falando energicamente para um grupo atento.
No meio da quadra, Alonzo tentava acalmar os alunos com sua voz grossa e firme. Pela primeira vez parei para pensar nos professores. Olhei em volta e reconheci poucos deles entre a multidão, murchos, talvez mais perdidos que os próprios alunos que buscavam neles repostas e refúgio.
- Será que a Jackie conseguiu sair do prédio? – eu perguntei para meus companheiros, que interromperam uma conversa amena. Eles me olharam como se também tivessem pensado naquilo pela primeira vez desde o início da confusão.
- Tomara que sim – Herick disse. – É estranho, não é? Há dez minutos eu achava que não me importaria se ela caísse morta. Agora eu só...
- Reza para que ela tenha se salvado – completou Dimas. – Eu sei.
Continuamos nosso caminho descendo as escadas que davam na ala inferior. O fogo na lanchonete já fora controlado, mas não extinto. O risco ainda era iminente.
Não tinha quase ninguém naquela parte do terreno. Alguns alunos ainda observavam vigilantes os restos da lanchonete. O pavilhão das salas de aula não parecia ter sofrido muitos danos, pelo menos nada comparado ao nosso prédio. Vi portas e janelas soltas e pedaços do teto haviam desabado, mas era só.
- Edie! – ouvi alguém gritar meu nome. – Dimas!
Perla vinha descendo as escadas correndo. Tinha os cabelos despenteados e um corte no lábio inferior, mas parecia inteira. Respirei aliviado e feliz ao vê-la.  Ela me abraçou com força. Tremendo.
- Tudo bem? – eu perguntei, afagando seus cabelos.
Ela fez que sim com a cabeça, ainda agarrada a mim. Não sei por quanto tempo ficamos assim, até que ela se afastou.
- Eu gritei por vocês lá em cima – ela disse. – Não ouviram?
- Foi mal – Dimas falou, e ela lhe estendeu a mão, sorrindo. Ele a apertou.
- Onde é que vocês estavam? Não foram para a sala...
- Longa história – Herick entrou na conversa.
Perla o olhou sem dar nenhum sinal de que o conhecia.
 – Herick – ele se apresentou .
Um apito soou. Olhamos ao mesmo tempo para a quadra, onde uma confusão se formara. Uma briga, ao que parecia. Alonzo correu para o meio do bolo de alunos tentando separá-los. Um garoto acertou um chute nele, e a coisa se complicou. Um urro de indignação tomou a quadra e o pessoal que estava nas arquibancadas desceu para a briga.
- Vai rolar morte ali – Herick falou, recuando alguns passos.
O apito de Alonzo soou de novo e ele reapareceu segurando o rapaz que o tinha chutado pela nuca. A gritaria continuou, mas os focos de briga se dissiparam, ou pelo menos deram um tempo. A galera que tomava a quadra parecia ter se dividido em dois grupos, e tal qual o fogo da lanchonete, podiam ser reavivados a qualquer momento.
- A gente está saindo – eu disse para Perla.
- Para onde?
- Só saindo. Ir procurar alguém, quero ver se consigo falar com a minha mãe. Os celulares...
- Inúteis, eu sei. Alguns ainda estavam funcionando até agora há pouco. O Breno conseguiu falar com o pai logo depois do terremoto.
- Breno?
- É, o cara que subiu no banco. O do Grêmio Estudantil.
 - Ele falou que tremores aconteceram em outros lugares também, não foi isso? – Herick perguntou.
- Aparentemente – Perla respondeu. – Ele falou muito rápido com o pai. Parece que a TV mostrou algumas imagens da Ásia, dos Estados Unidos. Uma outra garota, que não conheço, também conseguiu contato por celular. A mãe dela está no Rio, e falou de um tsunami.
- Por isso que a gente está saindo... – eu falei. – Pode estar surgindo muito história, coisa que não é verdade. O pânico faz isso. Ficando aqui dentro não vamos saber o que está acontecendo. Tem uma loja de eletrônicos logo ali na avenida. Entramos, achamos uma televisão, todas as emissoras devem estar falando disso.
- Algumas pessoas ainda estão esperando a polícia, os bombeiros – Perla disse.
- Eu duvido que eles venham agora - Dimas rebateu. - Se metade das histórias que você contou forem verdade, não vai ter gente suficiente para o serviço.
Perla se esqueceu que estava com o lábio inferior ferido e o mordeu. Soltou rápido com um silvo de dor. Ela sempre mordia o lábio quando estava pensando em algo, era um charme.
- Como você arranjou isso? – Herick perguntou, apontando para o lábio ferido.
Perla passou um dedo pelo lábio inchado para verificar se a mordida tinha feito ele voltar a sangrar. Mas estava tudo bem.
- Alguém bateu em mim – ela disse, enfim. – Na confusão para descer as escadas. Só vi quando me deram um murro, eu quase caí.
Me arrepiei ao pensar em Perla caída no chão, sendo pisoteada por centenas de alunos correndo para salvarem as próprias vidas. Cheguei perto dela e a abracei pelos ombros. Ela me sorriu agradecida, mas surpresa.
- Então, já vamos? – Dimas quis saber.
- Vamos – eu respondi, olhando para Herick que concordou com a cabeça. – Vem com a gente? – perguntei para Perla.
Ela olhou para nós, e percebi que ela estava com medo. Todos nós estávamos. Lançou mais um olhar para a quadra, que continuava em ponto de ebulição, antes de responder:
- Vou.

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