quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Livro: A Floresta (Cont.)


12.
Ao contrário do que eu pensava, o muro ainda estava lá, mas já não era o mesmo. O tremor o tinha deixado bambo, frouxo. Escalá-lo ia ser mais difícil, já que podia acontecer um desabamento a qualquer momento.
Herick passou primeiro, e vendo-o naquele momento ninguém diria que três prateleiras haviam caído sobre suas pernas. Ele ergueu o corpo com as mãos e colocou os pés em cima do muro, com a habilidade de quem já fez muito aquilo. Em menos de meio minuto ele já havia passado.
- Podem vir, caras. O muro aguenta – Herick gritou do outro lado. – E rápido, as coisas não estão boas por aqui.
Fui o último a pular para o outro lado. Caí em uma rua secundária, estreita, com o comércio formado basicamente por distribuidoras de bebidas, lanchonetes populares e bares.
Geralmente a visão daquela rua nos dava uma sensação boêmia e feliz, mas agora, tudo estava destruído. A coisa que mais me chamou a atenção foi o carro capotado em frente a um bar. Uma trilha de pessoas mortas deixava a calçada sangrenta e nos transportava diretamente para dentro de um filme de terror. A maioria das lojas estava com as portas fechadas. Os donos e os funcionários com os braços cruzados, sentados nas calçadas, chorando compulsivamente, gritando descontrolados ou simplesmente com o olhar perdido, em choque. Outro carro havia entrado de bico em um bar e se chocado com o balcão refrigerado. Pensei ter visto um braço saindo de baixo das rodas. Desviei o olhar.
Sem dizer nada um para o outro, seguimos o fluxo de pessoas que iam para a avenida principal, onde o movimento parecia mais intenso.
- É bom tomar cuidado – Herick disse. – Quer dizer, quando estivermos em um lugar com muita gente.
Ele mal tinha acabado de terminar a frase, e um carro cantou pneus, comendo asfalto em direção à avenida principal. Herick pulou para a calçada e nós nos esprememos contra o muro. O carro passou zunindo por nós e entrou na avenida, errando os pedestres por centímetros. Um coro de vozes indignadas se levantou contra o motorista, mas o carro seguiu em alta velocidade, a buzina explodindo e ecoando pelas ruas. Um baque metálico e potente indicou que o carro não tinha ido longe.
- As pessoas ficam loucas – Herick falou. – Loucas, quando não entendem o que está acontecendo.
A avenida principal parecia um formigueiro humano. Os carros que passavam por lá no momento do tremor, agora estavam parados, alguns emborcados. A rua era dos pedestres. Pensei nas pessoas que o motorista descontrolado podia ter atropelado com aquela ânsia assassina se não tivesse se estrepado no engavetamento de carros.
 A multidão ia tanto para o sul quanto para o norte, algumas pessoas pareciam perdidas, outras assustadas, outras raivosas. O destino de muitas delas era a Catedral Nossa Senhora do Carmo. Os portões de ferro haviam sido derrubados e as escadarias estavam tomadas por uma fila desorganizada e barulhenta.
- É melhor irmos pela calçada - disse Perla. – Mais seguro.
Subimos a avenida em direção ao centro da cidade. Vimos mais destruição pelo caminho e todos pareciam compartilhar o mesmo sentimento de incompreensão e pavor. Vimos grupos reunidos, alguns sentados, outros em círculo, mas todos com um líder, alguém que falava enquanto os outros concordavam com a cabeça.
Não foi um terremoto - eu pensei. - Um terremoto não faz isso com as pessoas.
- É ali, dobrando a esquina – Herick avisou. – A loja de eletrônicos.
Dimas correu na nossa frente, mas parou antes de entrar na rua. Levantou os braços e os deixou cair, desanimado.
- O que foi? – Herick perguntou, correndo para se juntar a ele.
Dimas se voltou para nós e balançou negativamente a cabeça. Um grupo apressado e barulhento passou na frente dele e por um segundo tive a péssima sensação de perder meu amigo de vista. Quando Dimas reapareceu ainda estava com cara de desanimado, Herick o acompanhava.
- Que foi? – perguntei, mas já tinha uma ideia.
- Saqueada – Dimas disse. – Não deve ter mais nada lá.
Olhei para loja nem um pouco surpreso, mas não podendo deixar de sentir uma onda de desapontamento ao ver as vitrines destruídas e as portas arrombadas. Tive certeza de que todas as lojas da cidade deviam estar em situação parecida.
- Meu, que droga – esbravejou Herick. – Vamos continuar no escuro.
Dimas tirou o celular do bolso e o conferiu mais uma vez. Balançou a cabeça novamente.
- Completamente sem sinal.
- Guarda isso – disse Herick. – É capaz de roubarem também.
- Eu acho melhor todo mundo ir para casa – disse Perla. – Não sei o que essa galera toda está fazendo na rua.
- Vai ver eles não têm mais casa – Dimas arriscou, trêmulo. Herick e Perla olharam para ele.
- Acho que vou dar uma olhada na loja – eu disse.
Uma rajada de vento frio acompanhou minha frase. Perla pulou para perto de mim, e a avenida ficou silenciosa por um momento. Assim como chegou, a rajada foi embora. Olhei para o céu, o vento não trouxera nenhuma nuvem.
- Ai, senti um aperto no coração – Perla disse.
- Você vai fazer o quê na loja, Edie? – Dimas perguntou. – A Perla está certa, vamos para casa de quem mora mais perto.
- Eu sei – respondi. – Mas se algum vendedor tiver ficado na loja, ele pode saber de alguma coisa. As televisões com certeza estavam ligadas, até roubarem, pelo menos.
- Vamos saber de qualquer jeito – Dimas respondeu. – Assim que chegarmos em casa.
Mais do que saber notícias daquele terremoto, Dimas queria desesperadamente chegar em casa e ver como o pai estava. Ele não dormira a noite inteira esperando Tião chegar, a vida dele era essa agora. Via que Dimas quase tremia de preocupação, suava frio, como um dependente químico precisando de sua droga. Com uma crise daquelas nas mãos, ele precisava estar em casa, precisava cuidar do pai para que ele não fizesse nenhuma besteira.
- Mas eu quero saber agora. É besteira, eu sei... – eu não consegui explicar. – É rápido, vocês podem até esperar aqui. Não demoro nem cinco minutos.
Não ouvi o que eles disseram, pois corri logo em seguida. Consegui me desviar de todos que estavam pelo caminho e parei em frente à loja. De perto era ainda mais deprimente. Os cartazes em cartolina amarela com dizeres vermelhos alardeando liquidações estavam rasgados no chão. A loja estava às escuras.
- Será que sobrou alguma coisa aí?  
Um homem parou do meu lado, também tentando ver algo lá dentro. Eu sacudi a cabeça, sem nem olhá-lo direito. Vi um movimento dentro da loja.
- Ei – eu chamei, entrando correndo. O homem me seguiu.
A loja tinha sido depenada, não havia dúvidas. As peças de mostruário já não estavam nas prateleiras, que foram jogadas no chão, pisoteadas. Algumas estavam quebradas, as da parede, arrancadas. Cacos de vidros estavam espalhados por toda parte, os balcões expositivos, onde ficavam os celulares e outros aparelhos eletrônicos, estavam aos pedaços.
- Cara - o homem disse –, não tem nada para pegar aqui.
Foi quando ele recebeu uma pancada na cabeça. O som oco fez meu estômago revirar e eu tropecei numa das prateleiras destroçadas. O homem tombou no chão desacordado e eu vi um rapaz alto e forte com um porrete na mão. Pela roupa que usava, era um dos vendedores da loja.
- Querem roubar a loja – o vendedor disse alucinado. - Não vão roubar a loja. Não vão roubar a loja!
- Eu só quero conversar, cara – eu disse, tentando me levantar. - Não quero pegar nada.
O vendedor não me ouviu. Balançou o porrete em cima da cabeça e o desceu contra uma das prateleiras. O baque metálico feriu meus ouvidos, arrepiou minha espinha.
- Querem roubar a loja! – ele continuou, louco. – Não vão roubar a loja!
O homem no chão gemeu de dor, mas antes que eu pudesse me preocupar com ele, o vendedor o atacou com ferocidade. O porrete subia e descia com violência, acertando os braços, o peito, a boca do homem que tinha entrado comigo. Os gritos dele se tornaram uma tortura para mim.
- Para com isso – eu gritei, conseguindo me levantar. – Ninguém veio roubar.
Mas o vendedor continuava com o espancamento. O porrete subia banhado de sangue e descia novamente, acertando a cabeça do homem com força. Ele já não gritava mais, parecia chorar, implorar, o rosto vermelho e brilhante.
- Ladrões na loja – o vendedor gritava. – Ladrões na loja. Ladrões na loja.
Avancei para o vendedor, tomado por adrenalina e medo. Ele percebeu minha chegada e balançou o porrete em minha direção. Desvie a tempo, e por centímetros não fui atingido no rosto. O sangue do homem espancado respingou em mim.
- Calma – eu tentei. – Ninguém veio te roubar. Você está entendendo isso?
O vendedor me olhou idiotamente, e eu vi o brilho da morte em seu olhar. Era frio, distante. O homem no chão gemeu e se contorceu. Seu corpo se dobrou em espasmos e sua boca se encheu. Era sangue. Eu vi quando ele vomitou.
- Não vão roubar a loja – o vendedor disse num sussurro. – Roubar a loja.
- Segura ele – ouvi a voz de Perla.
Herick e Dimas entraram correndo. O vendedor só teve tempo de ser virar e foi atingido por Herick, que avançou contra ele como um touro bravo e o derrubou no chão. O vendedor gritou de dor e ódio antes de se chocar contra as prateleiras vazias.
- Saiam – Perla gritou da porta. – Vamos sair daqui.
Corri com Dimas e Herick, no momento em que o vendedor se levantou, espumando de raiva.
- Ladrões! – ele cuspiu furioso. – Ladrões do Inferno!
Saímos correndo da loja, Perla nos guiando. Lembrei do homem moído de pancada, mas nem pensei em voltar. O vendedor saiu da loja, o porrete ensanguentado nas mãos, o ódio nos olhos.
- Ladrões – ele berrou, enquanto corríamos para longe. – Ladrões!

13.  
Só paramos de correr quando chegamos à Praça da Tartaruga, que agora parecia um campo de guerra como todo o resto do Porão.
As árvores estavam no chão, as raízes à mostra. Uma delas caíra sobre os fios de eletricidade e bloqueara a rua, a copa estava incendiada. Para seguir pela avenida principal, era preciso dar a volta na praça, ou descer pelas ruas secundárias para pegar a avenida de baixo. De um jeito ou de outro era um desvio na rota, que de novo parecia confusa.
- E agora, o quê? – Dimas perguntou, ofegante, limpando o suor da testa.
O mais lógico era mesmo seguir o plano original, ir para a casa mais próxima e esperar. Mas ainda assim relutei, procurei outras alternativas. Na verdade, não queria encarar as áreas residenciais da cidade, o cenário podia ser ainda mais devastador.
Pensei em seguir as pessoas que passavam por nós, mas ninguém parecia minimamente certo do que fazia, só andavam sem rumo e sem plano. Reparei na quantidade de gente que carregava caixas, objetos, aparelhos eletrônicos. Talvez a experiência na loja tivesse alguma coisa a ver com isso, mas eu estava vendo saqueadores em todos os lugares. A ocasião faz o ladrão, a frase me veio à cabeça. Será que a mesma máxima se aplicava a assassinos, paranóicos, estupradores? O pensamento me gelou a espinha.
- Rapazes - Perla quase murmurou. –, eu acho que...
E desmaiou. Herick conseguiu segurá-la antes que ela caísse, mas se desequilibrou e acabou caindo também. Dimas se ajoelhou para ajudar e conseguiu levantar Perla, mas ela estava pálida, fria, desacordada.
- Me dá ela aqui – eu pedi, e Dimas a trouxe perto o suficiente para que eu pudesse pegá-la no colo.
Herick se levantou com uma careta de dor e eu lembrei que ele estava com as pernas machucadas. Dimas ofereceu o ombro de apoio e ele aceitou. Ninguém que viu a cena ofereceu ajuda, no máximo, nos lançaram um olhar curioso e seguiram em frente.
O comércio que rodeava a praça estava destruído e parcialmente esquecido pela multidão. As calçadas estavam livres. Apontei para uma ótica que fora poupada pelo tremor e pelos saqueadores.
- Ali – disse.
Dimas correu para a ótica e sumiu lá dentro. Carreguei Perla, que começava a recobrar os sentidos, para lá. Herick ia ao meu lado. Mal colocamos os pés na calçada, Dimas saiu da loja carregando uma cadeira de ferro com o estofado vermelho.
Sentei Perla na cadeira e ela tampou o rosto com as mãos. Herick tirou as mãos do rosto dela imediatamente, e Perla lhe lançou um olhar zangado.
- Ela precisa de ar – ele disse sem olhar para ela. – Tem que respirar senão pode ficar pior.
Perla não rebateu, e se recostou no estofado. Prendeu os cabelos longos em um rabo de cavalo e começou a se abanar com as mãos.
- Que horas são? – ela perguntou, depois de limpar a garganta seca. – Está quente demais.
E estava mesmo. Não tinha reparado até o momento, mas o clima mudara drasticamente. Estava quente, abafado, mas ao mesmo tempo muito úmido. Olhei para o céu, mas o sol não estava a pino. Ainda não era nem meio-dia. Eu estava encharcado de suor, minha camisa colada nas costas, meus braços pareciam besuntados.
Dimas sentou no chão, ao lado da cadeira, e novamente tirou o celular do bolso. Olhou para o aparelho como se pudesse fazê-lo voltar a funcionar com a força do pensamento. Herick se aproximou, curioso.
- Algum sinal?
- Nada – ele respondeu com a voz falhando. Estava com a garganta seca como todos nós. Olhou para Perla. – São onze e quinze.
- Caralho, parece que estamos nessa há horas – ela falou antes de inclinar a cabeça para trás e mirar o céu.
Herick sentou ao lado de Dimas, e eu me juntei a eles. Ficamos os quatro observando a procissão de estranhos seguindo para ambos os lados da avenida. Tentei criar histórias para os tipos mais estranhos que via, mas não consegui nada que me alegrasse e resolvi parar.
- O que eu não entendo - eu retomei a conversa após minutos silenciosos – é a falta de qualquer autoridade aqui. Qualquer ajuda. Cadê a polícia? Cadê os bombeiros?
- Não espere nenhum dos dois por aqui, garoto. Eles estão ocupados demais.
Não foi a primeira vez que eu reparei no homem de camisa de botão, calça social e gravata. Estava sentado em cima de seu paletó, em frente à loja ao lado, um armazém. Ele já estava ali quando chegamos. Silencioso, concentrado, fumando seu cigarro.
- Por que está dizendo isso? – Herick perguntou, e eu cheguei mais perto para ouvir.
O homem continuou fumando seu cigarro e por um momento pareceu que não ia responder. Olhava fixamente para um ponto adiante, e quando segui seu olhar, vi no que ele se concentrava: em uma das árvores caídas. O homem tragou o cigarro pela última vez e o apagou no chão, virou-se e se arrastou para perto de nós.
- Qual o seu nome, moleque? – ele perguntou para Herick, soltando uma baforada de fumaça.
Pensei em como era estranho ele nos tratar por moleques, já que vendo de perto, ele não parecia mais velho que nós. Os cabelos penteados para trás e a barba por fazer adicionavam uns anos a mais na sua aparência, mas ainda assim ele não parecia ter mais de vinte e cinco.
- Eu sou Herick. Dimas, Perla e Edie – ele disse apontando para cada um de nós.
O homem sorriu e balançou a cabeça em cumprimento.
- Téo. – Ele estendeu a mão e Herick a apertou.
Um grito estridente desviou nossa atenção para rua. O mendigo que eu vira mais cedo se livrara da cueca encardida e agora corria nu na praça, os braços levantados, os pés sangrando. Jogou-se no laguinho artificial, quase vazio e começou a rolar de um lado para o outro. Acho que o ouvi cantando o refrão de uma música, mas não tenho certeza de qual era.
- Deixem – Téo disse, acendendo outro cigarro. – Ele não vai ficar lá por muito tempo.
Quis perguntar como ele sabia disso, mas esta não era a pergunta que interessava. Ainda ouvindo a cantoria do homem no lago, nos concentramos na nossa conversa interrompida. Téo falara com muita segurança que estávamos esquecidos, ele com certeza sabia de alguma coisa.
- O que vocês estão vendo aqui não é nada. – Téo abriu os braços para abranger toda a área em volta da praça. – Muitos estabelecimentos, a maioria só com andares térreos, fácil de sair correndo. Por pior que tenha sido, passou longe de ser um pandemônio. Mas lá para o centro... Vocês sabem o que mais tem lá.
- Prédios – Perla disse.
- Prédios de apartamentos, prédios comerciais, a concentração de gente lá é dez vezes maior que aqui – Téo continuou. – Os esforços estão todos concentrados por lá, e mesmo assim muito porcamente, imagino. Quem nos garante que as delegacias e os prédios dos bombeiros não foram derrubados também?
Téo tragou seu cigarro e voltou a encarar a árvore caída. O mendigo saíra do lago e dava voltas na praça, ainda cantarolando. Dimas estava pálido. Eu sabia no que ele estava pensando.
- Você está adivinhado tudo isso – Dimas falou. – Não tem como saber o que está acontecendo.
- É só pensar um pouco. – Téo se virou para nós novamente. – Terremotos não são gentis, principalmente com prédios sem estrutura. Ninguém estava preparado para um evento desses. Os nossos prédios desabam com um sopro de vento, que dirá com um tremor de terra. Não temos um plano para isso. Estamos abandonados.
Tudo o que víramos desde o terremoto mostrava que Téo estava certo. Nada podia ser menos inesperado que um terremoto, as pessoas não sabiam como agir, a quem recorrer. Não era como se estivéssemos no Japão, onde cada um é treinado para sobreviver. O tremor já acontecera há mais de uma hora, e até então não tínhamos notícias e nem esperanças.
- Estão vendo aquela árvore ali – Téo apontou com a mão que segurava o cigarro. – Meu carro está embaixo dela. Eu estava andando para lá quando tudo tremeu. Eu podia estar morto agora.
Todos nós poderíamos, eu pensei.
- Mas não morreu. – Dimas se levantou. – E ficar aqui sentado sem fazer nada, não vai fazer o tempo voltar. O mundo não acabou, foi só um terremoto.
Téo deu mais uma tragada no cigarro e soltou a fumaça pelo nariz.
- Então, vá fundo, cara. – Os olhos de Téo acompanhavam atentos alguma coisa. Era o mendigo. Ele veio tropeçando em nossa direção e se agarrou em Dimas.
- Você é meu amigo – o homem falou, tocando o rosto de Dimas, que o afastou com um empurrão.
- Cai fora!
O homem tropeçou no meio-fio e percebeu Perla. Sorriu e caminhou até ela, os braços estendidos.
- Minha... namorada.
Perla se encolheu com repugnância e eu me levantei com um pulo. Mas Dimas foi mais rápido, agarrou o homem pela nuca e o jogou para trás. O mendigo cambaleou, pisou em falso e caiu de costas no asfalto.
- Namorada... – ele continuou baixinho.
- Cala a boca – Dimas mandou, dando um passo vacilante em direção ao homem caído.
- Namorada... Namorada...
- Cala a boca! – Dimas berrou e chutou com força a boca do mendigo. Ele revirou no chão com a força do golpe e Dimas o atacou ferozmente com chutes e pisadas. – Cala a boca!
Agarrei Dimas pelas costas, prendendo seus braços ao lado do corpo e o catapultei para trás. Me desequilibrei com o peso dele, e caímos os dois no chão. Dimas se debatia e berrava como louco, mas consegui mantê-lo firme.
- Fica calmo, seu idiota – eu berrei. – Se acalma.
- A gente tem que sair daqui – ele falou. – Vamos sair daqui.
- A gente vai sair daqui – eu disse. – Mas para, para com isso.
O corpo de Dimas parou de se contorcer e eu afrouxei o abraço de urso. Dimas arrastou-se para longe e levantou, se apoiando na parede. Perla correu para mim e me ajudou a levantar. O homem nu continuava no chão, encolhido, machucado.
- Acho melhor a gente ir – eu disse ofegante. – Para o centro.
E foi aí que o reflorestamento começou.

14.
Primeiro ouvimos um som que até hoje não sei o que era. Parecia um urro primitivo, um grito acuado, só que mais forte, mais alto, que envolvia o mundo todo. Perla agarrou meu braço e se aconchegou no meu peito.
- Que merda... – ela murmurou.
Depois o chão tremeu de novo, mas não como da outra vez. Foi um único tremor, um impulso violento para cima, como um carro que passa muito rápido por um quebra-molas. Fomos jogados contra a parede da ótica e caímos. Gritos surgiram de todos os lados. O estardalhaço de concreto se chocando contra concreto, e vidros se espatifando se sobrepôs a qualquer outro som.
- É melhor a gente sair de perto das lojas - Herick gritou e nós corremos para o meio da rua, nos juntando às centenas de pessoas. Téo em nossos calcanhares.
A correria era perigosa e desenfreada. A imagem dos alunos pisoteados ainda estava fresca na minha cabeça e eu gritei para que todos ficassem juntos.
Uma nova rajada de vento nos atingiu em cheio. Vi pessoas voando para trás com a força da pancada. Nos demos os braços e fizemos força para frente, mas ainda assim fomos suspendidos e jogados no chão. Uma mulher passou voando por cima de nós e rodopiou descontrolada até a copa da árvore que tinha caído sobre os fios elétricos. Seu corpo pipocou, emitindo uma luz azulada e ela começou a pegar fogo. Seus gritos puxaram o coro de todos os outros, que já refeitos da força da rajada de vento, se levantavam e corriam.
Nos levantamos o mais rápido que pudemos, e fomos levados pela multidão, nossos pés mal tocando o chão. Continuávamos agarrados pelos braços, e Perla chorava de desespero.
E a terra tremeu de novo. Gritos. E de novo. Mais gritos.
As lojas que continuavam de pé foram caindo uma a uma como se fossem feitas de cartas de baralho. Pedaços de tijolos voavam para a multidão, e as estruturas de ferro viraram armas certeiras, voando para empalar qualquer um estivesse no caminho.
De repente a multidão parou. Foi sincronizado, não mais estranho que tudo que estava acontecendo até ali, mas mesmo assim muito impressionante. Foi como se todos tivessem sentido a mesma coisa, o mesmo pressentimento.
Perla me abraçou e olhei para os lados, conferindo se Dimas e Herick continuavam com a gente. Téo havia sumido. Só o que se ouvia era a respiração ofegante da multidão, que parecia ter se tornado um único e imenso ser, que pensava igual, sentia igual e temia pelas mesmas coisas.
Mas o silêncio aos poucos foi sendo quebrado por um som que subia num crescendo. A única coisa parecida com aquele som que eu já ouvira era o de pneus passando por cascalho. Minhas pernas começaram a tremer e tive a confirmação de que eu nunca estivera tão assustado. Mas quando eu olhei para baixo, vi que não eram minhas pernas que tremiam, mas o chão que parecia... Parecia borbulhar. O asfalto se quebrara em milhões de pedaços que pululavam como a superfície revolta de uma tina de água aquecida.
Qualquer dúvida que eu tinha de que aquele não tinha sido um terremoto comum se dissipou naquele momento. Ao meu lado, Perla chorava baixinho.
Foi quando ouvimos o primeiro pipoco, como se um tiro tivesse soado em uma sala vazia. A multidão, o ser impressionante que tínhamos nos tornado, gritou de surpresa. Mas a nova faculdade de nos mantermos unidos se dissipou. Gritos isolados e ampliados pelo corredor que era a avenida se fizeram ouvir. Uma agitação frenética tomou conta de todos nós, que queríamos correr, mas não tínhamos para onde.
Outro estalo, agora mais próximo. E eu entendi por que lá na frente a gritaria já tinha começado. Pelo menos vinte pessoas foram arremessadas do solo, rodopiando no ar como estranhos bonecos de pano, e caindo em cima de quem estivesse próximo.
O asfalto começou a borbulhar com mais intensidade, e eu não previa coisas boas vindo por aí. Dimas, Herick, Perla e eu nos tornamos um só de tão grudados que estávamos. Pelo menos aquela unidade não ia ser quebrada.
Outro estalo. Mais gente arremessada, dessa vez caindo bem perto de nós. O tumulto que só estava esperando um motivo para acontecer, aconteceu. Quem estava lá na frente empurrava quem estava atrás para fugir do que quer que estivesse sob o solo. Corremos para trás, tentando abrir caminho com cotoveladas e chutes para as ruas secundárias. Se por um lado elas eram perigosas, por serem mais estreitas, eram o único caminho para a avenida inferior; e quem estava trocando de caminho e correndo na direção inversa, com certeza não sabia ou estava esquecendo da árvore eletrificada que barrava o caminho.
Novos estalos se seguiram, com espaços cada vez mais curtos entre um e outro. Olhei para trás e vi, a menos de três metros, o asfalto explodir e jogar pelos menos cinco pessoas no ar. Fragmentos do asfalto caíam sobre nós como granizo escuro. Uma rachadura se alastrou do buraco causado pela explosão e ziguezagueou pelo chão, o dividindo ao meio.
Uma parte da terra cedeu e afundou mais de um metro, derrubando todos que estavam pelo caminho, os mais próximos eram sugados para dentro do chão com uma força brutal. O chão começou a se dissolver e ser engolido pelo buraco, que crescia assustadoramente. Um Corolla foi arrastado pela aspiração brutal, levando dezenas de pessoas com ele para dentro do buraco negro aberto no chão, que crescia assustadoramente a cada minuto, aumentando seu poder de sucção.
- A rua – Dimas berrou. – Temos que sair daqui.
Ele não precisou gritar duas vezes. Com chutes e empurrões conseguimos chegar à esquina de uma rua estreita que parecia mais transitável que a avenida abarrotada de gente. Mas antes que conseguíssemos entrar nela, um grande pedaço de asfalto explodiu bem na nossa frente, jogando uma rajada de ar quente na nossa cara. Fomos lançados para trás e caímos sobre um grupo de pessoas que nos empurraram para o chão. O asfalto quente nos queimou as costas e eu soube que precisávamos nos mandar.
- Levanta! – gritei. – Levanta!
Uma multidão de pés e pernas nos forçava contra o chão. Imobilizei um pé que vinha diretamente para meu rosto e o torci. O dono da perna se dobrou e caiu de boca no asfalto quente. Ele gritou enquanto eu me levantava, mas não era diferente de todos os outros gritos que eu ouvia. Meus amigos e eu nos demos os braços e corremos no exato momento em que mais uma explosão ocorreu bem no lugar onde estávamos. O homem que quase me pisoteara passou voando por nós, arrastando outros cinco para o buraco negro faminto.
As explosões estavam ocorrendo o tempo todo agora, em todos os lugares. Corríamos para cima e para baixo como baratas, tentando nos desviar daquelas pequenas erupções de ar quente.
E rápido com vieram, as erupções pararam, mas um tremor impressionante se seguiu a elas, tão grande que jogou todos no chão. E tudo pareceu parar, pelo menos por uns poucos segundos. Mas recomeçou. Um tremor forte e constante, que não parava, não cedia. Conseguimos nos levantar a muito custo, trêmulos e desesperados, e tudo o que vimos foi destruição e medo. Meus amigos e eu estávamos tão juntos que sentíamos o cheiro do suor um do outro.
E aí vimos. Do horizonte, uma onda verde se erguia rápida e abruptamente. Eram árvores. Dezenas, centenas delas brotando do solo, tomando a superfície. O absurdo daquela imagem era tão absoluto que pensei seriamente, que estava sofrendo de alucinações, mas o chão tremendo me atava à realidade. Perla soltou o grito que há muito vinha segurando, e eu não conseguia fazer outra coisa senão ficar parado, observando aquilo: as árvores grossas, bojudas, como se emergidas do inferno, chegando cada vez mais perto.
- Corre – Herick me puxou pelo braço.
Demos meia volta e corremos para longe da floresta que vinha. A cada olhada para trás, as árvores pareciam mais próximas. O cheiro de relva, de orvalho, de mato, invadiu minhas narinas e eu tive certeza que ia enlouquecer.
Puxei Dimas para o lado, pois no caminho que íamos trombaríamos na árvore caída, Herick e Perla nos acompanharam. Contornamos a Praça da Tartaruga e chegamos a uma rua estreita e vazia. O barulho ensurdecedor das árvores brotando nos acompanhava a cada passo. Dobramos a esquina e corremos desabalados de volta para a avenida. O fluxo de pessoas estava consideravelmente menor, pois muitas haviam ficado presas em frente à árvore eletrificada. Um tremor violento nos jogou no chão.
- Continua – Herick gritou para se fazer ouvir na barulheira infernal. – Continua.
Mas já não tínhamos como correr mais. Os tremores eram tão intensos que nos jogavam no chão toda vez que tentávamos levantar. Gritando, sentimos o chão se dissolver embaixo de nós. Nos seguramos uns nos outros e com um impulso conseguimos levantar.
O asfalto foi expelido para cima em milhões de pedaços por um violento jato de ar quente. Um ruído insuportável encheu o ar e uma árvore imensa brotou do chão, bem atrás de nós. A ideia me surgiu como um lampejo alucinado e impossível, mas era a única coisa que podia ser feita.
- Segurem na árvore – eu gritei. – Segurem!
Quando um galho abriu caminho pela terra, deixando sua marca no chão, me joguei nele sem pensar. Não calculei a rapidez com que a árvore subia, e bati a boca no galho com uma força que eu não esperava. Um dos meus dentes se quebrou e eu o cuspi fora, o sangue inundou minha boca.
Olhei para baixo e senti vertigem ao ver o chão se afastando a uma velocidade absurda. Dimas estava agarrado no mesmo galho que eu, seguro só pelas mãos. A árvore parou de subir abruptamente. Eu me desequilibrei. Por um segundo pensei que fosse cair, mas consegui me segurar. O chão parou de tremer. Dimas ergueu o resto do corpo e sentou.
- Merda, Edie – ele disse, os olhos arregalados. – O que é isso?
Sacudi a cabeça, completamente perdido. Devíamos estar a centenas de metros do chão, pois dali tinha uma visão panorâmica da cidade. O centro já estava completamente destruído. Vi focos de incêndio, explosões ritmadas, aviões caindo. E a floresta continuou avançando.
Olhei para todos os lados, todas as direções. Era tudo verde, tudo floresta.

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