quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Conto: O Espelho

 O Conto O Espelho foi publicado originalmente na antologia de contos Tratado Secreto de Magia, da editora Andross. A versão publicada, no entanto, teve que ser editada para atender aos requisitos da edição. Abaixo está a versão completa.


J.C.

Dizem os mais antigos, que quando o Grande Sábio aterrissou nas Terras Selvagens e Mortais que se tornariam o Reino de Abugão, trouxe consigo apenas o Cetro de Luz e o Espelho de Cristal. Quando o Grande Sábio cuspiu no chão para moldar o primeiro rei da Linhagem da Luz, entregou-lhe o Cetro que antes de conter poderes sobre o clima e a vontade das pessoas, concedia a quem o possuísse uma sobrevida. Dezenas, centenas, milhares de anos. Mas a um preço. O corpo não morria, mas sentia o pesar de cada ano, as dores, as impossibilidades. O dilema do possuidor do Cetro não era se queria ou não viver para sempre, mas se queria ou não se arrastar sem saúde, memória e disposição por anos a fio. Rei Árvore, o primeiro da linhagem da luz, nunca entendeu isso, aceitou o fardo do Cetro como uma benção. Um milhão de anos depois da descida do Grande Sábio em sua carruagem de Fogo, e posterior partida em um turbilhão dourado, continuava a governar o Reino de Abugão, ou achando que o fazia. Com os ossos frágeis, os olhos cegos, a língua pesada e as ideias confusas e embaçadas, não era mais que um boneco feio e inútil, encarrapitado em sua poltrona dourada, o Cetro fundido a seu braço, uma extensão dourada de si mesmo.

- O Rei precisa morrer – sussurrou o Conselheiro Real em sua masmorra fria e pegajosa entre crânios de animais e fórmulas borbulhantes e coloridas. – Abugão já não lhe pertence, nem mesmo o Cetro.

O Conselheiro pertencia à Linhagem dos Feiticeiros. Contam nas rodas de bruxaria e maldições que eles eram os preferidos do Grande Sábio por terem surgido de sua sombra. Mas o povo de Abugão via nisso um ardil desesperado dos Feiticeiros para se sentirem superiores , sabiam todos que os que nascem da escuridão, das sombras, não são abençoados, mas amaldiçoados. Quando pragas de insetos destruíam as plantações, enchentes destruíam os casebres dos camponeses e tornados deixavam desabrigados os lordes da Corte, todos sabiam que a culpa era do Rei Árvore, que na sua ânsia de se manter vivo e reinante, não largava o Cetro que trazia intempéries e desgraças. Mas quando a morte era algo mais pessoal, única, como a explosão do crânio do ferreiro, ou a combustão espontânea de Catalina de Espor, filha do Cavalheiro Prateado, ou a perda de peso abrupta de Skull, filho único do Rei Árvore, os cochichos acusavam a ação dos Feiticeiros, e apenas os cochichos, pois qualquer voz que se elevasse seria calada de uma forma ou de outra.

- Devo achar o Espelho – recitou o Conselheiro com sua voz rouca e arrastada que fez os ratos da masmorra se revirarem em volta de seus corpos cinzentos. – O Espelho.

Se a saga do Cetro é conhecida e temida por muitos, a do Espelho de Cristal é acalentada por tragédias, mortes, assassínios e toda sorte de desgraças. Das relíquias mágicas poderosas e mortais trazidas pelo Grande Sábio, é o Espelho que mais desperta a cobiça. A Guerra dos Quinze Anos travada entre Abugão e o reino de Astória, que remontam as lendas são filhos de Jiran, uma entidade que chegou às Terras Selvagens no encalço do Grande Sábio, foi desencadeada por causa dele. Jiran não só criou a linhagem de Astória, como gerou animais sanguinários, criações obscenas que misturam a inteligência humana e a bestialidade dos monstros.  Dragões, macacos carnívoros, a besta vampira, insetos gigantes e disformes, todos rondam as florestas que margeiam o reino de Abugão, todos foram usados por Jiran durante a sangrenta guerra.

Quando os guerreiros de Astória invadiram os domínios de Abugão montados em pássaros gigantes, vieram em busca não do espelho completo, mas de um pequeno fragmento. O espelho de cristal fora despedaçado em milhares de pedaços na épica batalha entre Jiran e o Grande Sábio, e seus fragmentos se espalharam por todo o globo. Jiran foi destruído, transformado em uma massa escura que envolvia as Terras Selvagens todo o dia, encobrindo o sol e dando poder nefasto às bestas escondidas nas florestas. Assim como acontecera na batalha milenar, os filhos de Jiran também foram destruídos pela linhagem do Grande Sábio na Guerra dos Quinze Anos.

Por milhares de anos, caravanas foram enviadas tanto por Abugão quanto por Astória para recuperar os fragmentas e montar o espelho novamente. Astória conseguira montar grande parte do espelho, mas faltava um pequeno fragmento. Um pedaçinho quase insignificante, de menos de dois milímetros, que fora encontrado por um mendigo nas ruas de Abugão. O fragmento estava seguro agora pela magia do Conselheiro no quatro da torre no castelo de Abugão, e ninguém tinha acesso a ele. Só o Conselheiro, e ele sorria, gargalhava, enquanto seu plano para se livrar do Rei se tornava cada vez mais claro em sua cabeça.

- Filho do Grande Sábio - começou o Conselheiro no dia seguinte para o Rei Árvore. – Finalmente consegui o que tanto me pediu, é inenarrável o prazer de,enfim, poder servi-lo em plenitude.

O olho pastoso e cego do Rei se moveu. Um mugido estranho e incompreensível saiu da boca do homem de um milhão de anos e uma baba mucosa e espessa vazou de seus lábios secos e entreabertos. O Rei Árvore, sabendo das aptidões do Conselheiro em feitiçaria, o havia convidado para morar no castelo e ser seu homem de confiança. Desde o primeiro dia em que pôs os pés no palácio de pedras, o Conselheiro foi cobrado pelo Rei para encontrar uma poção, um feitiço, uma maldição que fosse, mas algo que retardasse seu envelhecimento, que impedisse sua deterioração. O Conselheiro conhecia a poção, era magia negra antiga a que sua linhagem tinha acesso. Sabia como curar o sofrimento do Rei, mas resolveu esperar pelo momento certo, quando enfim se beneficiasse. E o momento era aquele.

- Devolverei ao magnânimo descendente do Grande Sábio tudo o que o tempo impiedoso o tirou. Serás grande novamente, meu Rei. Magnânimo. Eis aqui o que eu vou precisar para realizar esse feito.

O Rei ouvia com um sorriso débil a lista de coisas que o Conselheiro pedia. Deu ordens expressas aos guardas que conseguissem tudo o quanto fora pedido o mais rápido possível.

Na sua masmorra, o Conselheiro recebeu tudo o que tinha pedido. Virgens, carneiros, crianças recém-nascidas, folhas de árvores raras, escamas de dragão, o coração de uma besta vampira e a cabeça de um dos habitantes de Astória. Mas nenhuma dessas coisas seria usada para a poção que restabeleceria o Rei. Ele já possuía tudo o quanto precisava para acabar com o sofrimento milenar do Rei Árvore ali mesmo na sua masmorra. Mas era tudo parte do plano.
Usou o que os guardas haviam trazido para realizar uma magia antiga, desconhecida, que o confirmaria como um filho da escuridão do Grande Sábio. Matou as virgens e as crianças, comeu a carne do carneiro temperada com as ervas raras, misturou numa poção as escamas do dragão e o coração da besta vampira e a bebeu depois de devorar os olhos do Astoriano. Estava pronto.

No castelo de Abugão, sussurros assustados vagavam pelos corredores sombrios e silenciosos. Um dos guardas que entrara na masmorra do Conselheiro encontrou um estômago humano boiando num líquido rosado e fedorento. Os magos antigos falavam disso, arrancar o estômago com magia e decidir por quanto tempo a vítima viveria antes de morrer de inanição. E fora assim que o filho único do Rei Árvore morrera. Os boatos chegaram aos ouvidos do Rei e uma lágrima rolou de seu rosto de pergaminho. Resolveu esperar. O Conselheiro o faria jovem de novo, e só então, a ira do descendente do Grande Sábio recairia sobre o feiticeiro.

Depois de enfeitiçar o guarda real para que entrasse em sua masmorra e encontrasse o estômago do herdeiro do Rei, o Conselheiro se esgueirou para fora do castelo se deliciando com o andamento de seu plano. Postou-se nos campos de girassóis e murmurou encantamentos para a lua cheia, a boca pingando sangue. Uma nuvem vermelha cobriu a luz da lua e o Conselheiro emanou um discreto brilho de rubi. Ficou assim, incandescente, por pouco segundos antes de seu corpo se transformar em fumaça e ele se fundir ao solo, virando uma sombra. Voltando ao que seus antepassados eram no início de tudo.

O Conselheiro rastejou pelas Terras Selvagens, passou desapercebido pelas bestas da Floresta e pelas muralhas de Astória. Já nos domínios do reino inimigo, uniu-se às sombras da noite formadas pelos casebres dos plebeus e pelo obelisco central, e fez seu caminho até o castelo sombrio dos filhos de Jiran.

Nada se movia lá dentro, só a furtiva sombra do Conselheiro que vencia escadas, atravessava corredores e percorria quartos até chegar à torre mais alta, onde um único quarto encarcerava os Espelho de Cristal incompleto. Dois guardas monstruosos estavam prostrados em frente à porta de aço. Seus olhos miúdos e vermelhos esquadrinhavam o corredor e tudo além dele, esperando inimigos, saqueadores.

A luz tremeluzente das chamas nos archotes fixados nas paredes lançava sombras compridas e disformes em todas as direções, um parque de diversões para o Conselheiro. Sua sombra se esgueirou pelas paredes, rastejou pelo chão e se expandiu embaixo dos guardas. Eles nem tiveram chances de reagir, foram tragados pela sombra, jogados em qualquer lugar, qualquer mundo, com um uníssono grito abafado.

A sombra se elevou do chão, ganhou dimensões e num segundo, o Conselheiro estava inteiro no corredor, em frente à porta, exultante com seu sucesso. Com um gesto de mão, a porta de aço se escancarou e o brilho prateado do espelho iluminou o sorriso perverso do feiticeiro.

Estava tudo preparado no castelo de Abugão. Guardas avisados, mulheres e crianças recolhidas, a ira do Rei Árvore num ápice nunca antes visto. Parecia até que seu corpo se alimentava do ódio, deixando suas faces mais coradas e reflexos mais imediatos.  A sombra do Conselheiro passou por tudo isso, debochada e triunfante e se infiltrou na masmorra onde o Rei guardava o único pedaço do espelho que tinha, o fragmento milimétrico, seguro apenas pela magia do próprio Conselheiro. Não demorou nada para o feiticeiro ter o espelho restaurado em suas mãos.

A sombra do Conselheiro se esgueirou até sua masmorra e guardou o espelho, se preparando para a última etapa de seu plano. Pegou a poção borbulhante que traria juventude e vitalidade ao decrépito Rei e se materializou nos portões do castelo, deixando-se ser conduzido pelos guardas até o salão real.

- Precisei de toda a noite, meu Rei – conclamou o Conselheiro. – Enfrentei feras e terrores, mas finalizei sua poção. Seu elixir, grande Descendente.

A mão raquítica e manchada do Rei segurou a taça de ouro que o Conselheiro oferecia. Os olhares dos guardas acompanharam o lento movimento do Rei de levar o cálice à boca e sorver pequenos goles da poção. O Conselheiro sorria por sob seu capuz cinzento, e o Rei deixou o cálice cair no chão com um estrondo. Curvou seu corpo esquálido para o chão, fortes acessos de tosse lhe sacudindo de cima a baixo.

Os guardas avançaram para o Conselheiro, mas se detiveram quando o Rei soltou um berro que se ouviu por toda a Corte. Ele se levantou com esforço e a cada movimento suas rugas desapareciam, seus olhos voltavam a enxergar, seus cabelos se coloriam de vermelho. Quando, altivo, encarou seus guardas e o feiticeiro, já estava robusto e ameaçador, firme e rejuvenescido.

- Prendam o Conselheiro – a voz do Rei trovejou pelo salão. – Por traição e assassinato.

Os guardas apontaram lanças e espadas para o feiticeiro que se encolheu e atirou-se no chão, pedindo perdão, chorando falsamente.

- Matou meu filho, bruxo – acusou o Rei. – Vou matá-lo por causa disso.

- Clemência, grande Rei – fingiu o Conselheiro. – Deixe-me ao menos lhe dar um último agrado, para tornar meu fim menos doloroso. Algo que foi do seu filho, que ele gostaria que Vossa Majestade tivesse.

Os olhos verdes do Rei faiscaram de ódio e, subliminarmente, de saudade. Deixou os guardas escoltarem o Conselheiro até sua masmorra, onde ele pegaria o pertence de seu filho.

O Conselheiro entrou na masmorra às pressas, e se extasiou com a luz prateada que emanava do espelho. Correu até ele, e colocou a palma de sua mão contra o cristal mágico e refletor.

- Rei – murmurou o feiticeiro. – Rei Árvore.

Uma explosão prateada envolveu o corpo do Conselheiro e sua alma cinzenta foi sugada para dentro do espelho. No salão real, o Rei Árvore arregalou os olhos e seu corpo se imobilizou. Ele não respirava ou piscava, nem respondia a qualquer estímulo. De repente, um grito de pânico varou os corredores do castelo, vindo da masmorra do Conselheiro. O Rei piscou os olhos, saindo do transe, mas sua íris já não era mais verde. Era cinzenta. O Conselheiro conseguira.

Na masmorra, preso no corpo do Conselheiro, o Rei berrou de desespero e derrubou a porta com um chute, tentando fugir. Foi agarrado pelos guardas, que lhe feriram com espadas e socos, e o levaram arrastado de volta ao salão real.

- Eu sou o seu Rei – berrava o Rei com a voz do Conselheiro. – Primeiro filho do Grande Sábio.

O Conselheiro foi jogado aos pés do Rei, que teve tempo de vislumbrar seus olhos verdes. O espírito do Conselheiro se sentia bem e poderoso no corpo rejuvenescido do Rei. Agora entendia poder do Cetro, era uma sensação de invencibilidade desnorteante.

- O que você fez, feiticeiro? – o espírito do Rei gritou aprisionado no corpo do Conselheiro. – O que você fez?

Mas não havia o que conversar. O sorriso debochado do Conselheiro apareceu no rosto austero do Rei. Ele apontou o Cetro para a cabeça de sua vítima, quase gargalhando de excitação triunfante. Uma luz amarela brilhou na extremidade do Cetro e antes que o corpo do Conselheiro pudesse gritar, sua cabeça explodiu num jorro de sangue, manchando o rosto e as vestes do Rei.

Os guardas se apressaram para levar o que sobrara do corpo do Conselheiro para a fogueira, enquanto seu espírito comandava o corpo do Rei Árvore para seu trono, de onde ele não pretendia sair tão cedo. Abugão tinha um novo rei agora. E o terror que se seguiu a ele, foi contado por séculos em todos os cantos das Terras Selvagens.

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