sábado, 20 de outubro de 2012

Conto: Os Mortos


Os homens vieram na minha casa na hora marcada. Vestiam ternos escuros e gravatas brancas, os dois. Achei estranho ver dois funcionários públicos usando aquela espécie de uniforme, as cores escuras, os rostos pesados, como se o trabalho que faziam estivesse impregnado neles. Eles já não trabalhavam com a morte, eles incorporaram o espírito dela.

Minha mãe estava no quarto. Tinha morrido há menos de duas horas. Cinco minutos depois eu tinha enviado um e-mail para o Órgão. Podia não fazê-lo, mas já tinha ouvido muitas histórias, histórias daqueles que tinham tentado velar seus mortos e foram pegos. Histórias pesada. Parecia que todas as histórias eram pesadas naquela cidade, naquele mundo, naquele “lá” onde as pessoas sempre queriam chegar.

Tentei me convencer de que avisei o Órgão porque era coisa certa a fazer, a lei. Fiz isso para ser correto, não por estar querendo desesperadamente acabar com tudo aquilo, o sofrimento, os anos vendo minha mãe definhar, enlouquecer de dor, me xingar, dizer que me amava, chorar, morrer. Desde que minha mãe caiu doente eu esperava por esse momento, o momento em que eles apareceriam e tomariam conta da situação. Eu estava cansado de tomar conta e tudo.

Mas ela tinha morrido agora. Era assim que era ser livre?

- Do que ela morreu? – um deles perguntou com os olhos no papel preso a uma prancheta.
- Câncer – eu falei, rouco.
- Por que ela não estava no hospital?  - quis saber o outro, também sem olhar para mim.
- Não tinha mais nada que podia ser feito. Ela quis morrer em casa.

O primeiro que falou comigo soltou um grunhido de entendimento e caminhou em direção ao quarto. Parou no meio do caminho e apontou para o cômodo como se perguntasse se era ali que ela estava. Falei que sim com a cabeça. Ele entrou.

O outro continuou escrevendo. Em silêncio. Olhei para o teto, para o chão, para a janela. Estava escurecendo. Olhei para o relógio. 18 horas. O homem continuava escrevendo. Tive a impressão de que ele não escrevia nada, queria apenas uma desculpa para manter a cabeça baixa e não me encarar.

O que estava no quarto voltou. Fez um aceno de cabeça afirmativo para o companheiro, que finalmente parou de escrever.

- Vamos queimá-lo amanhã. Fique em casa o dia todo.

E foram embora.


- Não podemos mais enterrar nossos mortos – ela começou a dizer. Tinha os olhos cansados e olheiras roxas, largas e pesadas. Já não se vestia para ninguém. Chegou em casa com chinelo de dedo sob meias amarelas ou apenas encardidas. O rosto estava manchado. Era bonito antes, lembro do meu tempo de criança. Agora estava marcado, pela vida, pela dor. “Era como se tivesse brigado com a vida e perdido”.Onde foi mesmo que eu escutei essa descrição? Já não importava, mas era assim que ela parecia. Ela se chamava Gertrudes. Sempre foi minha vizinha. Agora era só um corpo que andava, um monte de carne que vivia porque não conseguia morrer.Que andava com um suéter três vezes maior que ela escondendo a camisola velha, que já começa a se desmanchar.

- Urubus, é isso que eles são – ela continuou e eu deixei. – Farejam a morte, parece que gostam dela, do gosto. Acho que essa é a maior crueldade de todas, sabe? E não comecei a pensar isso só agora, depois que tudo aconteceu. Sempre pensei assim. Mesmo antes de eles fizerem o que fizeram com meu filho. Os tempos eram outros, eram sim. A gente velava os que tinham partido assim: dentro de casa. O caixão ficava assim, no centro da sala. Não acho que você saiba o que é um caixão. Talvez tenha visto algum pela televisão, num filme antigo, ou na internet, naqueles vídeos horrorosos de... você sabe, sexo. Você não tem cara de quem gosta disso, mas nunca se sabe, não é? Enfim, antes, bem antes, a gente podia ver nossos mortos uma última vez. A gente podia vê-los até o fim. Até eles serem enterrados e ficarem lá. Ainda perto. Sempre que sentíamos saudades íamos nos cemitérios. Levávamos flores, ajoelhávamos em frente aos túmulos e rezávamos. Assim, como se eles estivessem ouvindo. A gente sabia, claro, que depois de alguns meses o que sobrava ali eram ossos, era resto, era verme. Mas para cada um de nós era solo sagrado. Era ali que estavam nossos mortos. Eu lembro da primeira vez que eles disseram “Vamos queimar todo mundo”. “Não temos mais espaço”, eles diziam. “Tem muita gente, tem pouco espaço; tem muito carro, tem pouco estacionamento; Não precisamos de mortos, precisamos de espaço”. Eu fui lá, no cemitério onde meus pais estavam enterrados, quando eles começaram a destruir tudo. Eles tiraram os caixões, abriram os túmulos. E o cheiro... Nossa Senhora, o fedor de tantos corpos em vida. Ele nuca foi embora. Daí, eles pegaram os corpos. Alguns ainda quase intactos, outros apenas ossos. Jogaram tudo num caminhão, queimaram todos. Todos. Hoje, no lugar onde estava o cemitério dos meus pais tem um shopping. Enorme. Quatro andares, praça de alimentação ampla, lojas caríssimas, caríssimas. Estacionamento para mais de mil carros. Eu nunca fui lá. Dizem que é assombrado. O mundo todo é assombrado. Assombrado pelos mortos que não conseguem descansar.

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