Os homens vieram na minha
casa na hora marcada. Vestiam ternos escuros e gravatas brancas, os dois. Achei
estranho ver dois funcionários públicos usando aquela espécie de uniforme, as
cores escuras, os rostos pesados, como se o trabalho que faziam estivesse impregnado
neles. Eles já não trabalhavam com a morte, eles incorporaram o espírito dela.
Minha mãe estava no
quarto. Tinha morrido há menos de duas horas. Cinco minutos depois eu tinha
enviado um e-mail para o Órgão. Podia não fazê-lo, mas já tinha ouvido muitas
histórias, histórias daqueles que tinham tentado velar seus mortos e foram
pegos. Histórias pesada. Parecia que todas as histórias eram pesadas naquela
cidade, naquele mundo, naquele “lá” onde as pessoas sempre queriam chegar.
Tentei me convencer de
que avisei o Órgão porque era coisa certa a fazer, a lei. Fiz isso para ser
correto, não por estar querendo desesperadamente acabar com tudo aquilo, o
sofrimento, os anos vendo minha mãe definhar, enlouquecer de dor, me xingar,
dizer que me amava, chorar, morrer. Desde que minha mãe caiu doente eu esperava
por esse momento, o momento em que eles apareceriam e tomariam conta da
situação. Eu estava cansado de tomar conta e tudo.
Mas ela tinha morrido
agora. Era assim que era ser livre?
- Do que ela morreu? – um
deles perguntou com os olhos no papel preso a uma prancheta.
- Câncer – eu falei,
rouco.
- Por que ela não estava
no hospital? - quis saber o outro,
também sem olhar para mim.
- Não tinha mais nada que
podia ser feito. Ela quis morrer em casa.
O primeiro que falou
comigo soltou um grunhido de entendimento e caminhou em direção ao quarto.
Parou no meio do caminho e apontou para o cômodo como se perguntasse se era ali
que ela estava. Falei que sim com a cabeça. Ele entrou.
O outro continuou escrevendo.
Em silêncio. Olhei para o teto, para o chão, para a janela. Estava escurecendo.
Olhei para o relógio. 18 horas. O homem continuava escrevendo. Tive a impressão
de que ele não escrevia nada, queria apenas uma desculpa para manter a cabeça
baixa e não me encarar.
O que estava no quarto
voltou. Fez um aceno de cabeça afirmativo para o companheiro, que finalmente
parou de escrever.
- Vamos queimá-lo amanhã.
Fique em casa o dia todo.
E foram embora.
- Não podemos mais
enterrar nossos mortos – ela começou a dizer. Tinha os olhos cansados e
olheiras roxas, largas e pesadas. Já não se vestia para ninguém. Chegou em casa
com chinelo de dedo sob meias amarelas ou apenas encardidas. O rosto estava
manchado. Era bonito antes, lembro do meu tempo de criança. Agora estava
marcado, pela vida, pela dor. “Era como se tivesse brigado com a vida e
perdido”.Onde foi mesmo que eu escutei essa descrição? Já não importava, mas
era assim que ela parecia. Ela se chamava Gertrudes. Sempre foi minha vizinha.
Agora era só um corpo que andava, um monte de carne que vivia porque não
conseguia morrer.Que andava com um suéter três vezes maior que ela escondendo a
camisola velha, que já começa a se desmanchar.
- Urubus, é isso que eles
são – ela continuou e eu deixei. – Farejam a morte, parece que gostam dela, do
gosto. Acho que essa é a maior crueldade de todas, sabe? E não comecei a pensar
isso só agora, depois que tudo aconteceu. Sempre pensei assim. Mesmo antes de
eles fizerem o que fizeram com meu filho. Os tempos eram outros, eram sim. A
gente velava os que tinham partido assim: dentro de casa. O caixão ficava
assim, no centro da sala. Não acho que você saiba o que é um caixão. Talvez
tenha visto algum pela televisão, num filme antigo, ou na internet, naqueles
vídeos horrorosos de... você sabe, sexo. Você não tem cara de quem gosta disso, mas
nunca se sabe, não é? Enfim, antes, bem antes, a gente podia ver nossos mortos
uma última vez. A gente podia vê-los até o fim. Até eles serem enterrados e
ficarem lá. Ainda perto. Sempre que sentíamos saudades íamos nos cemitérios.
Levávamos flores, ajoelhávamos em frente aos túmulos e rezávamos. Assim, como
se eles estivessem ouvindo. A gente sabia, claro, que depois de alguns meses o
que sobrava ali eram ossos, era resto, era verme. Mas para cada um de nós era
solo sagrado. Era ali que estavam nossos mortos. Eu lembro da primeira vez que
eles disseram “Vamos queimar todo mundo”. “Não temos mais espaço”, eles diziam.
“Tem muita gente, tem pouco espaço; tem muito carro, tem pouco estacionamento; Não
precisamos de mortos, precisamos de espaço”. Eu fui lá, no cemitério onde meus
pais estavam enterrados, quando eles começaram a destruir tudo. Eles tiraram os
caixões, abriram os túmulos. E o cheiro... Nossa Senhora, o fedor de tantos
corpos em vida. Ele nuca foi embora. Daí, eles pegaram os corpos. Alguns ainda
quase intactos, outros apenas ossos. Jogaram tudo num caminhão, queimaram
todos. Todos. Hoje, no lugar onde estava o cemitério dos meus pais tem um
shopping. Enorme. Quatro andares, praça de alimentação ampla, lojas caríssimas,
caríssimas. Estacionamento para mais de mil carros. Eu nunca fui lá. Dizem que
é assombrado. O mundo todo é assombrado. Assombrado pelos mortos que não
conseguem descansar.
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