Ela chegou.
- Tá ouvindo o quê?
Ele olhou para cima, depois de
fingir por dois segundos procurar alguma coisa na superfície da mesa de mármore
gelado. Encarou os olhos dela. Eram azuis, tão azuis quanto os da garota
daquele vídeo que dizia que queria matar os pais e o irmão mais novo. Tão azul
que ele teve medo.
Ela fez uma cara de interrogação,
impaciente, como se tivesse preguiça de fazer a pergunta de novo.
- The Drums – ele disse, tirando os
fones dos ouvidos e se entregando aos sons diegéticos, que nada tinham a ver
com as batidas abafadas e sonoridade pretensamente vintage onde estava
mergulhado até então.
- Oi?
- The Drums. É o nome da banda.
Conhece?
- Não.
- É boa.
Ela não fala nada por um segundo.
Dois. Três. Quatro. Cinco.
Ele volta a olhar para o mármore.
Sente-o gelado na palma da mão. Ela pinica fortemente. Ele sempre evoca a
imagem de formigas percorrendo sua pele quando a coceira vem. Principalmente
nas mãos. Ele passeia a palma da mão direita no tampo da mesa, sente um alívio,
já não coça tanto. Mas aí as formigas começam atrás de sua orelha. Droga.
Depois de quinze segundos em
silêncio:
- Por que cê tava olhando para mim?
– ela pergunta.
- Não tava – ele diz, tirando a mão
da mesa, tentando manter o frio em sua palma, percorrendo os dedos por trás da
orelha, as unhas riscando sua pele, que começa a ficar avermelhada.
- Tava sim.
- Desculpa.
- Eu não te conheço.
- Não. – Os dedos agora percorrem o
antebraço esquerdo. A coceira é tanta que ele pode jurar que se desviar seus
olhos daqueles azuis de garota que quer matar os pais, ele verá sua pele
eriçada como um lençol que esconde algo movente.
- Por que cê tá se coçando?
Ele não diz nada. Nunca sabe o que
dizer nessas horas.
Mãe
Eu sabia que ele era diferente, com
certeza. Não, desde criança, não. Quando ele era menorzinho era uma
criança...bem, odeio colocar as coisas dessa forma, mas normal. Igual às
outras. Eu percebi que tinha alguma coisa diferente quando ele tinha uns seis,
sete anos. A pele dele começou a ficar vermelha, sabe? Como se fosse uma
alergia, alguma coisa. E ele se coçava, de cima a baixo, uma agonia. Falei pro
meu marido “tem que ver isso”, podia ser alguma coisa séria, tem tanta doença
que a gente nem sabe. Aí levamos ele, né. Hospital, especialista, rezadeira, o
diabo... Nada, nada. E ele se coçando, e ele se coçando. A escola começou a
ficar preocupada, porque podia ser alguma coisa contagiosa, e eles não queriam
expor os alunos, certo? Aí foi aquela loucura de saber o que é isso, como é
isso, como é que acontece. Foi aí que a professora dele, Irís... alguma coisa,
não vou lembrar, ela disse que as coceiras pioravam quando ele tava junto de
uma menina. Uma tal de Ângela, colega de classe. Quando chegava perto dela, ele
se lascava de tanto coçar. Mas e aí, sabe? Falamos com os pais da menina, ela
não tinha nada, então não podia ter passado nada para ele. Foi uma loucura. Na época, eu chorava de me acabar, sem saber
o que fazer. Aí as coceiras foram diminuindo, certo? Foram parando, parando,
até que pararam de vez. Tá certo. Não procurei saber muito, tava feliz que tudo
tinha acabado. Aí foi, com doze anos, esse menino foi parar no hospital com a
mesma coceira. Tava dez vezes pior. Dava agonia só de olhar. A pele vermelha,
vermelha, e ele coçando, e ele coçando, chegava a tirar sangue. Eu falei “Meu
Deus do céu, o que é isso agora”?. E o médico vendo e falando “ele não tem
nada, ele não tem nada”, e eu “como não tem nada?”, foi um rebuceteiro.
Desculpe, pode falar isso? Ah, desculpa. Foi uma confusão, certo? Uma confusão.
E eu desesperada, sempre. E meu marido tentando tomar conta de tudo,
conversava, tentava acalmar o garoto. E ele sempre perguntando sobre uma tal de
Letícia, se ela vinha visitar, onde ela tava. E eu “quem diabo é Letícia?”, aí
ele falou “é minha namorada”. Eu falei “pronto”. E não sei o que foi, uma
inspiração divina alguma coisa, eu lembrei que da primeira vez que ele tinha
tido essa crise foi quando ele ficava perto da outra menina, a Ângela. Eu falei
com meu marido “gente, será que ele é alérgico a mulher?”, mas meu marido disse
que era bobagem, claro que ele não era, ela vivia cercado de meninas no
colégio, na família, cheio de primas e tal. Mas meu marido me disse que, na
época lá da primeira crise, nosso filho tava apaixonado pela tal de Ângela, que
ele mesmo tinha contado. Que tava gostando muito dela, bem assim, “eu gosto
muito dela”. Eu falei “Minha gente, será que esse menino—
- Eu me coço – ele disse,
conseguindo pela primeira vez desviar dos olhos azuis.
- Eu tô vendo. Mas por quê?
Ele gaguejou uma resposta baixa,
envergonhada. Ela instintivamente se inclinou para ele, tentando ouvir. O
cabelo dela deslizou pelos ombros e escorreu até o seio esquerdo. Ficou por ali
um momento se rebolando até assentar-se em pequenas ondas no peito coberto por
uma camisa de algodão, e só isso. Sem sutiã. Ele podia ver o bico, quase podia
ver sua cor amarronzada, queria mais que tudo sentir o gosto em sua boca.
- Hey.
Ela estalou os dedos a dois
centímetros do rosto dele. Ele piscou, constrangido, tanto por ter encarado o
seio dela por tanto tempo, quanto por perceber que a coceira tinha chegado à
sua virilha. E ele estava coçando.
- Você é tarado?
- Não.
- Han, e você ia me dizer se fosse?
- Ia.
Ela riu. Da cara de bobo dele.
- Por que cê tá se coçando, garoto?
E me seguindo?
- É que eu me coço toda vez que eu
tô apaixonado.
- É o quê?
- Desde pequeno. Toda vez que tô
apaixonado, eu me coço.
- Mentira.
- É verdade.
- E por que cê tá me seguindo?
- É que eu tô apaixonado por você.
Ela abriu e fechou o sorriso num
segundo.
- Cê me conhece?
- Conheço. Um pouco.
- De onde?
- A gente pegou uma matéria junto.
- Não lembro.
Ele levantou os ombros,
constrangido. A coceira parecia fogo sob sua pele. Ele tinha que se controlar
para não rolar no chão, arranhando sua pela até a sensação passar. Mas não
passava, nunca passava.
- Qual seu nome? – ela quis saber.
- Rui.
- Rui?
- Nome de velho, eu sei.
- Você vai ser velho um dia.
- Tomara.
Desta vez, ela sorriu.
- Sabe meu nome?
- Pérola.
- Eu odeio.
- É lindo.
Pérola olhou para Rui como se não
acreditasse. Apontou a cadeira vaga ao lado dele.
- Posso sentar?
Rui olhou para ela como se não
acreditasse. Fez que sim com a cabeça, como se tentasse expulsar gafanhotos de
seus cabelos.
Pérola sentou.
Rui coçou o braço direito, um
sorriso de gente idiota no rosto.
- Dói? – Pérola perguntou vendo Rui
se coçar.
- Não. – Pensou melhor. – Às vezes.
- Tá doendo agora?
Ele sorriu. Pérola não sabia se
isso queria dizer sim ou não.
Pérola pegou o braço dele.
- É aqui?
Rui fez que sim com a cabeça.
Pérola coçou o braço dele. Suas unhas percorreram a pele arranhada como se a
conhecesse, e por isso mesmo, escolhendo caminhos que não aqueles já
percorridos. Trazendo alívio em outros toques, novos toques. Rui achou que
fosse morrer. E não achou nada ruim.
Eles se olharam por um minuto
completo. É muito azul, Rui pensou, tanto azul.
Foi ela quem piscou primeiro,
talvez com medo de sentir o que ele tava sentindo.
- Que é que cê tava ouvindo mesmo?
- The Drums.
- Vamo ver se é bom.
Eles dividiram o fone de ouvido
pela primeira vez.
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